Uma pequena explosão seguida de outra muito maior na área portuária abalou hoje a capital do Líbano com a força de um terremoto. Pelo menos 178 pessoas morreram e mais de 6 mil saíram feridas, anunciou o Ministério da Saúde. Cerca de 300 mil pessoas ficaram desabrigadas. É a maior tragédia desde a Guerra Civil (1975-90) num país marcado pela tragédia.
No local da explosão, havia um depósito de 2.750 toneladas do explosivo nitrato de amônia confiscado pelo Exército estocado há mais de seis anos numa área central da cidade. É um fertilizante que explode com o calor. Um incêndio numa área próxima do porto teria causado a detonação. O choque foi sentido a 240 quilômetros de distância na ilha de Chipre.
O primeiro-ministro Hassan Diab, um muçulmano sunita, prometeu punir os responsáveis "sejam quem forem". Israel, que considera a milícia fundamentalista xiita Hesbolá (Partido de Deus) um de seus maiores inimigos, negou qualquer participação nas explosões e ofereceu ajuda humanitária. Não há indícios de ação terrorista.
O presidente cristão Michel Aoun decretou estado de emergência por duas semanas. A Arábia Saudita observa os acontecimentos com "grande preocupação". A França, antiga potência colonial, enviou ajuda de emergência, anunciou o presidente Emmanuel Macron.
A nova tragédia acontece num momento em que o país está falido, com dívida pública de 150% do produto interno bruto, que elevou o desemprego para 25% e jogou um terço da população na miséria, deflagrando uma onda de manifestações desde outubro do ano passado contra a corrupção generalizada e a incompetência política.
Esta crise econômica tem origem na Guerra Civil. Nos anos 1960, o Líbano era chamado de Suíça do Oriente Médio e suas praias no Leste do Mediterrâneo uma atração turística anunciada nas agências de viagem do Brasil.
Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel ocupou a Cisjordânia, inclusive o setor árabe de Jerusalém, e a Faixa de Gaza, houve uma grande fuga de refugiados palestinos para os países vizinhos, entre eles a Jordânia e o Líbano.
Com a grande repressão do Setembro Negro na Jordânia, uma tentativa da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) de tomar o poder no país em 1970, quando morreram 3,4 mil palestinos e 537 soldados do Exército jordaniano, mais palestinos fugiram para o Líbano.
A diáspora palestina rompeu o frágil equilíbrio entre cristãos e muçulmanos no Líbano, provocando a Guerra Civil, na qual a Síria interveio em 1976. A Guerra Fria também pesou, com os cristãos se aliando ao Ocidente e os muçulmanos a países árabes aliados da União Soviética. Cerca de 120 mil pessoas foram mortas no conflito.
Vários líderes foram assassinados durante o conflito, como o presidente cristão Bachir Gemayel, em 1982, e o primeiro-ministro muçulmano sunita Rachid Karame, em 1987. Por um acordo quando o país se tornou independente da França, em 1943, o poder é dividido entre os grupos religiosos. O presidente é cristão maronita, o primeiro-ministro é muçulmano sunita e o presidente do Parlamento, muçulmano xiita.
Tal divisão do poder é outro motivo para a crise política permanente que assola o país. Em 1982, Israel invadiu o Líbano sob o pretexto de acabar com os ataques terroristas lançados pela OLP a partir do território libanês. Em 18 de setembro de 1982, falangistas cristãos apoiados por Israel invadiram os acampamentos de refugiados de Sabra e Chatila, em Beirute, matando pelo menos 1,2 mil palestinos.
Os Estados Unidos e a França intervieram no Líbano para tentar acabar com a Guerra Civil. Em 18 de abril de 1983, um atentado à embaixada americana em Beirute causou mais de 60 mortes. Em 23 de outubro do mesmo ano, duas explosões de caminhões-bomba destruíram os quartéis-generais das potências ocidentais, matando 307 soldados, inclusive 241 fuzileiros navais americanos.
Esses atentados foram atribuídos ao Hesbolá, criado em 1982 no Vale do Becá, um reduto xiita, sob a orientação do Irã e da Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1979, principalmente para combater a invasão israelense. As forças dos dois países ocidentais deixaram o Líbano.
Israel se retirou em 1985 para uma "faixa de segurança" no Sul do Líbano, de onde saiu em 24 de maio de 2000.
Depois da Guerra Civil, o governo tentou reconstruir o país com dinheiro dos libaneses residentes no exterior, na base de juros altos e câmbio fixo, com a lira libanesa atrelada ao dólar. Quando a dolarização entrou em colapso, a exemplo do aconteceu com a Argentina em 2001, a economia libanesa afundou numa crise não superada até hoje.
A destruição do porto de Beirute, por onde entravam 80% das importações do Líbano, agrava ainda mais a situação. O país importa 40% dos alimentos que consome e a desvalorização da lira libanesa tornou a comida cara demais para muita gente.
O Exército da Síria deixou o país em 2005, depois do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, o homem mais rico do Líbano, num atentado a bomba com uma tonelada de explosivos em que 22 pessoas morreram ao todo.
A milícia do Hesbolá foi acusada pela morte de Hariri. O Tribunal Especial para o Líbano anunciaria a sentença do julgamento na próxima sexta-feira. Adiou para 18 de agosto. O nitrato de amônia é um explosivo usado nos atentados do grupo terrorista. Foi confiscado de navios e estava armazenado no porto de Beirute.
Em 12 de junho de 2006, depois de sequestro de soldados israelenses ao longo da fronteira e de um ataque de foguetes do Hesbolá a posições militares israelenses, Israel iniciou uma guerra que durou até 14 de agosto daquele ano e destruiu mais uma vez a infraestrutura do Líbano. Cerca de 1,2 mil civis libaneses, dois quais pelo menos 250 eram milicianos do Hesbolá, 121 militares israelenses e 43 soldados do Exército do Líbano foram mortos.
Durante a Guerra Civil Síria, deflagrada pela ditadura de Bachar Assad em resposta às manifestações de protesto da chamada Primavera Árabe, em março de 2011, o Hesbolá, financiado, treinado e armado pelo Irã, foi a principal força terrestre aliada do Exército sírio. Pelo menos 400 mil pessoas morreram no conflito, que ainda não acabou. O Líbano, um país de 6,85 milhões de habitantes, recebeu 1,1 milhão de refugiados sírios, mais do que a Alemanha.
Um aspecto importante da tragédia libanesa é o envolvimento do país nas disputas de poder entre grandes potências e as potências regionais. Em dezembro de 2017, durante visita à Arábia Saudita, o então primeiro-ministro Saad Hariri, filho de Rafik Hariri, foi obrigado pelo príncipe Mohamed ben Salman, o homem-forte da monarquia absolutista saudita, a fazer uma declaração de renúncia na televisão responsabilizando o Irã.
Desde o início da guerra síria, Israel bombardeou a Síria mais de 100 vezes para atacar posições do Hesbolá e do Irã, carregamentos de armas e arsenais da milícia libanesa. Em 27 de julho deste ano, na semana passada, o governo israelense anunciou ter impedido uma tentativa de infiltração de militantes do Hesbolá em seu território.