quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Eixo do mal torna Doutrina Bush irrelevante

(Palestra de lançamento do livro Bush 2: A Missão)

A Doutrina Bush é a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, encaminhada pelo presidente George Walker Bush ao Congresso em setembro de 2002, sob o impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001, e revista no segundo mandato, em março de 2006.

Tem dois pilares:
- as guerras preventivas, como maneira de evitar atentados terroristas, já que eles não declaram guerra antes de atacar;
- e a democratização, especialmente do Oriente Médio, para que a oposição política seja exercida publicamente, sem recurso à violência e ao terrorismo, de modo a isolar os extremistas.

É impossível construir uma ordem internacional baseada no Direito com base numa doutrina de guerras preventivas. O uso da força só é admissível em legítima defesa. Nas relações internacionais, isto inclui o princípio de autodeterminação dos povos, o que tem dado origem a muitas guerras civis no mundo pós-Guerra Fria.

Um aspecto central das relações internacionais, como destacou Hedley Bull, é que a sociedade internacional é uma sociedade anárquica, não por que não tenha ordem mas por que não tem governo. Não há governo mundial, os cidadãos do mundo não querem um mega-Estado. Há mecanismos de governança global, como as organizações internacionais.

Em seu livro A Sociedade Anárquica, Bull identificou cinco instituições da sociedade internacional:
1. A Guerra: sempre foi vista como a maneira natural e inevitável de resolver os conflitos entre os povos. A idéia de paz é recente. Começa com o Projeto para uma Paz Perpétua (1713), do Abade Saint-Pierre e com o Tratado para uma Paz Perpétua (1795), do filósofo alemão Emanuel Kant.
2. O Equilíbrio de Poder: como a humanidade, em sua diversidade, reage contra um governo mundial ou uma monarquia universal, como sonhava Carlos V, sempre que um país se torna poderoso demais os outros tendem a se aliar para contrabalançar este poderio. No momento, a total supremacia militar dos Estados Unidos parece desmentir isto. Mas se os EUA forem muito agressivos, a China e outros países se armarão e farão alianças para fazer frente ao desafio.
3. As Grandes Potências: na ausência de um governo mundial, as grandes potências impõem suas normas às relações internacionais, podendo exercer um papel positivo. Há até uma Teoria da Estabilidade Hegemônica que afirma que a existência de uma potência hegemônica garante a ordem do sistema. O Conselho de Segurança das Nações Unidas é um condomínio de grandes potências.
4. A Diplomacia: existe formalmente como a conhecemos hoje pelo menos desde as cidades-Estado italianas do Renascimento. Os representantes estrangeiros devem ter imunidade para serem intermediários nos negócios de Estado.
5. O Direito Internacional: é uma série de tratados, convenções, acordos e regimes que dão maior estabilidade e previsibilidade às relações internacionais. Refletem os interesses dos países que os propõem. Como não existe um governo mundial, quem aplica estas normais são as potências mundiais ou regionais e as organizações internacionais, dependentes destas mesmas potências.

PAZ É IDÉIA RECENTE
A paz é, então, sobretudo uma idéia do século 20, depois do terror de duas guerras mundiais e da ameaça de um holocausto nuclear durante a Guerra Fria, que pode ser considerada a terceira guerra mundial.

Só no século 20 surgiram as primeiras organizações internacionais universais dedicadas à paz mundial, a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas.

Sua origem remonta ao Concerto Europeu, criado pelo Congresso de Viena, que reuniu em 1815 as potências européias que haviam derrotado Napoleão e queriam restaurar a velha ordem monárquica.

A internacionalização do processo se dá com as conferências de Haia. Numa delas, já no século 20, brilhou Rui Barbosa.

Mas foi a Primeira Guerra Mundial que abalou a Europa, até então o centro do mundo, atraindo para os campos de batalha europeus os EUA, que desde sua fundação tinham como princípio não se envolver em guerras na Europa.

Para vender a guerra ao povo americano, o presidente Woodrow Wilson, um liberal internacionalista, disse que “era a guerra para acabar com todas as guerras”. Ele achava que o problema estava na monarquia e na falta de democracia plena.

Os EUA entraram na guerra em 1917, mesmo ano da Revolução Russa. Era a entrada no cenário internacional das duas superpotências que dominariam o planeta na segunda metade do século 20.

Wilson apresentou um plano de 14 pontos na Conferência de Versalhes, em 1919, que seria descrita como “a paz para acabar com todas as pazes”. Entre eles, estava a criação da Liga das Nações (1919), a primeira organização internacional dedicada à paz universal.

Mas o Senado dos EUA, que precisa aprovar os acordos internacionais, rejeitou o tratado que criava a Liga das Nações, sob o argumento de que limitaria a soberania nacional do país.

Sem seu membro mais poderoso, a Liga foi inoperante diante das agressões que provocaram a Segunda Guerra Mundial, como a invasão da Manchúria (1931) e do resto da China (1937) pelo Japão; da Etiópia (1935-6) pela Itália fascista, de Benito Mussolini; e da anexação da Áustria (1938) e da região dos Sudetos (1938), na Tcheco-Eslováquia, pela Alemanha nazista, de Adolf Hitler.

A Liga conversava mas não tinha força real. Estava armado o caminho para a Segunda Guerra Mundial.

Os EUA entram na Segunda Guerra Mundial em 7 de dezembro de 1941, quando os japoneses lançam um ataque sem declarar guerra à frota americana em Pearl Harbor, no Havaí, matando 2.403 americanos, no Dia da Infâmia. Depois, eles destruiriam a maioria das grandes cidades japonesas, mas esta é outra história.

AS NAÇÕES UNIDAS
Mesmo antes de entrar na guerra, o presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, tinha assinado uma declaração conjunta com o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, a Carta do Atlântico, estabelecendo os princípios para o mundo do pós-guerra.

Na Declaração das Nações Unidas, de 1º de janeiro de 1942, os aliados assumem os compromissos da Carta do Atlântico. Este é o embrião da ONU.

Para não repetir o erro da Liga, Roosevelt criou o Conselho de Segurança, um condomínio de grandes potências, já que seriam elas que teriam de garantir os princípios da Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

Hoje a constituição do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) é obsoleta mas não há uma ruptura da ordem internacional que permita uma mudança, sobretudo porque a ampliação do Conselho, por exemplo, com a entrada da Alemanha, do Japão, do Brasil e da Índia, diluiria o poder dos EUA e tornaria muito mais difícil articular o consenso necessário entre as grandes potências com direito de veto.

Sem o direito de veto, os novos membros permanentes seriam sócios de segunda classe, sem o maior privilégio das verdadeiras potências.

Cabe assinalar que o veto paralisou a ONU durante a Guerra Fria. Desde 1945, somente três guerras foram autorizadas pela ONU.

Na Guerra da Coréia, a União Soviética estava boicotando a organização porque a China comunista não tinha sido admitida. Até hoje, as forças lideradas pelos EUA ao Sul do Paralelo 38 Norte têm um mandato das Nações Unidas.

Em 1991, na guerra para expulsar os iraquianos do Kuwait, o dirigente soviético Mikhail Gorbachev votou a favor e a China se absteve, abrindo o caminho para uma guerra liderada pelos EUA.

Depois dos atentados de 11 de novembro, os EUA receberam uma carta branca e, em seguida, com seus aliados, invadiram o Afeganistão.

Os EUA têm a supremacia militar. Se você acredita que no final de contas o que vale é a lei da força, tenta se armar cada vez mais. Se acredita numa ordem internacional baseada no Direito, aproveita sua hegemonia para construir uma ordem internacional liberal, como tentaram Wilson e Roosevelt, com resultados muito distintos.

Os EUA têm a maior economia do mundo, US$ 13,3 trilhões anuais. Ganharam todos os prêmios Nobel de ciências este ano. Investem US$ 330 bilihões por ano em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológica, bem à frente da China, com US$ 136 bilhões, que acaba de passar o Japão, com US$ 130 bilhões anuais.

Então, qualquer profecia sobre a decadência americana, apesar de problemas econômicos estruturais como o déficit comercial de US$ 850 bilhões e o déficit público que Bush criou, são prematuras, na minha opinião.

FUTURO MULTIPOLAR
Mas o unipolarismo é insustentável. Nenhum tem condições de dominar o mundo globalizado. No mundo do futuro, lá entre 2030 e 2050, é provável que tenhamos diversos centros de poder, os EUA, talvez ainda em primeiro, a China, o Japão, a Europa, a Rússia, a Índia e o Brasil – se o Brasil crescer a uma taxa média de pelos 3,7% ao ano até lá.

O fracasso da invasão do Iraque revelou as limitações do uso da força nas relações internacionais. Como disse o professor Joseph Nye jr., ex-subsecretário para política de defesa no governo Clinton, autor de O Poder Suave, os EUA ganharam a Guerra Fria sem disparar um tiro, com Hollywood, a economia e o estilo de vida americano, mais com idéias como a democracia liberal do que com balas.

Este seria o segundo pilar da Doutrina Bush: a democracia liberal como forma de permitir a livre expressão de idéias, de fazer política abertamente e não um grupos clandestinos e terroristas.

Mas a democracia é um processo, é uma cultura. É fruto de uma sociedade que chegou a um consenso para resolver seus conflitos pacificamente, através do diálogo e
da negociação. Está claro que o Iraque não estava maduro como diziam os neoconservadores que convenceram Bush a realizar a aventura militar.

O fracasso da ocupação do Iraque tornará a política externa americana menos ativista, pelo menos por um período, porque há uma rejeição da opinião pública. O segundo pilar da Doutrina Bush, que ele prometeu priorizar no discurso de posse do segundo governo e que deu o titulo ao livro, Bush 2: A Missão, também desmoronou.

Leia a íntegra na minha coluna em www.baguete.com.br

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