Da maneira foi feita, a adesão da Venezuela ao Mercosul (Mercado Comum do Sul) não serve aos objetivos originais do bloco regional nem do Brasil, que são formar uma aliança estratégica entre países da América do Sul para ter mais voz e poder de barganha em negociações internacionais, afirma o geógrafo Demetrio Magnoli, professor da Universidade de São Paulo (USP). Sob a presidência de Hugo Chávez, a Venezuela pode dificultar a inserção dos países do Mercosul na economia globalizada.
“A maior crítica é que foi um ato motivado por razões políticas, atropelando os procedimentos normais de adesão e não se coadunando com os objetivos do Mercosul”, observou Magnoli ao participar, no início do mês, do seminário Mercosul + 1: conseqüências da entrada da Venezuela, realizado no Rio de Janeiro pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Para o professor da USP, “o Mercosul é uma construção política com um sentido estratégico. Como a União Européia, tem fins políticos e estratégicos. Começa com uma aliança entre Brasil e Argentina. A grande virada se dá na Guerra das Malvinas (1982), quando o Brasil compartilha dados militares com a Argentina”.
A partir desta cooperação, Brasil e Argentina assinaram em 1985 a Ata de Iguaçu, estendendo a cooperação ao setor nuclear. “Houve uma decisão de não seguir a Índia e o Paquistão. Até os anos 70, os jogos de guerra dos militares brasileiros levavam em conta a possibildade de uma invasão do Brasil pelo Sul”.
O acordo nuclear levou o Brasil e a Argentina da rivalidade à aliança. Esta rivalidade vinha do período colonial. Brasil e Argentina herdaram o conflito estratégico entre os impérios espanhol e português, que só entraram em guerra no Cone Sul, entre outras razões para disputar o controle sobre o Rio de Prata.
“O Vice-Reino do Prata, cuja capital era Buenos Aires, perdeu o Uruguai e o Paraguai”, lembra o geógrafo. “O Brasil interveio na Banda Oriental, hoje Uruguai, e reconheceu a independência do Paraguai, fazendo com que a Argentina se veja como um país incompleto. Um dos objetivos era evitar que uma potência platina controlasse os dois lados do Rio de Prata”.
Depois da declaração, em 1825, de independência do Uruguai, ocupado desde 1811, por ordem de Dom João VI, os ingleses convenceram o Brasil a reconhecer o Uruguai. A idéia era evitar que o conflito com países hispano-americanos levasse à formação de uma aliança contra o Brasil, que ocupara vastas regiões na Amazônia e no Mato Grosso que, pelo Tratado de Tordesilhas (1494), pertenceriam à América espanhola.
“Além de manter a escravidão, o Império queria traçar fronteiras e evitar uma aliança de repúblicas hispânicas contra o Brasil”, acrescenta o professor. “Eram repúblicas e não monarquias. Era a América, não a Europa”.
Naquele momento, a união latino-americana poderia ser contra o Brasil.
RELAÇÕES COM OS EUA
“O Barão do Rio Branco introduziu outro objetivo na política externa brasileira”, explicou Magnoli, “uma parceria privilegiada com a grande potência do Norte e a intermediação de suas relações com a América do Sul. Para o Brasil, não existe América Latina”.
Com a decisão de Brasil e Argentina de partir para a integração regional, a adesão do Paraguai e do Uruguai tornou-se inevitável. O Mercosul criou uma cláusula democrática que já evitou diversos golpes de Estado no Paraguai.
“Havia uma preocupação de projetar uma imagem externa e de estabelecer os parâmetros para a integração sul-americana”, entende o professor da USP. “O modelo é o regionalismo aberto aos demais países da América do Sul.”
Em 1993, o presidente Itamar Franco lançou a proposta da ALCSA (Área de Livre Comércio Sul-Americana), que uniria o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN). Esta iniciativa seria retomada na conferência de Brasília em 2000, “dois anos antes de Lula”, notou Magnoli.
Já a revolução bolivarista do presidente venezuelano é antiamericana, analisa o professor: “Chávez faz uma releitura de Bolívar que o próprio rejeitaria. Bolívar defendia a integração da América hispânica, sem o Brasil, e o modelo político era os EUA. Chávez quer alinhar o Brasil aos seus objetivos. A integração latino-americana enfrenta diversos problemas”, diagnostica Magnoli.
"Chávez terá de escolher entre seu projeto de política interna e as regras da união aduaneira do Mercosul". Não vai querer abrir mão do seu projeto.
Na sua opinião, a revolução bolivarista é nacionalista e o nacionalismo bolivarista é internacionalista. Isto gera uma tensão: a fragmentação da América espanhola rejeita a integração bolivarista.
“Quando Chávez intervém em eleições, tem resultados diferentes: ganhou com Rafael Correa, no Equador; perdeu com Alan García, no Peru. Aumenta o apoio a Álvaro Uribe na Colômbia, onde Chávez é visto como aliado das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)”, avalia Magnoli. “As conseqüências são polarização e desintegração”.
O geógrafo e professor da USP não vê grandes mudanças na política externa de Lula: “Apesar da retórica terceiro-mundista da política externa brasileira, não é verdade que Lula tenha rompido com os padrões históricos da política externa. A presença do Brasil no Haiti é sinal de apoio aos EUA”.
Por outro lado, Magnoli observa que “a entrada da Venezuela no Mercosul serve para a Argentina como contraponto ao Brasil, colocando o Brasil em posição defensiva. O risco para o Brasil é ser o elemento que veta”.
Sendo assim, “por que o Brasil aceitou a entrada da Venezuela no Mercosul? Por razões de política interna? Não é só isso. Há um desprezo pela História, a idéia de que o atual governo começa de novo. O Mercosul foi reinventado. Este é um problema para os próximos anos”.
Ele também criticou a ênfase na candidatura a uma vaga permanente como representante da América Latina no Conselho de Segurança das Nações Unidas: "É o retorono da idéia do Brasil como potência mundial, um protagonismo que o Brasil não tem. A Argentina é contra um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança".
O governo de Buenos Aires teme que o Brasil fique ainda mais poderoso. Mais importante, para Magnoli, é restaurar o funcionamento do Mercosul.
Ao defender a reeleição sem limites, criando na prática um regime de partido único, argumentou o professor Amauri de Souza, Chávez viola a cláusula democrática do Mercosul. Está provocando "uma corrida armamentista com reflexos na Colômbia, no Peru e no Equador. Há uma provocação explícita no acordo militar Bolívia-Venezuela, com a criação de três bases na fronteira do Brasil".
Magnoli acredita que a oposição a Chávez conseguiu uma coesão na eleição presidencial de 3 de dezembro e "não é eliminável". Mas ressalva que "o Brasil não aceita a dependência energética da Venezuela. A Petroamérica é uma fantasia inaceitável para governo e militares. O Brasil está vacinado pela crise do gás boliviano, que cria uma dependência de mão dupla. Acho que não leva adiante o projeto do gasoduto Venezuela-Brasil-Argentina".
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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