Ao conquistar territórios com uma brutalidade sem precedentes e redesenhar fronteiras históricas, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante é hoje a maior ameaça à estabilidade do Oriente Médio e do mundo muçulmano, adverte o jornalista paquistanês Ahmed Rashid no prefácio do livro The Islamic State: a brief introduction, de Charles Lister, pesquisador da Brooking's Institution em Doha, no Catar.
Um fator de seu grande sucesso é a capacidade de mobilizar para a luta jovens muçulmanos do mundo inteiro. Atentados espetaculares como os de Paris têm forte impacto publicitário e aumentam a fila dos voluntários do martírio.
Rashid, um dos grandes especialistas na milícia dos Talebã do Afeganistão, considera a ameaça do EI maior do que Al Caeda e os Talebã combinados. Afirma que "desde que os exércitos árabes muçulmanos saíram para conquistar o mundo depois da morte do profeta Maomé no século 7 não testemunhamos uma força tão poderosa, que combina uma estratégia política e militar brilhante com uma crueldade abjeta e a opressão daqueles sob seu domínio."
Ao contrário de outros exércitos, as conquistas do Estado Islâmico são marcadas por massacres horrendos, execuções em massa e a morte de milhares de civis, conversões forçadas para sua corrente do islamismo e escravidão de mulheres e de minorias étnicas e religiosas.
Apesar desse histórico assustador, entre 30 e 50 mil muçulmanos de mais de 90 países aderiram ao grupo, atraídos pelo aventureirismo característico da juventude, pelo sonho de viver num país ideologicamente puro e pelo instinto de morte ou desejo de matar, inato na espécie humana.
Como dizia o pai da psicanálise, Sigmund Freud, a simples existência do mandamento da Igreja "Não matar!" comprova que a humanidade descende de incontáveis gerações de assassinos. A civilização é repressiva para promover o fim da barbárie.
A guerra suspende essa regra básica da convivência civilizada: é proibido matar, a não ser em legítima defesa.
Na guerra civil dentro do Islã em torno da verdadeira interpretação do Corão, o livro sagrado do islamismo, o Estado Islâmico fomenta o conflito sectário entre sunitas e xiitas, declarando tafkirs (apóstatas) todos os que não seguem sua corrente religiosa, o wahabismo ou salafismo, adotado oficialmente na Arábia Saudita. Sendo traidores do Islã, podem ser mortos, uma justificativa para matar muçulmanos, o que Ossama ben Laden repudiava.
Sua preocupação central é "resistir [sobreviver] e se expandir". Inicialmente, o EI evitou o conflito direto com o Ocidente, preferindo se concentrar na criação de um califado, de um Estado com território, governo e povo.
Em contraste com os Talebã no Afeganistão e a milícia Al Chababe na Somália, o EI não quer impor a lei islâmica a um só país. Ao mudar de nome de Estado de Islâmico do Iraque e do Levante para Estado Islâmico com a fundação do califado, em 29 de junho de 2014, o Império do Terror reivindica uma soberania universal.
Se as degolas de jornalistas e agentes humanitários eram vinganças por mortes de seus milicianos, com os bombardeios dos EUA e aliados a partir de agosto de 2014 e da Rússia a partir de 30 de setembro de 2015, o EI entrou em confronto direto com as grandes potências.
A queda de um avião de passageiros russo no Deserto do Sinai, no Egito, em 31 de outubro, matando as 224 pessoas a bordo, e a onda de terror de 13 de novembro em Paris, com 129 mortes, são os primeiros ataques do EI nesta guerra.
"O EI está determinado a construir um Estado unitário ou califado que acabe com as fronteiras do Oriente Médio e vá muito além - até a Índia e a Ásia Central", escreveu Rashid em janeiro de 2015. "Ao contrário dos terroristas suicidas que desejam chegar a um paraíso celeste através do martírio, o EI quer construir um paraíso na Terra". Isso o torna atraente para jovens sonhadores e delirantes.
Tanto na teoria como na prática de construção do Estado, o EI foi muito além de outros grupos jihadistas como a rede terrorista Al Caeda, que deixou isso para uma etapa posterior da luta, observa o jornalista: "Eliminou muçulmanos educados que não seguiam sua crença e tentou mobilizar extremistas com talento, educação e capacidade administrativa para se juntar à experiência de construção do Estado."
Aí está uma diferença marcante em relação aos Talebã. Durante todo o período em que governaram o Emirado Islâmico do Afeganistão, de 1996 a 2001, os talebã nutriram uma profunda desconfiança por burocratas e tecnocratas necessários para tocar a máquina do Estado. Quando os EUA invadiram, em outubro de 2001, para vingar os atentados de 11 de setembro, o regime fundamentalista dos Talebã estava à beira do colapso.
O Estado Islâmico também persegue as minorias étnicas e religiosas como cristãos, curdos, drusos, judeus e yazidis. Está acabando com o pluralismo das sociedades do Oriente Médio, que é anterior ao profeta Maomé e ao islamismo.
Pior do que a ameaça de destruir as fronteiras estabelecidas a partir do Acordo de Sykes-Picot (1916), em que os Impérios Britânico e Francês dividiram o Oriente Médio antecipando-se à derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, alertou o jornalista, é a perseguição às mulheres e às minorias, que no caso do povo yazidi chega ao genocídio.
Ao mesmo tempo, há os ataques a monumentos e ao patrimônio cultural para destruir 4 mil anos de história da região.
Berço de três das cinco grandes religiões da humanidade (judaísmo, cristianismo e islamismo; as outras duas são o hinduísmo e o budismo), o Oriente Médio sempre foi historicamente um entroncamento de diferentes culturas, crenças, profetas e povos.
De 1 milhão de cristãos que viviam no Iraque quando os EUA invadiram em 2003, restam menos de 25%. "Os 500 mil assírios que ainda falam aramaico, a língua de Jesus Cristo, fugiram do Iraque, assim como armênios e gregos", acrescenta Rashid, com uma advertência: "Entregar todo o Oriente Médio apenas àqueles muçulmanos que seguem o credo do EI é nada menos do que uma guerra contra a história e as religiões do mundo."
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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4 comentários:
A III Guerra Mundial já começou.
Há quem ache que a Terceira Guerra Mundial na verdade foi a Guerra Fria. A Quarta Guerra Mundial é a guerra contra o terrorismo dos extremistas muçulmanos. Começou em 11 de setembro de 2001.
Cheguei a fazer o projeto de um livro na época, mas as editoras pra quem mostrei não se interessaram.
Muito boa análise.
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