Sem grande surpresa, o 19º Congresso do Partido Comunista chinês terminou com a consagração total do ditador Xi Jinping, elevado a "líder central do partido", ao nível do Grande Timoneiro Mao Tsé-tung, fundador da República Popular da China. Seu pensamento foi incluído na Constituição do país, honra até agora só concedida a Mao.
Com a volta de um culto da personalidade do líder supremo que não era visto desde a morte de Mao, em 1976, a dúvida é se Xi vai transferir o poder em 2022 ou governar além do segundo mandato de cinco anos que começa agora como líder do PC e em março como presidente da República.
Depois da morte de Mao, no fim da década caótica da Grande Revolução Cultural Proletária (1966-76), o maior líder comunista chinês foi Deng Xiaoping. Mesmo sem ser presidente nem secretário-geral do partido, Deng foi o idealizador das reformas econômicas que transformaram a China na segunda maior economia do mundo, rumo ao primeiro lugar.
É uma superpotência. Xi Jinping pretende guiar a China nesta etapa final da ascensão e exercer seu poderio renovado em escala mundial. Pelas dimensões da obra de Deng, o Pequeno Timoneiro (ele era baixinho) deveria ser comparado a Mao e não Xi, que passou os últimos cinco anos consolidando o poder.
Sua campanha anticorrupção expurgou mais de 1,5 milhão de membros do partido. Numa ditadura como o regime comunista chinês, é dentro do partido que se faz política, numa luta intestina feroz. Amanhã, será anunciada a nova composição do Politburo, de 25 membros, e do Comitê Permanente do Politburo, os sete imperadores que governam a China.
Se não for indicado um sucessor, ficará a impressão de que Xi pretende manter o poder além de 2022, quebrando uma regra imposta por Deng depois do Massacre na Praça da Paz Celestial, em Beijim, o maior desafio ao poder absoluto do partido em 68 anos no poder.
Com a morte de Mao e o clima de anarquia da Revolução Cultural, quando o pai de Xi, também alto dirigente do partido, foi mandado para reeducação numa comunidade chinês, Deng viu a oportunidade para suas reformas.
Enquanto o atual líder supremo começava a vida como criador de porcos, Deng sabia que só uma ideia seria capaz de unir o partido: modernização.
Seu programa de Quatro Modernizações (agricultura, defesa, indústria e ciência e tecnologia), lançado em 13 de dezembro de 1978, marca o início da abertura econômica chinesa, das reformas econômicas que elevaram o produto interno da China de US$ 200 bilhões, em 1978, para mais de US$ 11 trilhões, no ano passado.
Deng resgatava uma proposta de 1963 do então primeiro-ministro Chu Enlai, depois depois do igualmente fracassado Grande Salto para a Frente (1958-62), a tentativa de fabricar aço em comunidades rurais. O produto industrial era de péssima qualidade e as safras agrícolas desabaram, provocando uma grande fome e com um total estimado de 30 a 55 milhões de mortes. Foi a pior fome da história.
Na luta interna do partido pós-Revolução Cultural, Deng dobrou a velha guarda maoísta alegando que os símbolos da revolução comunista, o camponês, o operário e o soldado do Exército Popular de Libertação, ainda levavam vidas miseráveis.
A abertura econômica causou o mais rápido surto de desenvolvimento econômico da história da humanidade. Sua máxima nada marxista: "Enriquecer é a glória." O povo tem o direito de enriquecer.
Para evitar a volta da Revolução Cultural, o grande fantasma da China de hoje, uma das providências de Deng foi combater o culto da personalidade. Xi flerta com o perigo.
Sob Deng, o pensamento de Mao continuou sendo a base da política do partido para justificar o poder absoluto do PC. Virou um pai da pátria cuja imagem adorna o Portão da Paz Celestial, na entrada da Cidade Proibida, o antigo Palácio Imperial de Beijim.
Mao paira acima de todos, mas suas ideias econômicas foram totalmente abandonadas em troca do capitalismo e da "economia de mercado socialista", outra ideia de Deng, que chegou a ser entrevistado pela Enciclopédia Britânica para apresentar sua definição.
Como o mercado é anterior ao sistema capitalista, o Pequeno Timoneiro explicou que assim não haveria impedimento para o surgimento de uma economia de mercado socialista, em que o Estado não seria dono dos meios de produção, mas manteria o controle geral do sistema econômico.
A combinação de abertura econômica controlada pelo Estado com um regime político ditatorial do PC, a fórmula de Deng para a ascensão chinesa, ressuscitou o autoritarismo em escala internacional, alimentado pela crise das maiores democracias capitalistas na Grande Depressão (2008-9).
É este modelo nacionalista autoritário que a China quer exportar em aliança com a Rússia de Vladimir Putin, em contraponto à ordem internacional liberal do pós-guerra dominada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus.
Quando os jovens desafiaram o regime depois da morte do ex-secretário-geral do PC Hu Yaobang, em abril de 1989, e um movimento pela liberdade e a democracia acampou na praça central da capital chinesa, Deng chamou soldados de outras províncias, que não falavam mandarim.
Centenas, talvez milhares, de pessoas foram mortas no Massacre da Praça da Paz Celestial, na noite de 3 para 4 de junho de 1989. Os ativistas sobreviventes até hoje são perseguidos. O massacre é fortemente censurado. A censura à Internet e a perseguição aos dissidentes são outras marcas da era Xi. Aumentaram muito nos últimos cinco anos.
Mais antiga civilização ainda existente na Terra, com mais de 4 mil anos de história, a China conseguiu criar uma burocracia capaz de administrar seu vasto território, mas, nas palavras do sinólogo americano Kenneth Lieberthal, nunca foi capaz de criar um sistema político capaz de administrar a luta de suas elites pelo poder.
Sob a orientação de Deng, a partir de 1992, o partido passou a eleger o secretário-geral e o presidente da República por dois mandatos de cinco anos. Jiang Zemin virou secretário-geral em substituição a Zhao Ziyang, que caiu por ser contra a repressão ao movimento pela democracia, em junho de 1989.
Jiang manteve a liderança do partido e foi eleito presidente em 1993. Governou por dez anos e foi sucedido por Hu Jintao, que transferiu o comando do partido em 2012 e do governo em 2013 para Xi Jinping. Ao se colocar acima de Jiang e Hu, Xi sugere que esta norma não se aplica a ele.
Numa época de crise mundial, com a queda no crescimento de 10% para menos de 7% ao ano, Xi Jinping reforçou o controle do regime comunista sobre a economia. Desde o declínio do marxismo como ideologia, é o crescimento econômico que legitima o poder absoluto do partido.
A China planeja reorientar sua economia do investimento e da exportação para uma economia de consumo, serviços e alta tecnologia. Há um excesso de capacidade odiosa, o risco de formação de uma bolha no mercado imobiliário e o endividamento chegou a 265% do PIB, com grande peso das empresas estatais ineficientes.
Xi reluta em aprofundar as reformas por medo do impacto político da queda do crescimento. Quando a crise econômica vier, e um dia virá, o poder absoluto do partido será questionado. Assim, o PC chinês segue a teoria da bicicleta: precisa continuar pedalando, fazendo reformas, para manter o dinamismo da economia. Se parar, cai.
Em seu discurso de quase quatro horas na abertura do congresso do PC, na semana passada, o líder máximo defendeu a luta contra a corrupção, bastante popular, dadas as fortunas acumuladas por dirigentes do partido, e o combate à poluição para melhorar a qualidade de vida. Beijim sofre com uma poluição do ar 10 a 20 vezes pior do que o limite considerado saudável pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Também prometeu reformar as estatais, continuar a modernização tecnológica das Forças Armadas e colocar a Nova China no centro das decisões internacionais com seu ambicioso projeto de recriar a Rota da Seda, uma via comercial ligando o país à Europa, seu maior mercado consumidor. São projetos para muito além de 2022.
Uma possibilidade é que Xi siga o exemplo do presidente Vladimir Putin, que presidiu a Rússia de 2000 a 2008, trocou de cargo durante um mandato com o primeiro-ministro Dimitri Medvedev e voltou à Presidência em 2012. O Medvedev de Xi Jinping estaria entre os indicados para o Comitê Permanente.
Tudo, inclusive a pretensão de ser o maior líder do partido desde Mao, depende do desempenho e da ascensão da economia. É o partido que depende da economia e não o contrário.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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