terça-feira, 24 de outubro de 2017

Diplomacia foi base para construir um país-continente como o Brasil

Sem poderio econômico e militar, o Brasil se tornou num país continental graças à sua diplomacia desde antes da independência. O Tratado de Madri, de 1750, deu o contorno básico do território nacional. O país manteve a unidade durante a independência e faz uma política externa pacífica orientada para o desenvolvimento, com uma "diplomacia do conhecimento"  e um "poder suave".

Esta é a ideia central do livro A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016, do embaixador e ex-ministro da Fazenda e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) Rubens Ricupero.

"Poucos países devem à diplomacia tanto como o Brasil", afirma o autor na Introdução. "Com seus acertos e erros, a diplomacia marcou profundamente a independência, o fim do tráfico de escravos, a inserção no mundo por meio de um regime de comércio, os fluxos migratórios, voluntários ou não, que constituíram a população, a consolidação da unidade, ameaçada pela instabilidade na região platina, a industrialização e o desenvolvimento econômico."

Pelo Tratado de Tordesilhas (1494), o Brasil terminaria num meridiano de Belém a Laguna, excluindo o Rio Grande do Sul, o Mato Grosso e a Amazônia. A ocupação de fato da terra mudou esta realidade e o Brasil tomou forma no Tratado de Madri (1750).

Em debate de apresentação do livro realizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 20 de outubro, o ex-secretário-geral do Itamaraty Marcos Azambuja considerou o trabalho histórico do Ministério das Relações Exteriores uma "diplomacia racional e equilibrada", mas fez uma série de críticas.

"Demoramos a reconhecer como legítimas as agendas ecológicas e direitos humanos", admitiu. A posição brasileira era defensiva, vendo qualquer crítica como interferência indevida em questões internas.

Como maiores erros, Azambuja citou o abandono da Liga das Nações, em 1926, porque o Brasil não foi admitido no Conselho, uma antiga aspiração anterior à ONU; e a iniciativa com a Turquia, em 2010, para tentar resolver o impasse criado pelo programa nuclear do Irã, sem considerar as potências com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, China, França, Reino Unido e Rússia), interessadas em manter seu monopólio das armas atômicas.

O ex-secretário-geral citou ainda "algumas canoas furadas na América Latina" e, num passado mais distante, "apoiamos a política colonial portuguesa e o voto contra o sionismo na ONU".

Azambuja manifestou receio "neste momento de desconstrução da ordem internacional, de populismo, armas nucleares, líderes carismáticos, e crise da globalização, a desconstrução de um mundo que nos deu paz estável e prosperidade."

Ao receber Rubens Ricupero, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, membro da ABL , começou agradecendo à Academia pelo "asilo cultural". O evento seria realizado no Palácio do Itamaraty, no Rio. Foi transferido por causa das críticas do embaixador Rubens Ricupero ao governo Michel Temer.

"Ricupero é merecedor do asilo cultural", observou Lafer. "Este é um livro de fôlego, de décadas de reflexão."

O ex-chanceler lembrou que no Tratado de Madri, em 1750, o brasileiro Alexandre de Gusmão, o "avô da diplomacia brasileira", teve atuação importante antes mesmo da independência.

"O Conselho de Estado do Império pediu uma diplomacia inteligente, sem vaidade; enérgica, sem arrogância; e franca, sem indiscrição. Celso Amorim fez exatamente o contrário", alfinetou Lafer, criticando o chanceler do governo Lula.

A moderna diplomacia brasileira é filha do Barão do Rio Branco, chanceler de 1902 a 1912, que resolveu os problemas de fronteiras com todos os dez países vizinhos e criou "uma diplomacia do conhecimento e da inteligência".

"Rio Branco produziu uma visão do Brasil: um país sem ambições territoriais, em paz, uma força de moderação e equilíbrio a serviço de um sistema internacional mais justo e equilibrado", resumiu o chanceler de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso.

Ricupero defendeu a "meritocracia" do Itamaraty, a elite do serviço público brasileiro, com "o concurso rigoroso e a promoção por merecimento" - e a comparou com a Operação Lava Jato, "juízes, procuradores e policiais que se chocam com tribunais superiores, com pessoas que se formaram em outro tempo. Os tribunais superiores recuam".

Ao chamar a Lava Jato de "tenentismo togado", o embaixador Ricupero fez referência à Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, em 5 de julho de 1922, que "arriscaram a própria vida na tentativa de mudar um sistema imutável".

O ano do centenário da independência, 1922, lembrou, tinha começado com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, de 11 a 18 de fevereiro, o marco do Movimento Modernista brasileiro. Em 25 de março, em Niterói, foi fundado o Partido Comunista do Brasil.

"O bicentenário era como um prazo para criar um Brasil melhor", comentou Ricupero. "Vivemos um angustiante autoquestionamento depois de acreditar que tínhamos chegado ao porto: grau de investimento, Copa do Mundo, Olimpíada. Foi uma festa para Lula, ficaram as lágrimas para a sucessora. Faltou sustentabilidade."

Assim, reconhece o autor, o livro é "uma história de 700 páginas que acaba mal. Como será o Brasil? Como vai sair desta crise? A diplomacia não se faz no vácuo."

O embaixador citou o antropólogo Gilberto Freyre, que descreveu o Itamaraty como "mais do que um Ministério do Exterior, um sistema de valores superiormente nacionais" para atender às "aspirações da cultura, da grandeza territorial e populacional" do Brasil.

Na visão de Ricupero, Rio Branco foi um pioneiro no "poder suave". Defendia a moderação e a não intervenção nos assuntos internos de outros países. O embaixador citou um exemplo: "Na fronteira com o Uruguai na Lagoa Mirim e no Rio Jaguarão, as águas eram todas do Brasil. O Barão mudou isso e dividiu as águas."

O Brasil nunca teve as ambições territoriais expressas no Destino Manifesto dos EUA, a Santa Rússia ou a grandeza napoleônica. Mas a política externa é fundamental para a afirmação de todos os países: "Não é a cereja do bolo, faz parte da massa", comparou.

"Sem diplomacia, os EUA não teriam ganho a guerra da independência", afirmou Ricupero, recordando o apoio da França, inimiga da Grã-Bretanha, a potência colonial. "A diplomacia reflete a imagem de si próprio e como os países encaram os outros. Num livro sobre política externa norte-americana, nenhuma vez se fala em direito internacional: é o poder e a consciência do poder."

Em seguida, fez um contraste com o Brasil: "Os norte-americanos se imaginam como um povo pacífico, mas cada geração teve sua guerra. Nós somos mais fracos, fazemos uma diplomacia da fraqueza, herdada de Portugal, o único povo ibérico que resistiu a Castela."

Portugal e a Inglaterra tem a aliança mais antiga entre dois países independentes, apesar da relação ter sido desigual por causa do diferencial de poder. Na Segunda Guerra Mundial, apesar da neutralidade e da simpatia do ditador Oliveira Salazar pelo Eixo nazifascista, Portugal cedeu as ilhas dos Açores para a instalação de bases navais aliadas.

"Quando há um diferencial de poder muito grande, a arma dos fracos é o direito", notou Ricupero. "O Brasil não teve êxito na primeira guerra depois da independência, que levou à independência do Uruguai, em 1928."

A partir daí, o país passou a fazer alianças. Os futuros presidentes argentinos Bartolomeu Mitre e Domingo Sarmiento se juntaram ao Império do Brasil na guerra contra o ditador portenho Juan Manuel de Rosas, derrotado na Batalha de Monte Caseros, em 3 de fevereiro de 1852.

Na busca da esperança, o autor continuou o exame de consciência do livro: "A democracia americana gerou Donald Trump. É um retrocesso perigoso. Todas as nações passam por agonia e sofrimento. A vergonha é o ponto de partida de qualquer recuperação. O Brasil nos dói."

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