Com o discurso agressivo do presidente Ronald Reagan chamando a União Soviética de "império do mal" e a instalação de mísseis nucleares de curto alcance na Europa Ocidental, o Kremlin temia um ataque nuclear dos Estados Unidos durante manobras militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) de novembro de 1983, revelam documentos sigilosos desclassificados neste mês pelo governo americano, revela o jornal The Washington Post.
"Em 1983, inadvertidamente, deixamos as relações com a URSS por um fio", concluiu o documento ultrassecreto agora liberado.
O mundo vivia o momento mais tenso da chamada Segunda Guerra Fria, iniciada com a invasão soviética no Afeganistão, em dezembro de 1979, depois de anos de distensão com as visitas do presidente Richard Nixon à China e à URSS em 1972.
A eleição do conservador Reagan para a Casa Branca em 1980 acirrou os ânimos. Reagan prometeu não ceder mais nem um centímetro de território ao comunismo. Invadiu a pequena ilha de Granada, no Mar do Caribe, e hostilizava Cuba e a Revolução Sandinista na Nicarágua.
Em 23 de março de 1983, o presidente americano anunciou o lançamento do programa Guerra nas Estrelas, um sistema de defesa para derrubar mísseis inimigos disparados contra os EUA. Isso era proibido pelo Tratado de Mísseis Antibalísticos, mais conhecido como MAD (loucura ou destruição mutuamente assegurada, em inglês) e daria uma vantagem importante aos EUA.
Desde os anos 1970s, os soviéticos temiam a superioridade americana em tecnologia de informação. Sabiam que não teriam recursos para competir numa nova fase da corrida armamentista.
Em 1º de setembro de 1983, um caça soviético derrubou um Boeing 747 da companhia sul-coreana Korean Air que ia para os EUA via polo norte com um deputado americano a bordo.
Dois meses depois, a OTAN começava a instalar os mísseis Pershing II. A operação Arco Hábil mobilizou tropas da aliança atlântica do Reino Unido à Turquia. As manobras militares da OTAN eram realizadas todos os anos, simulando uma guerra nuclear. Naquele ano, havia uma novidade: os aviões levariam mísseis ocos, sem ogivas nucleares.
O alarma na URSS era enorme e os EUA não perceberam, concluiu o documento O Temor de Guerra Soviético, de 109 páginas, de 15 de fevereiro de 1990, desclassificado neste mês a pedido do Arquivo de Segurança Nacional, uma organização não governamental ligada à Universidade George Washington.
A Força Aérea do Pacto de Varsóvia na Alemanha Oriental e na Polônia foi colocada em estado de alerta e realizou 36 voos de reconhecimento, enquanto os agentes secretos dos países do bloco soviético procuravam no mundo inteiro indícios de preparação para uma guerra atômica. De 4 a 10 de novembro, a URSS e aliados só realizaram voos de reconhecimento. Todos os aviões de combate estavam de prontidão.
Alguns detalhes da paranoia e da preparação soviética para a guerra total foram revelados pela defecção do agente duplo Oleg Gordievsky, um oficial do KGB (Comitê de Defesa do Estado), a polícia política soviética, que fugiu para o Reino Unido em 1985.
Yuri Andropov, o diretor do KGB que seria dirigente supremo da URSS de 1982 a 1984, era um dos mais assustados. Em 1981, Andropov declarou numa conferência do KGB que o governo Reagan estava se preparando para uma guerra nuclear e poderia lançar um primeiro ataque.
Essas preocupações foram ampliadas por um sistema de análise de informações do serviço secreto soviético baseado num modelo de computação que media mudanças na "correlação de forças" entre as duas superpotências. Seu objetivo era avaliar quando "a deterioração do poder soviético poderia tentar os EUA a lançar um primeiro ataque".
O ideal, na visão dos estrategistas soviéticos, é que o país tivesse 70% do poderio americano ou pelo menos 60%. Todo mês o Politburo do Comitê Central do Partido Comunista recebia relatórios desse computador.
Quando o poderio soviético declinou para 45%, por mais absurdo que pareça confiar num modelo matemático, os hierarcas do Kremlin tinham um elemento racional para comprovar o desequilíbrio estratégico. Em janeiro de 1983, quando Andropov chegou ao poder supremo, o KGB acrescentou um quinto nível de alerta máximo para "ataques inimigos de surpresa usando armas de destruição em massa em progresso".
Em 8 de março de 1983, Reagan qualificou a URSS como o "império do mal". Os dirigentes soviéticos levaram a sério. No verão daquele ano no Hemisfério Norte, começaram a avisar a população sobre a localização de abrigos nucleares. Várias vezes por dia a rádio e a televisão alertavam para o risco de uma guerra nuclear.
Depois do abate do Jumbo sul-coreano e da instalação da mísseis da OTAN na Europa, no fim de 1983, o 4º Esquadrão da Força Aérea da URSS, estacionado na Polônia, recebeu ordens para tirar os mísseis nucleares do arsenal e instalá-los nos aviões bombardeiros.
A mobilização não foi total. Havia dúvidas do lado soviético, mas seus estrategistas estavam convencidos de que um ataque começaria sob o disfarce de treinamento militar.
Reagan, o grande provocador, só soube do temor soviético de uma guerra nuclear iminente em memorando da CIA (Agência Central de Inteligência) de junho de 1984.
Em 11 de março de 1985, com as mortes de Andropov e de seu sucessor, Konstantin Chernenko, Mikhail Gorbachev ascendia ao cargo de secretário-geral do PCUS. Com sua abertura democrática (glasnost) e reforma econômica (perestroika), a URSS se aproximou do Ocidente.
Gorbachev negociou com Reagan um tratado para remoção dos mísseis nucleares de curto e médio alcances da Europa, o primeiro reduzindo os arsenais nucleares das superpotências. Foi assinado na Casa Branca em 8 de dezembro de 1987.
A burocracia soviética se mostrou irreformável e a URSS acabou em 1991, depois do fracasso de um golpe da linha-dura contra Gorbachev. Agora, em sua tentativa de fazer uma guerrinha fria com o Ocidente, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, outro ex-oficial do KGB, quer anular esse e outros acordos de desarmamento nuclear.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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