quinta-feira, 9 de julho de 2015

Jangadeiros do Mucuripe lutam pela vida

Esta reportagem, feita na primeira viagem ao Ceará, foi publicada no Correio do Povo, de Porto Alegre, em 26 de novembro de 1978. De volta a Fortaleza, relembro as primeiras impressões:

"As velas do Mucuripe
vão sair para pescar
eu vou levar minhas mágoas
p'ras águas fundas do mar.

FORTALEZA - Entre uma e cinco da manhã, dependendo do vento, o homem solta as cordas do tauaçu, amarra bem o samburá à jangada e põe a vela no mar para voltar à tarde com o peixe que lhe garantirá o pão. A muié fica na paria esperando, a tecer o seu amor com bilros, fazendo as rendas que encantarão a todos. 

Esta é a imagem idealista que os poetas e prosadores românticos, como José de Alencar, "teceram" sobre os tipos humanos mais característicos do Ceará: o jangadeiro e a rendeira. Mas a fantasia não sobrevive ao sobrevive ao cotidiano. Para descobrir uma rendeira na zona urbana de Fortaleza é preciso escalar os morros do Mucuripe (morro de areia na língua dos índios) e entrar numa favela.

É dali mesmo que devem partir homens como José Armando Pacheco - 40 anos de vida e 28 de jangada -, que confessa continuar pescando porque "não tem outro jeito mesmo". De qualquer forma, comprar rendas e bordados e assistir à chegada das jangadas são maneira de conhecer a cultura cearense que o turista não dispensa.

As jangadas já perderam muito da primitiva pureza, assim como perderam importância com a pesca industrial. Suas velas estampam anúncios comerciais desde que foram instituídas as corridas de jangadas. Há patrocinadores por trás disso. E os homens que as manobram enfrentando os perigos do mar dividem metade dos prêmios - o resto fica com os proprietários. O mesmo ocorre com a pesca diária.

Pacheco, que diz ter 40 anos mas aparenta no mínimo uns 10 a mais, explica esta relação de produção:

- Hoje vendemos Cr$ 800,00. Entre quatro, dá Cr$ 100,00 para cada um.

- Mas como? 800 divididos por quatro dá 100?

- Não. É que o patrão ganha sempre a metade. Se a gente não traz nenhum peixe, não ganha nada. Em dia que morre muito, o preço baixa. Se morre pouco, sobe. Agora, se o pescador quiser de volta um peixe que ele mesmo pegou, vai pagar no mínimo o dobro. Do contrário, não come.

ARRASTÃO
São cerca de duas horas de uma tarde de pleno sol e a praia do Mucuripe está coalhada de gente esperando os jangadeiros. Uns ajudam no "arrastão", outros fazem a seleção e a partilha dos peixes capturados, alguns apenas observam.

A cada samburá emborcado, os olhos e as mãos dos comerciantes se avivam em busca dos peixes mais valiosos. A poucos metros da praia, em pequenas embarcações, pescadores jogam suas tarrafas.

Os peixes variam com a época do ano. Em agosto, quem não vai muito longe pega cavalas e serras, além de espécies de baixo valor comercial. O dia foi bom e indiferente ao reboliço José Armando fuma um cigarro de palha, o chapéu também de palha enterrado na testa, sentado na jangada. Sua pele escura está precocemente enrugada pelo contato diário com os raios de sol em 28 anos de pesca. O olhar sofrido e vago se perde no horizonte das águas.

Com voz firme e pausada, vai contando aspectos da vida de jangadeiro no Ceará:

- A vida aqui é essa mesmo de pescá, não tem outra, não. Tirô de pescá, outro trabalho aqui não se encontra, não. Eu gosto um tanto, se tivesse outro melhor gostaria menos, mas não tem outro jeito.

Desde os 10 ou 12 anos, quando já tiver força para içar um peixe de tamanho médio e não atrapalhar, o menino começa a aprender a ganhar a vida em cima de uma jangada. Será uma vida dura, sem descanso, sem férias, sem folga semanal remunerada.

APOSENTADORIA
Aos 60 anos, o homem ainda sai para o mar porque precisa. Na verdade, já não tem mais condições físicas e muitas vezes os outros não querem levá-lo:

- Com 60 anos, o que um homem vai fazer no mar? Se é para atrapalhar os outros, que fique em terra. Mas, como a família vai passá fome e tudo, ele se obriga a ir.

Hoje a Previdência Social garante a aposentadoria para os pescadores artesanais, mas um jovem jangadeiro se intromete na conversa com o argumento de que o tempo de serviço exigido deveria ser de apenas 25 anos:

- A pesca envelhece muito a gente. O cara vai para o mar hoje e volta daqui a três, barbado, descabelado e sujo. Com 25 anos de mar, era pra se aposentar.

Lá em alto mar, o sangue dos animais feridos atrai cardumes de tubarões ferozes. Mas o jangadeiro, acostumado a lutar contra diversos problemas, não se assusta com esses companheiros indesejáveis de jornada. Manobra a cai fora:

- Quando eles estão muito chegados à navegação, a gente procura saí. Não tem medo, não.

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