Esta reportagem, feita na primeira viagem ao Ceará, foi publicada no Correio do Povo, de Porto Alegre, em 26 de novembro de 1978. De volta a Fortaleza, relembro as primeiras impressões:
"Olê, muié rendeira,
Olê muié rendá,
Tu me ensina a fazer renda
que eu te ensino a namorá"
FORTALEZA - As rendas e bordados nascidos da criatividade cearense estão espalhadas por toda a capital do Ceará e concentradas no Mercado Popular e no centro da artesanato da Emcetur (Empresa Cearense de Turismo) - um antigo presídio -, principalmente sob a forma de roupas femininas: vestidos, saias, lenços, blusas, saídas de banho - mas também em toalhas, cortinas e redes. Talvez muitas mercadorias sejam produzidas em "fábricas de artesanato", mas fascinam o visitante que não resiste à tentação de levar alguma lembrança para casa.
BILROS
Na favela do Mucuripe, as meninas informam que a renda autêntica do Ceará é feitas nas praias de Mandaú, Trairi e Canaã - todas relativamente distantes de Fortaleza. Os motoristas de táxi convidam para um passeio a Aracati, onde fica a praia de Canoa Quebrada, mas as rendas do morro afirmam que ali a renda não presta.
Uma almofada cilíndrica ou arredondada feia com lona ou estopa, de extremidades cosidas e cheias de capim ou palha de bananeira, serve de base para os bilros. Estes são hastes finas de madeira com uma esfera de coco de buriti ou de macaúba na extremidade, onde se prende a linha. Indispensável é o papelão - um cartão picotado com o motivo da peça que se quer tecer.
Pronta a almofada, dispõe-se sobre ela um pano fino e por cima deste o papelão, preso por espinhos de cardeiro. Trocando cerca de 200 bilros com polegares e indicadores das duas mãos, dá-se início ao trabalho.
MOTIVOS
Antigamente as rendeiras guardavam os papelões com os desenhos picotados como segredos profissionais. Hoje, trocam entre si; recriam motivos. Os mais conhecidos são: jasmin, margarida, dadinho, rio de janeiro, ponta de navio, tijolinho, estrela, palha de coqueiro, amor de pobre, pé de galinha, onda de flores, pingo de ouro, amor perfeito, cinquentinha e cor-de-rosa.
Mas a vida não é nada fácil para uma rendeira num estado atrasado como o Ceará e elas são forçadas a migrar do interior em busca de uma vida melhor na capital, onde precisam trabalhar fora, dedicando-se à sua arte "por esporte" - como diz Lucineide Viana da Silva, 18 anos, aprendiz desde os nove, falando de sua mãe.
Durante o dia, a mãe sai para trabalhar e ela fica trocando 60 bilros. Ainda não aprendeu a manipular 200 bilros. Com essa técnica incipiente dá apenas para fazer palas para roupas. Lucineide não ganha nada diretamente por sua atividade. A mãe recebe Cr$ 50,00 a Cr$ 70,00 por peça.
A produção é comercializada no Mercado Central de Fortaleza, na Praça da Sé, por preços bastante superiores, "é claro", mas Lucineide não se espanta. Está acostumada desde que nasceu com esta relação de trabalho. E confessa que não dá para viver disso.
LABIRINTO
Ela veio em fevereiro para a grande cidade e está achando "legal, a vida é melhor porque tem muitas coisas, mas lá também é bom". Garante que no interior ainda tem muita gente fazendo renda. Em Fortaleza, não, as artesãs estão desaparecendo, em vez de rendas estão fazendo "labirintos", trabalho que consiste em desfiar um tecido para depois encher os espaços abertos com motivos de um desenho previamente traçado.
Para encontrar Lucineide, foi necessário enfrentar o calor do sol do início da tarde e escalar os cômoros do Mucuripe, passando por entre barracos construídos com materiais usados, onde os jegues são convocados a transportar água durante todo o dia.
Quem compra na Emcetur ou no Mercado Central não se preocupa com essas coisas. Talvez nem se questione sobre como e onde surgiu esta arte popular. Ali, as peças são produtos acabados, convites ao consumo. E não interessa, a não ser em termos de preço, de uma toalha de banquete exigiu até seis meses de trabalho dedicado e persistente.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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