Como toda guerra tem pelo menos dois lados, por mais meritório que tenha sido o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, ficou incompleto ao ouvir um lado só, o das vítimas da ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985. Minha opinião foi citada hoje na coluna de Merval Pereira, nO Globo. Então, gostaria de fazer alguns esclarecimentos.
Mesmo reconhecendo que o Estado Brasileiro cometeu muito mais crimes do que os grupos guerrilheiros que combateram a ditadura, o outro lado deveria ter sido ouvido. Como foi, a comissão perde legitimidade. Fica parecendo unilateral e revanchista, uma versão da história feita pelos hoje vitoriosos politicamente.
A verdadeira Comissão da Verdade e da Reconciliação Nacional foi a da África do Sul, onde todos os lados foram ouvidos, inclusive o presidente Nelson Mandela, que tinha comandado o braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA) na luta contra o regime segregacionista do apartheid. Mandela foi interrogado pelo arcebispo Desmond Tutu, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1984.
Para ter direito a anistia, quem cometeu crimes teve de confessá-los e de pedir perdão às vítimas e seus descendentes e à sociedade sul-africana.
Houve declarações como "eu acreditava que meu povo, minha cultura e modo de vida estavam ameaçados, por isso ataquei uma escola para crinas negras", ou "eu estava certo de que a libertação do meu povo exigia a morte dos brancos", seguidas de pedidos de desculpas.
No Brasil, com raríssimas exceções, ninguém pediu desculpas por nada. Ambos os lados ainda acreditam que estavam travando o bom combate. Os poucos militares que depuseram falaram com orgulho da "luta contra o comunismo".
A antiga esquerda armada está convencida de que tem a história na mão e de que chegou ao poder com o PT e a presidente e ex-guerrilheira Dilma Rousseff, e os ex-ministros guerrilheiros José Dirceu, José Genoino e Franklin Martins, os dois primeiros condenados por corrupção no Escândalo do Mensalão.
Ao receber o relatório final da comissão, a presidente declarou que os que lutaram pela democracia não deverão ser esquecidos jamais. Na verdade, como destacou o insuspeito professor Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense (UFF), um dos principais historiadores da luta armada, os guerrilheiros não lutavam pelo democracia, mas para impor uma ditadura marxista-leninista. Isso não absolve os crimes de terrorismo do Estado nem os crimes cometidos pelos guerrilheiros, estes totalmente ignorados pela Comissão da Verdade.
Um integrante da comissão alegou que os crimes cometidos pelos grupos armados de esquerda foram julgados. Se foram processados por tribunais militares ilegítimos, é natural que o povo brasileiro queira conhecer a verdade, as motivações dos guerrilheiros e as justificativas para matar civis inocentes pegos no fogo cruzado, como seguranças de bancos cujas famílias não têm direito a indenizações como vítimas da ditadura militar.
A comissão esclareceu casos escabrosos, como as mortess de Rubens Paiva ou de Stuart Angel Jones, longamente sonegada pelas Forças Armadas, e acertou ao responsabilizar pela primeira vez os generais-presidentes pelos crimes da ditadura militar. A tortura, o sequestro e o desaparecimento de pessoas foram políticas de Estado. São crimes contra a humanidade para os quais não haveria anistia por força de acordos internacionais de proteção aos direitos humanos assinados pelo Brasil.
Mas a revogação da Lei de Anistia, proposta no relatório final da comissão, terá de ser feita pelas autoridades eleitas através do Congresso Nacional, como aconteceu na Argentina, no Chile e no Uruguai. Não cabe à Justiça legislar.
Em resumo, o trabalho da comissão é meritório e elogiável ao resgatar a história e a memória de torturados e assassinados em masmorras clandestinas e instalações oficiais da Forças Armadas. Mas é parcial e incompleto, o que a torna uma comissão da meia-verdade.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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