Um ano após deixar o poder, o ex-chanceler (primeiro-ministro) alemão Gerhard Schröder (1998-2005) publica suas memórias, não poupa o presidente dos Estados Unidos, George Walker Bush, que acusa de usar uma linguagem quase religiosa, e afirma que a guerra no Iraque foi "a mãe de todos os erros de julgamento". Reescreve uma frase de Saddam Hussein, que chamou a Guerra do Golfo de 1991 de "mãe de todas as batalhas".
Para a revista alemã Der Spiegel, que está publicando trechos das memórias, o governo Schröder marca a emancipação da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial e de sua reunificacão, em 1990, após a queda do Muro de Berlim, em 1989, marco do fim da Guerra Fria.
A Alemanha começou a assumir um papel internacional mais ativo, primeiro na força de paz na antiga Iugoslávia, em 1996, antes da primeira vitória de Schröder, pouco depois da sua posse, na Guerra do Kossovo, em 1999, e mais ainda na oposição à guerra no Iraque em 2002 e 2003.
Hoje, há 9 mil soldados alemães no exterior, da República Democrática do Congo ao Afeganistão, passando pelos Bálcãs e o Oriente Médio.
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o chanceler alemão deu "solidariedade ilimitada" aos EUA e participou da aliança que depôs o regime da milícia dos Talebã (Estudantes) no Afeganistão e que está lá até hoje, agora enfrentando o ressurgimento dos talebã.
A decisão de Bush de estender a guerra contra o terrorismo ao Iraque provocou a divisão mais importante na aliança transatlântica desde 1945. Enquanto o Reino Unido manteve seu apoio incondicional aos EUA, a Alemanha e a França se opuseram à guerra dentro do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Era a Alemanha que aprendia a dizer não.
Durante a campanha para a reeleição, em 2002, Schröder fez da oposição à guerra o centro de sua plataforma política, aprofundando o fosso com o governo Bush. Em sua biografia ele ironiza os deputados e senadores americanos, que trocaram o nome das batatas fritas do restaurante do Congresso de "batatas fritas francesas" para "batatas fritas da liberdade", assim como a demonização de Hans Blix, o diplomata sueco que chefiou a última comissão de inspeção das Nações Unidas que investigou o suposto desenvolvimento de armas químicas e biológicas por Saddam Hussein.
Na reunião da OTAN em novembro de 2002, houve especulação se Bush e Schröder se cumprimentariam. Era o auge do que Der Spiegel chama de "era glacial transatlântica".
Para mudar o alvo da al Caeda e do Afeganistão para Saddam Hussein e o Iraque, escreve Schröder, o vice-presidente americano Dick Cheney "tornou presunções em certezas". Previu que a queda de Saddam seria uma chance de "promover os valores que levam a uma paz duradoura" e que os americanos seriam aplaudidos nas ruas de Bagdá e Bássora.
"Que série de erros de cálculo!" - indigna-se o ex-chanceler alemão. "Cheney nunca respondeu por estes erros, ou talvez tenham sido distorções deliberadas".
Em 30 de janeiro de 2003, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, articulou uma carta de apoio da União Européia à iminente invasão do Iraque. Além do Reino Unido, apoiaram Bush os governos direitistas de Portugal, da Espanha e da Itália, e os antigos países comunistas da Europa Oriental que entraram para a OTAN, como a Polônia, a Hungria e a República Tcheca. "Tirando os países do Leste, que por razões históricas queriam ficar ao lado dos EUA, sou incapaz de reconhecer qualquer equivalente de legitimidade para os outros países da UE que assinaram o documento", comenta Schröder.
"Quantas oportunidades perdidas!", lamenta-se. "Com uma Europa unida, talvez tivéssemos conseguido convencer os EUA a evitar este erro fatal". Ele elogia o presidente da França: "Jacques Chirac assumiu uma posição estóica". Não se rendeu às ameaças de boicote de produtos franceses, do vinho às batatas fritas.
Dias depois, milhões de europeus saíram às ruas em manifestações pacifistas. A opinião pública apoiava os países que o secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, chamara de "velha Europa". Só em Berlim, foram 500 mil pessoas. "Ninguém consegue descrever a profunda sensação de se sentir aprovado e o reforço a uma posição política que se ganha com este apoio público".
O trabalho de Blix "não revelou nenhum traço de armas de destruição em massa no Iraque". Só que isso não se enquadrava nos planos dos EUA, observa o ex-chanceler social-democrata.
Mesmo assim, em 6 de junho de 2004, Schröder, que ainda usava fraldas quando a guerra acabou, em 1945, festejou os 60 anos da invasão aliada à Normandia ao lado dos presidentes Bush, Vladimir Putin, da Rússia, e Jacques Chirac, da França; e do primeiro-ministro Tony Blair e da rainha Elizabeth II, do Reino Unido. Pela primeira vez, a Alemanha estava presente. Para Schröder, era a confirmação de que "o período do pós-guerra" acabara.
Longe da Chancelaria, Schröder reflete sobre a guerra que não conseguiu evitar: "Talvez tenha chegado a hora de encorajar os EUA a deixar o Iraque. Mas isto vai exigir uma imensa preparação estratégica envolvendo todas as partes, terá de livrar a cara de todo o mundo e de garantir uma retirada segura". Isto só pode acontecer "com uma iniciativa de paz que tire o apoio ao terrorismo".
Schröder não acredita que os EUA possam fazer isto sozinhos: "A Europa e, se possível, uma aliança internacional, incluindo os países árabes e Israel, terão de se envolver. Temos de começar a pavimentar o caminho agora, de outra maneira os terroristas ganharão terreno mundo afora. Se isto acontecer, haverá mais em jogo do que no racha transatlântico".
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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