terça-feira, 6 de junho de 2006

América do Sul, fragmentada e longe da integração

A América do Sul está mais fragmentada e distante da tão sonhada integração regional, enquanto os Estados Unidos negociam acordos bilaterais com diversos países da região (Chile, Colômbia, Peru, Uruguai e talvez Paraguai) enfraquecendo o processo de integração. “Vai continuar patinando até que novas lideranças possam fazer uma reinserção econômica extrovertida”, prevê o professor Paulo Roberto de Almeida, do Centro Universitário de Brasília (Ceub).

Há uma ressaca causada pela frustração com as reformas liberalizantes e a integração regional dos anos 90: “Desde meados dos anos 90, a região só recuou nos seus processos de integração”, analisa Almeida, atribuindo a crise ao “fracasso da integração econômica”, que ressuscitou “o velho discurso vazio do antiimperalismo”, e à “leniência da esquerda com os fascismos emergantes”, numa referencia ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

Ao participar do seminário América do Sul: entre a integração e a fragmentação, realizado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais na sexta-feira, 2 de junho, o diplomata e professor constatou que há “um pessimismo quanto à integração econômica e ao processo político, com a deterioração do jogo democrático e movimentos sociais financiados pelo Estado”, além de uma “mafialização”, com a penetração do crime organizado no aparelho de Estado e na representação pública.

Para o professor Alcides Vaz, da Universidade de Brasília (UnB), é preciso fugir da simplificação de clichês como populismo, estatismo e esquerdismo. Ele aponta para “a capacidade limitada do Estado e das instituições frente a demandas sociais e pressões internas crescentes”.

Vaz cita a persistência de patologias políticas na América Latina como:
• o personalismo dos presidentes Hugo Chávez, da Venezuela; Álvaro Uribe, da Colômbia; Evo Morales, da Bolívia; e Néstor Kirchner, da Argentina;
• a corrupção;
• a hipertrofia do Poder Executivo; e
• o corporativismo.

“A democracia subsiste mas enfrenta seu maior teste desde a redemocratização”, nos anos 80, raciocina Vaz. “Mas esta conturbação não gerou rupturas democráticas até agora.”

Como elementos que contribuem para a fragmentação, o professor da UnB mencionou:
• “a preocupação com as agendas sociais”, que levou alguns países, como a Bolívia e a Venezuela, a “assumir o controle sobre os recursos energéticos”;
• “o protagonismo dos países pequenos, como Bolívia, Paraguai e Uruguai”, interessados em reduzir as assimetrias em busca de maior eqüidade;
• “a forte divisão de interesses em torno de poucas alternativas”, como o papel do Estado numa reinserção econômica positiva;
• as diferentes posições em relação aos Estados Unidos, que acentuam a desagregação;
• “os elevados índices de violência e criminalidade”, que apontam para o risco de violência política, com a Venezuela à beira da guerra civil, o germe de um movimento guerrilheiro no Paraguai e escassos avanços no combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado;
• a questão étnica, com o surgimento de um arco indígena na região andina;
• o esvaziamento dos mecanismos regionais de diálogo, num momento em que Argentina e Uruguai recusam-se a sentar na mesma mesa para discutir o conflito em torno da instalação de duas fábricas de papel e celulose na margem uruguaia do Rio Uruguai; e
• a estagnação dos processos de integração, com um evidente conflito entre o projeto chavista antiamericano e o projeto brasileiro.

CHÁVEZ DESINTEGRA
Alcides Vaz vê um déficit de institucionalização do Mercosul e as relações do Brasil com a região em descompasso, num quadro de fragmentação: “Em outro contexto, a entrada da Venezuela seria bem vinda”.

“Chávez tem mais recursos”, pondera o professor da UnB. “Mas a lógica de sua ação regional suscita problemas. Foi contraproducente no Peru. Uma visão política desenhada a partir de um regime acentua a fragmentação, não a integração.”

Enquanto isso, “os EUA passaram da negligência benigna para o enfraquecimento da integração regional com a assinatura de acordos bilaterais.”

O professor Paulo Roberto de Almeida também rejeitou os conceitos de esquerdismo, estatismo e populismo, assim como o “pecado original” de tratar a América Latina como um todo. Ele entende que os diferentes fenômenos políticos observados na região têm causas nacionais mas aponta algumas características comuns:
• declínio econômico,
• erosão das instituições,
• crise do Estado,
• crescimento baixo, desigualdade e exclusão social.

“Com exceção de Brasil e Chile, há uma crise dos partidos políticos”, acrescenta Almeida. “Mas a vitória de Michelle Bachelet no Chile não é uma marcha para a esquerda e o fim do duopólio blancos-colorados no Uruguai também é um fenômeno nacional.”

A professora Maria Regina Soares Lima, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), contra argumentou que a crise dos partidos não é uma exclusividade da América Latina. Existe também na Europa.

Maria Regina fez três observações gerais, disse que há três processos em curso e levantou cinco questões sobre a política externa brasileira.

Suas observações:
• A análise sempre corre o risco de tomar a conjuntura, um problema passageiro, pela estrutura: “Lembrem-se do fim da Guerra Fria”.
• A política externa brasileira vai da vizinhança permanente, das relações na região, a uma geometria variável para acomodar os interesses nacionais diante do mundo inteiro.
• Do ponto de vista da reputação brasileira, a violência em São Paulo pesa muito mais do que a crise com a Bolívia. Passa a imagem de um Estado frágil e incapaz.

Os três processos que orientam a inserção no mundo são:
• a globalização, que abre mercado, inclusive entre os países do Sul, e leva empresas brasileiras ao exterior;
• a democratização, com aumento da participação popular e uma crise das oligarquias; e
• o nacionalismo, conseqüência dos dois processos anteriores: um nacionalismo energético [fenômeno não apenas sul-americano] e a tentativa de reconstruir a partir do Estado uma capacidade interna de crescimento, casos da Argentina e da Bolívia.

VISÃO DE CURTO PRAZO
“Se todos os governos agem por demandas domésticas, com uma visão de curto prazo”, conclui Maria Regina, não haverá integração, que é uma opção estratégica de longo prazo.

Isto a leva a colocar cinco questões sobre a política externa brasileira:
1. Há um desequilíbrio entre os interesses e o poder do Brasil. A supremacia não se traduz em influência.
2. O Brasil não pensa na região. A hegemonia é uma capacidade de universalizar seus próprios valores.
3. A América do Sul está no hemisfério da única superpotência. Busca um equilíbrio suave nas relações com os EUA.
4. Há uma distancia muito grande entre os interesses do Brasil no exterior e a resposta da sociedade brasileira.
5. Há interesse numa coordenação com outros países. Uma oferta chilena [de uma saída da Bolívia para o mar] desarmaria a crise boliviana mas é difícil imaginar que um governo do Chile faça isso.

Maria Regina lembrou que era política do Barão do Rio Branco quando ministro das Relações Exteriores (1902-12) “não cristalizar conflitos territoriais”.

O Barão resolveu todas as nossas questões territoriais com os países vizinhos. Ainda que o presidente Evo Morales tenha levantado a questão do Acre, foi mais uma jogada retórica no meio da crise Brasil-Bolívia. O Acre pertencia à Bolívia mas foi ocupado por seringueiros brasileiros no final do século 19, durante o ciclo da borracha.

Quando americanos e ingleses descobriram que a borracha acreana era de boa qualidade, organizaram o Bolivian Sindicate para tentar retomar o território e negociar um contrato com o governo boliviano. Mas o Brasil, sob o comando do general Plácido de Castro, venceu a Guerra do Acre. Em 1903, pelo Tratado de Petrópolis, o Brasil pagou 2,5 milhões de libras pelo território e se comprometeu a fazer a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para facilitar o escoamento dos produtos bolivianos pelo Oceano Atlântico.

A ferrovia, construída por uma empresa americana, custou milhares de vidas e uma fortuna. Ficou pronta em 1912. Com a inauguração do Canal do Panamá, em 1914, tornou-se obsoleta. Mas esta é outra história. Entre os problemas da integração sul-americana, há formidáveis barreiras geográficas: a Cordilheira dos Andes e a Floresta Amazônica.

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