sexta-feira, 30 de junho de 2006

França vive crise de identidade

Berço da revolução e do conceito de democracia, a França, adversária do Brasil na Copa do Mundo neste sábado, é um símbolo da sofisticação e do refinamento, da alta cultura e da alta cozinha. Depois das duas guerras mundiais, liderou o processo de integração da Europa. Mas hoje, sob pressão das forças da globalização econômica que ameaçam o modelo social-democrata, vive uma crise de identidade.

O sintoma mais evidente desta crise foi a rejeição pelos franceses, em 29 de maio do ano passado, da Constituição da Europa, um projeto coordenado pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing. Com a nau européia à deriva, o presidente Jacques Chirac e o primeiro-ministro Dominique de Villepin desmoralizados por uma série de escândalos, a própria França parece sem rumo, incapaz de definir seu destino.

Centro de um dos maiores impérios coloniais da História, a França dominava o Norte da África e parte do Sudeste Asiático, a chamada Indochina francesa, hoje dividida entre Vietnã, Laos e Camboja. Produziu jóias arquitetônicas como o Palácio de Versalhes e Paris, talvez a cidade mais linda do mundo, e um dos maiores generais de todos os tempos, Napoleão Bonaparte. Foi um grande centro de desenvolvimento da ciência e das artes, sobretudo a partir do século 18, o Século das Luzes, que termina com a Revolução Francesa (1789), marco do início da Idade Contemporânea.

Arrasada depois das duas guerras mundiais, ocupada pela Alemanha nazista de 1940 a 1944, a França resolveu se livrar definitivamente deste passado de destruição e morte, aproximando-se da inimiga histórica para lançar o projeto de integração européia. Nunca mais as potências européias se enfrentaram no campo de batalha.

Em 9 de maio de 1950, cinco anos depois da rendição da Alemanha, a França apresentava o Plano Schuman, batizado em homenagem a seu ministro do Exterior francês, Robert Schuman.

No ano seguinte, nascia a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, com o objetivo prioritário de controlar as duas matérias-primas essenciais para a indústria bélica. Os mesmos países (Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo) criariam em 1957 a Comunidade Européia de Energia Atômica e a Comunidade Econômica Européia. Ambas começam a funcionar em 1º de janeiro de 1958.

Com a recuperação da Alemanha, que se tornaria a maior economia da Europa e a terceira maior do mundo, a França via a ex-inimiga como locomotiva econômica e a si mesma como líder política do processo de integração, que girava em torno do eixo franco-alemão.

A CEE foi a única experiência bem-sucedida da primeira onda de regionalismo, talvez por ser a única apoiada pelos Estados Unidos, que, como potência hegemônica do mundo capitalista, eram contra projetos de integração regional. Eles poderiam fechar mercados para produtos americanos.

Mas a CEE, além de ser uma garantia de paz na Europa Ocidental, formava um bloco econômico forte capaz de se opor ao bloco soviético durante a Guerra Fria.

UNIÃO EUROPÉIA
Com o sucesso da integração européia, Dinamarca, Grã-Bretanha e Irlanda aderem nos anos 70, Grécia, Espanha e Portugal nos anos 80. Depois do fim da Guerra, nos anos 90, entram Áustria, Suécia e Finlândia, que eram neutras.

Em 2004, a União das Comunidades Européias ou União Européia (nome adotado no Tratado de Maastricht, de 1991) recebeu mais 10 países-membros: quatro países do antigo bloco soviético, Hungria, Polônia, República Tcheca e Eslováquia; três ex-repúblicas soviéticas, Estônia, Letônia e Lituânia; Eslovênia, Chipre e Malta.

A Europa dos 25 diluiu o poder da França, que vê a UE como uma forma de manter seu poder no mundo e de participar do jogo geopolítico, especialmente contrabalançando o poderio americano.

Para impedir uma paralisia do sistema de tomada de decisões que inviabilizaria a Europa política, reduzindo-a a um mercado comum, surgiu o projeto de Constituição da Europa. Mas o projeto, mais do uma Constituição era uma consolidação dos tratados constitutivos da UE.

Sem o poder constituinte, que deriva do povo, o projeto foi um texto produzido por notáveis que não levou em conta as verdadeiras apreensões do cidadão europeu e em especial do francês, o aumento do desemprego, as pressões da globalização, a concorrência cada vez maior dos países asiáticos, a transferências de fábricas e empresas para países de mão-de-obra mais barata. O resultado foi sua rejeição na França e na Holanda, em 2005.

Com 60 milhões de habitantes e um produto interno bruto de US$ 1,5 trilhão, a França é o sexto país mais rico do mundo, depois de EUA, Japão, Alemanha, China e Grã-Bretanha. Subsidia fortemente a agricultura. É um dos países que mais resistem à abertura dos mercados para produtos agrícolas, pela qual o Brasil luta na Organização Mundial do Comércio. Potência nuclear desde 1960, é membro permanente, com direito de veto, do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Nesta condição, a França se opôs tenazmente à invasão do Iraque pelos EUA em março de 2003, ameaçando vetar qualquer resolução da ONU que autorizasse a guerra. Não conseguiu evitar a guerra mas teve uma vitória moral sobre seu arquirrival. Seu ministro do Exterior, De Villepin, acabou sendo escolhido chefe de governo por Chirac.

Mas depois da revolta da periferia, em que jovens de origem estrangeiras incendiaram carros e provocaram arruaças nos arredores de Paris em outubro e novembro do ano passado, De Villepin propôs a Lei do Primeiro Emprego, criando contratos de trabalho precários para jovens de até 26 anos.

Seu objetivo era combater o desemprego, de cerca de 9%, que chega a 23% entre os jovens e a 40% entre os jovens de origem estrangeira. Mas os estudantes e sindicalistas viram na medida um primeiro passo para acabar com as garantias sociais e trabalhistas.

Uma onda de manifestações de protestos sepultou a lei. De Villepin continua no governo mas saiu muito enfraquecido. Ficou em situação ainda pior por causa de um escândalo em que envolvia o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, seu rival na disputa pela candidatura de direita à eleição presidencial de maio de 2007, num falso escândalo financeiro.

Sarkozy é visto como um liberal que está disposto a desmantelar o modelo social-democrata, introduzindo um liberalismo anglo-saxão rejeitado por significativa parcela da sociedade francesa. É acusado de destruir o gaulismo, a corrente política do general Charles de Gaulle, líder do país no pós-guerra. Mas é a grande estrela em ascensão na política francesa.

A confusão na direita dá possibilidades de vitória para o Partido Socialista, abalado porque o então primeiro-ministro Lionel Jospin perdeu a vaga no segundo turno para o neofascista Jean-Marie Le Pen em 21 de abril de 2002. Sua estrela em ascensão é a ex-ministra Ségolène Royal mas a candidatura socialista não está definida.

Esta ascensão da extrema direita é outro sintoma da doença da França. Com o desaparecimento do comunismo, boa parte da classe operária que votava no PCF, assustada pela globalização e pela onda de imigração, passou a votar na Frente Nacional.

A França é um dos países mais fascinantes do mundo, o mais visitado, famoso por seus vinhos e por ter transformado a culinária numa arte. Mas está extremamente insegura quanto ao seu futuro e de seu estilo de vida, que gostaria de impor ao mundo mas já não tem força para isso.

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