Às cinco da tarde de 19 de novembro, depois de um dia violento para os fuzileiros navais dos Estados Unidos no Vale do Alto Rio Eufrates, caminhões foram chamados para recolher os corpos de 24 civis iraquianos. Em Haditha, eles encontraram mulheres, crianças e bebês baleados na cabeça e no peito. Um velho numa cadeira de rodas fora atingido nove vezes. Entre os mortos, havia um grupo de meninas de 1 a 14 anos.
Mas, no dia seguinte, o capitão Jeffrey Pool, um dos porta-vozes do Corpo de Fuzileiros Navais, divulgou uma declaração dizendo que 15 iraquianos “foram mortos com a explosão de uma bomba à beira de uma estrada em Haditha. Imediatamente depois da explosão, pistoleiros atacaram o comboio com armas leves. Soldados iraquianos e marines responderam ao fogo, matando oito insurgentes e ferindo outro”.
Apesar do que os fuzileiros navais viram naquele dia, este versão oficial mentirosa se manteve por seis meses e até hoje não foi oficialmente corriga pelos marines. Quem sabia da verdade e quem encobriu o massacre são questões centrais de um dos dois inquéritos do Departamento da Defesa dos EUA sobre uma atrocidade capaz de ofuscar as denúncias de tortura na prisão de Abu Ghraib, perto de Bagdá.
O Corpo de Fuzileiros Navais alega que não deve se pronunciar enquanto o assunto estiver sob investigação. Mas as provas de acobertamento da chacina se acumulam, como afirma o jornal The Washington Post, revelando novos detalhes da tragédia.
Em 29 de novembro, a Companhia Kilo do 3º Batalhão do 1º Regimento de Fuzileiros Navais prestou homenagem ao sargento Miguel Terrazas, cuja morte provocou a vingança dos soldados americanos. Pouco depois, cada família dos 15 civis iraquianos reconhecidamente mortos recebeu a indenização máxima oferecida pelos EUA: US$ 2,5 mil por morto.
Um dos oficiais presentes em Haditha, Mike Coffman, fala que outro oficial comentou o incidente “indicando que ele pensara que a reação dos fuzileiros navais tinha sido exagerada mas que não acreditava que algum crime tivesse sido cometido”. Coffman também alegou que, quando a Câmara Municipal de Haditha se reuniu em janeiro, “ninguém levantou a questão”.
Também em janeiro, chegou ao Iraque o general Peter Chiarelli, atual subcomandante das forças dos EUA no país ocupado. Estava disposto a mudar a maneira como os soldados americanos agiam. Tinha elogiado um artigo de um oficial britânico criticando os soldados americanos por empregar táticas que alienam a população.
Dias depois, um estudante de jornalismo iraquiano deu a um grupo de defesa dos direitos humanos um vídeo gravado logo após o massacre mostrando o necrotério de Haditha e os danos causados às casas onde a matança ocorreu. Este vídeo chegou à revista Time, que pediu explicação aos marines. Por email, o porta-voz Jeffrey Pool negou a autenticidade do vídeo: “Não posso acreditar que vocês estão comprando esta versão”.
A reação do general Chiarelli foi mandar ouvir o repórter no inquérito policial militar sobre o caso. Só então descobriu que as Forças Armadas dos EUA não estavam investigando o massacre. Ordenou que isto fosse feito imediatamente.
Em 9 de março, o coronel Gregory Watt, responsável pela investigação, disse ao general ter chegado a duas conclusões. Primeiro, que os 15 iraquianos que os fuzileiros navais declararam ter morrido na explosão tinham sido mortos a bala. Segundo, que o Corpo de Fuzileiros Navais não tinha investigado o caso, procedimento normal das Forças Armadas dos EUA quando há muitos civis mortos.
No dia seguinte, 10 de março, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e o general Peter Pace, primeiro fuzileiro naval a chefiar o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, foram informados. Rumsfeld logo percebeu que tinha nas mãos uma bomba “realmente muito ruim, tão ruim ou pior do que Abu Ghraib”.
O presidente George Bush ficou sabendo em 11 de março.
Dois dias depois, oficiais do Corpo de Fuzileiros Navais começaram a informar o Congresso sobre Haditha.
Em 12 de março, o Serviço de Investigações Criminais da Marinha mandou uma equipe de três investigadores a Haditha, que fica numa das regiões mais violentas do Iraque. Quando ficou evidente a gravidade da situação, seguiu reforço dos EUA.
A primeira notícia sobre o massacre em Haditha saiu na revista Time em 19 de março. “Vi eles atirarem no meu avô, primeiro no peito e depois na cabeça”, contou Eman Walid, um menino de apenas nove anos. A maioria das vitimas foi baleada à queima-roupa, afirmou o diretor do hospital da cidade.
Os primeiros responsáveis começaram a cair em 7 de abril. O coronel Jeffrey Chessani, um oficial discreto e reservado, na descrição do Washington Post, perdeu o comando do 3º Batalhão do 1º Regimento dos Fuzileiros Navais. Também foram destituídos o comandante da Companhia Kilo, capitão Luke McConnell, e o comandante de outra companhia. O Corpo de Fuzileiros Navais limitou-se a dizer que “tinham perdido a confiança de seus superiores”.
Mais de um mês se passou antes que o escândalo estourasse. Em 17 de maio, o deputado democrata John Murtha afirmou que o que acontecera em Haditha “era muito pior do que o que o Time publicara”. O inquérito vai revelar, acrescentou, que “nossas tropas reagiram exageradamente sob pressão e mataram civis inocentes a sangue frio”.
Os repórteres continuaram fazendo suas perguntas. Uma foi sobre as forças de segurança do Iraque. Outras sobre a retirada americana e uma moção proposta por Murtha para que os EUA saiam imediatamente do Iraque. Só a quarta pergunta foi sobre Haditha: “Eles invadiram casas e mataram mulheres e crianças”.
Na semana passada, o ex-procurador militar Vaughan Taylor sintetizou o sentimento da opinião pública americana revoltada com o massacre: “Isto é uma repetição de My Lai”. Referia-se ao massacre de 16 de março de 1968, quando soldados americanos destruíram uma aldeia do Vietnã do Sul onde esperavam encontrar guerrilheiros do Vietcongue. A diferença é que foram 347 mortes.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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