O ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez "tinha uma visão binária do mundo", observa o escritor e historiador mexicano Enrique Krause. Via o mundo dividido entre amigos e inimigos, chavistas e pityankees, pobres e elites, patriotas e traidores". Sua vocação para a reforma social foi comprometida por "uma anacrônica admiração do modelo cubano e pela cega veneração ao caudilho eterno [Fidel Castro], a quem muitas vezes chamou de pai".
Em artigo publicado no jornal espanhol El País, Um amanhecer diferente para a Venezuela, Krause acrescentou: "Nenhuma democracia prospera onde há um homem absolutamente necessário, imprescindível, único e providencial, que reclama para si a propriedade privada dos recursos públicos, das instituições públicas, do discurso público, da verdade pública".
"O povo que tolera ou aplaude essa delegação absoluta de poder a uma pessoa", prossegue o raciocínio do escritor mexicano, "abdica de sua liberdade e condena a si mesmo a uma adolescência cívica porque essa delegação supõe a renúncia à responsabilidade sobre seu próprio destino".
Para Krauze, "o dano maior é a discórdia dentro da família venezuelana". Ele cita como exemplo "o ódio induzido do microfone do poder contra um amplo setor da população que dissentia desse poder. O ódio dos discursos, das faixas e cartazes, dos punhos cerrados, o ódio dos arrogante porta-vozes do regime em programas de rádio e televisão. O ódio das redes sociais infestadas por insultos, calúnias, mentiras, teorias conspiratórias, desqualificações e preconceitos. O ódio do fanatismo ideológico e do rancor social. O ódio que se fecha à razão e é impermeável à tolerância. Essa é a chaga histórica que deixa o chavismo".
Com a tradição caudilhista e a religiosidade da venezuela, o historiador acredita que a "santificação" de Chávez possa ser mais profunda e permanente do que a de Evita Perón na Argentina.
Ao morrer prematuramente aos 58 anos, Hugo Chávez alcançou a imortalidade, comenta Krauze: "Na alma de muitos de seus compatriotas (e de não poucos simpatizantes na América Latina) vai dividir a glória com o Libertador" Simón Bolívar.
Quando o longo funeral terminar e passar a eleição presidencial de 14 de abril, chavistas e não chavistas terão de enfrentar a situação econômica da Venezuela. Apesar de receber US$ 800 bilhões com petróleo na era Chávez, o crescimento foi um dos mais baixos do continente.
O déficit público chega a US$ 70 bilhões. Um dólar vale 6,30 bolívares no câmbio oficial e 23 no mercado negro. Há escassez de divisas (moedas fortes) e racionamento de energia no país com as maiores reservas mundiais de petróleo. A inflação estava acima de 20% ao ano antes da recente macrodesvalorização da moeda. Deve passar de 30%.
"Há desabastecimento de 20% dos produtos nos supermercados por causa da queda na capacidade produtiva, êxodo de profissionais de classe média e crônica falta de investimentos", nota Krauze.
Talvez a explicação esteja no setor de petróleo. Em 1998, quando os preços internacionais caíram para cerca de US$ 10 o barril por causa da crise econômica asiática e Chávez foi eleito presidente pela primeira vez, a Venezuela produzia 3,3 milhões de barris diários e exportava 2,7 milhões.
Agora, a produção caiu para 2,4 milhões de barris e, pelos dados citados pelo mexicano, só os 900 mil barris diários exportados para os Estados Unidos, o "odiado Império", seriam efetivamente pagos.
Cerca de 800 mil barris são reservados ao consumo interno. A Venezuela tem a gasolina mais barata do mundo. Custa R$ 0,03 por litro. Outros 100 mil servem para pagar a importação de gasolina por falta de capacidade de refino; 300 mil pagam créditos e produtos importados da China; 300 mil vão para países da América Central e do Caribe através da Petrocaribe, subsidiária da PdVSA (Petróleos de Venezuela); e 100 mil vão para Cuba em troca do envio de médicos, professores e policiais cubanos.
Sem sombra do carisma do presidente morto, Maduro precisa apresentar resultados na economia. Caso contrário, logo será acusado de não estar à altura do líder. "Com Chávez, não seria assim", "Chávez já teria resolvido" e outras frases nesse sentido serão um teste permanente.
Otimista, Krauze aposta na reconciliação da Venezuela pós-Chávez e na mudança do regime cubano para que todos os países da América Latina oscilem então entre "regimes de esquerda social-democrata e governos a favor de economia mais aberta e liberal".
Talvez, conclui, o século 21 enterre o "caudilhismo militarista" e o "redencionismo iluminado" para que a América Latina possa viver "um amanhecer plenamente democrático".
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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