É uma tragédia anunciada desde que o povo saiu às ruas para rejeitar o golpe militar de 1º de fevereiro em Mianmar, a antiga Birmânia, um país do Sudeste Asiático. Duas pessoas haviam sido mortes em protestos anteriores.
Hoje, as forças de segurança abriram fogo contra manifestações em mais de uma cidade. Pelo menos 18 pessoas morreram no domingo sangrento em Yangum, a antiga Rangun, maior cidade do país. Algumas fontes falam em 26 mortos.
Os militares derrubaram o governo civil sob a alegação de que houve fraude maciça nas eleições de 8 de novembro de 200, em que a Liga Nacional pela Democracia (LND), liderada por Aung San Suu Kyi, conquistou ampla maioria na Câmara dos Representantes e na Câmara das Nacionalidades da Assembleia da União, o parlamento bicameral do país.
Até agora, as Forças Armadas e a polícia estavam usando gás lacrimogênio, bombas de efeito moral e balas de borracha. Neste domingo, pela primeira vez, usaram munição real em Yangum, Mandalay, Bago e Dawei. O Escritório dos Direitos Humanos das Nações Unidas no país condenou a violência e declarou que "o uso de violência letal contra manifestantes não violentos nunca é justificável sob as normas internacionais dos direitos humanos."
"Quantas vidas são necessárias para a ONU agir?", perguntou Nyi Nyi Aung Htet Naing no sábado à noite no Facebook. No domingo, o engenheiro civil de 23 anos foi baleado e morto em Yangum.
Os militares mandam em Mianmar desde um golpe em 1962. Transformaram um dos países mais ricos da região num dos mais pobres e atrasados. Em 8 de agosto de 1988, massacraram 3 mil pessoas em Yangum, a antiga capital e principal cidade do país, no chamado Levante 8888.
A principal líder civil do país, Aung San Suu Kyi, é filha do herói da independência do país do Império Britânico, em 1948, Aung San, assassinado pouco antes da independência. Suu Kyu estudou na Universidade de Déli, na Índia e nas Universidades de Oxford e de Londres, na Inglaterra, casou-se com um inglês e trabalhou na ONU em Nova York.
Suu Kyi voltou ao país para cuidar da mãe doente em 1988. Diante do massacre, tornou-se líder da oposição com um comício para 500 mil pessoas em 26 de agosto e fundou a LND. No ano seguinte, foi colocada em prisão domiciliar. A LND conquistou 59% dos votos e 81% das cadeiras da Assembleia da União em 1990. Os militares anularam as eleições.
Em 1991, Suu Kyu ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Presa em casa, não pôde receber. Durante 21 anos, ela ficou 15 em prisão domiciliar. Duas vezes, em 1996 e 2003, sua caravana foi atacada quando fazia política no interior do país.
A breve experiência democrática mianmarense veio em consequência de uma catástrofe da natureza. Com ventos de até 215 quilômetros por hora, o ciclone Nargis arrasou a região do delta do Rio Irauádi. Mais de 138 mil pessoas morreram. O prejuízo passou de US$ 10 bilhões.
Com o país falido, os militares anunciaram uma abertura democrática em 2010 e a LND voltou a pedir registro como partido político, em 2011. O governo Barack Obama apoiou a democratização. Nas eleições de 2012, ela chegou à Assembleia da União. No mesmo ano, foi aos EUA, recebeu a Medalha de Ouro do Congresso e esteve com o presidente Obama na Casa Branca.
Em 2015, a LND obteve outra grande vitória, mas Suu Kyi foi barrada de se candidatar à Presidência por ser viúva de um estrangeiro e ter dois filhos estrangeiros. Virou então, em 2026, Conselheira do Estado, uma espécie de primeira-ministra, cargo que exercia até o golpe.
Desde então, ela está prisão domiciliar. A primeira acusação foi de importar 10 equipamentos de telecomunicações tipo walkie-talkie. Depois, também foi denunciada por violar a Lei de Gestão de Desastres, por interagir com uma multidão durante a pandemia do novo coronavírus, e incitação a distúrbios da ordem pública. Pode ser condenada a até nove anos de prisão.
O presidente U Win Myint também está preso e incomunicável sob a acusação de infringir a lei sobre catástrofes e incitar a distúrbios da ordem. O prefeito da capital, Naipidau, Myo Aung, foi denunciado por incitar à desordem.
No governo, Suu Kyi manchou sua imagem internacional ao aceitar o genocídio da etnia muçulmana rohingya, vítima de massacres cometidos pelos militares, o que levou à fuga de 700 mil pessoas para Bangladesh em 2016 e 2017. Foi acusada de "legitimar o genocídio".
Diante do Tribunal Internacional de Justiça da ONU, em Haia, na Holanda, ela defendeu a atuação dos militares contra a minoria rohingya. O arcebispo sul-africano Desmond Tutu, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1984, pediu que o Nobel de Suu Kyi fosse retirado. Mas ela continua sendo a líder do país.
Ela pode ter se resignado diante da superioridade do poder de fato dos militares, mas há fortes suspeitas de que compactue com a visão nacionalista dos militares, que são budistas e enfrentam rebeliões de nove grupos armados de alguns dos 135 povos que vivem no país. Muitos lutam pela independência desde que o país deixou o Império Britânico.
A mais longa guerra civil em andamento no mundo justifica a ditadura e os massacres.
A China apoia a ditadura. Descreveu o golpe como uma "reforma ministerial". Nas ruas, os manifestantes denunciam o regime comunista chinês e pedem apoio aos EUA, que anunciaram sanções contra o golpe militar. O Japão, maior democracia da Ásia, ficou em silêncio.