As Nações Unidas convidaram ontem oficialmente o Brasil a integrar a força internacional de paz na República Centro-Africana, um país sem governo estável, que fica no coração da África, na região do Sahel, ao Sul do Deserto do Saara, onde há atividade de extremistas muçulmanos da Mauritânia à Somália, passando pelo Burkina Fasso, Mali, Nigéria, Níger, Chade, Camarões, Etiópia e Somália, e armas em abundância da guerra civil na Líbia.
"Será muito mais difícil", admitiu hoje o general Ajax Porto Pinheiro, último comandante da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), chefiada pelo Brasil desde seu início, em 2004, até seu encerramento, em outubro de 2017. Ele fez um balanço da operação hoje na sede da ONU, no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro.
Com entusiasmo e olhar no futuro, o general declarou que "o Haiti é passado". Pinheiro chegou ao país como coronel no pior momento da história haitiana recente, logo depois de terremoto de 12 de janeiro de 2010, que matou de 200 a 300 mil pessoas. O país virou uma "república das organizações não governamentais", comentou o general Pinheiro. "Eram 300 antes do terremoto, 20 mil depois."
Apesar da promessa de ajuda de US$ 10 bilhões para a reconstrução do Haiti depois do terremoto, mais uma vez a sociedade internacional ficou devendo. "O país melhorou muito. A capital, Porto Príncipe, é um exemplo: ruas asfaltadas, canais drenados, a economia reagiu, há novos hotéis turísticos, mas não foi o que foi prometido", constatou.
"No primeiro impacto, todos querem ajudar. Surgem outros problemas e os recursos não chegam. Depois do furacão Matthew, no ano passado, não houve a mesma ajuda. O centro da cidade, já degradado, continua abandonado. O aeroporto melhorou e o porto é melhor do que antes", avaliou.
Na sua opinião, "o Haiti precisa de um projeto socioeconômico com energia, reflorestamento e controle da natalidade, um verdadeiro Plano Marshall", referência à reconstrução da Europa financiada pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.
Sua missão inicial, em 2010, era colaborar na realização de eleições. Com a tragédia, em que morreram soldados e oficiais brasileiros, a tropa precisou prestar ajuda humanitária. "As eleições duraram um ano e meio. Passei por quatro eleições, dois furacões e um terremoto", recordou.
"O Exército não foi para o Haiti para controlar a Cité Soleil", uma favela de Porto Príncipe, para treinar para ocupar favelas na periferia das grandes cidades brasileiras. "Fomos pacificar o país e evitar uma guerra civil", enfatizou o ex-comandante da missão da ONU no Haiti
Para ser um soldado da ONU, é preciso respeitar rigorosamente as regras da organização. Em seu preparo, o general e toda a tropa tiveram de estudar a trágica e tumultuada história do Haiti, uma colônia francesa onde os escravos se revoltaram em 1791, dois anos depois da Revolução Francesa de 1789. Depois que Napoleão assumiu o poder, em 1803, a França entrou em guerra com o governo revolucionário.
Os haitianos ganharam, mas logo começaram a brigar entre si pelo poder. "Jean-Jacques Dessalines se proclamou imperador. O país foi dividido em dois: Henri Christophe, no Norte, e Alexandre Pétion, no Sul." Isolado pelo resto do mundo, o país destruiu seus recursos naturais, suas florestas e fontes de água doce.
É hoje o país mais pobre da América, com produto interno bruto de US$ 9 bilhões, assolado por secas, enchentes, furacões e terremotos, "sem água, sem energia, sem infraestrutura e sem empregos", observou o ex-comandante da Minustah.
Num paralelo com a República Centro-Africana, o ditador Jean-Bédel Bokassa se coroou imperador com uma pompa napoleônica. De 1965 até uma intervenção militar da França, em 1979, o país se chamou Império Centro-Africano.
Durante a Guerra Fria, o Haiti foi governado pelo ditador François Duvalier (1957-71), o Papa Doc, e suas gangues de assassinos os Tontons Macoutes. Ele foi sucedido pelo filho Jean-Claude Duvalier (1971-86), o Baby Doc. Desde 1986, o Haiti teve 15 presidentes.
Em fevereiro de 1991, o padre Jean-Baptiste Aristide assumiu como primeiro presidente eleito da história do país. Seu governo durou sete meses. Foi derrubado pelo comandante das Forças Armadas, general Raoul Cédras, hoje exilado no Panamá.
Sob pressão dos EUA, os militares devolveram o poder a Aristide em 1994. Ele presidiu o Haiti até 1996. Foi sucedido por René Préval (1996-2001), na primeira transição de poder democrática da história do país.
Reeleito em 2001, Aristide governou até 2004. Caiu sob pressão dos Estados Unidos e da França, em meio a uma rebelião de paramilitares liderada por Guy Philippe. Aristide havia dissolvido as Forças Armadas em 1995, mas os ex-militares continuavam conspirando.
Em plena invasão do Iraque por ordem do presidente George W. Bush, os EUA pediram ao Brasil que assumisse o comando da missão de estabilização do Haiti. Uma das primeiras preocupações dos militares brasileiros foi fazer um plano para impedir um assalto das forças de Philippe à capital haitiana.
As eleições que Pinheiro ajudaria a organizar, previstas para 28 de fevereiro de 2010, foram realizadas em 28 de novembro, e o segundo turno em 20 de março de 2011. A vitória do cantor pop Michel Martelly foi anunciada em 21 de abril.
Ao todo, mais de 27 mil militares brasileiros estiveram no Haiti, mais do que os 25 mil que participaram da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. "Foi o maior envio de tropas ao exterior desde a Guerra da Tríplice Aliança", mais conhecida como Guerra do Paraguai (1864-70). Vinte e cinco brasileiros morreram, inclusive dois generais; 18 mortes foram no terremoto.
No comando da missão, cargo que ocupou de outubro de 2015 até outubro de 2017, "não tem com quem compartilhar os erros. É um risco diário, o medo de falhar, o medo de Ruanda, onde a ONU ficou devendo."
A missão de paz na República Centro-Africana ocorre sob o espectro da Síndrome de Ruanda, onde um batalhão da ONU não foi capaz de impedir o genocídio de 800 mil pessoas de abril a junho de 1994.
Depois do Haiti, Pinheiro acredita que o Brasil está preparado: "É precisa ser adaptável. Os soldados brasileiros se integram bem, são adaptáveis, estão sempre de bom humor e não cometemos nenhum abuso sexual, o que desmoraliza a tropa."
O comandante, acrescentou, precisa de liberdade para agir, tem de ter iniciativa, não pode consultar a ONU a cada decisão: "É preciso passar do planejamento à execução em pouco tempo."
Ajax Pinheiro gostaria de aumentar o período de permanência dos soldados no exterior de seis para nove meses: "Quando as tropas estão preparadas, conhecem o Sistema ONU, têm de voltar."
"A profissão militar é arriscada. Exige grande motivação. Na República Centro-Africana, eles podem ficar 4 a 6 meses longe da base, como uma tropa expedicionária, como fazemos na Amazônia", ponderou o ex-comandante da Minustah.
"Os soldados brasileiros vão desembarcar na República de Camarões, viajar mais mil quilômetros por terra até a República Centro-Africana e mais 400 km até a base. Vão atuar no campo. Vai ter pane. Vai haver ataques. Eles vão ficar sem comunicações. Vai morrer gente", previu o general.
"Soldado de força de paz tem ser bom atirador", advertiu. "Não pode errar o primeiro tiro. Tem de ter bom condicionamento físico. Não pode ter problema de saúde. Não cheguem como salvadores da pátria. Tenham menos impulsividade no início."
À espreita, estarão grupos rebeldes como a Séléka, uma aliança de milícia e grupo terrorista majoritariamente muçulmano formado em agosto de 2012. Isso envolve a República Centro-Africana no movimento jihadista num momento de competição entre a rede terrorista Al Caeda e o grupo Estado Islâmico do Iraque e do Levante.
Segundo grupo extremista muçulmano mais assassino, depois do Estado Islâmico, a milícia nigeriana Boko Haram, que jurou lealdade ao Estado Islâmico, age na Nigéria, no Níger, em Camarões e no Chade, enquanto Al Caeda no Magreb (a região muçulmano do Norte da África) atua no Mali e a milícia somaliana Al Chababe ataca na Somália e na Etiópia.
Do outro lado, estão as milícias cristãs conhecidas como Anti-Balaka (Anti-Espada ou Anti-Machete), formadas durante o governo golpista de Michel Djotodia, entre março de 2013 e janeiro de 2014. A Presidência foi entregue à presidente do Parlamento, Catherine Samba-Panza. Depois das eleições de dezembro de 2015 e fevereiro de 2016, venceu o ex-primeiro-ministro Faustin-Archange Touadéra, atual presidente.
No fim de 2014, a República Centro-Africana estava literalmente dividida entre a ex-Séléka (oficialmente dissolvida em 2013), no Nordeste, e a Anti-Balaka, no Sudoeste. Com a desmobilização inicial da Séléka, a Anti-Balaka ficou mais forte. A organização de defesa dos direitos humanos Anistia Internacional denunciou em 2014 vários massacres que deflagaram a fuga em massa de milhares de muçulmanos.
Em dezembro de 2015, os líderes da ex-Séléka declararam a independência da República de Logone.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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