quinta-feira, 31 de março de 2016

Desafios da realidade internacionail em 2016*


Pelas previsões do Fundo Monetário Internacional, o mundo não vai tão mal assim. Cresceu 3,1% em 2015 e deve avançar 3,4% em 2016 e 3,6% em 2017. Em janeiro, o Fundo reduziu suas projeções para os dois próximos anos em 0,2 ponto percentual. Mas a trajetória é ascendente.

Os Estados Unidos cresceram 2,4% no ano passado. Estão em recuperação estável. Devem crescer 2,5% neste ano e 2,6% em 2016 e em 2017. A Zona do Euro avançou 1,5% em 2015. Espera-se 1,7% neste ano e no próximo, enquanto o Japão patina em 0,6%, 1% em 2016 e 0,3% em 2017, lutando com a estagnação e a deflação, de acordo com a última Perspectiva Econômica Mundial do FMI, publicada em janeiro de 2016.

A desaceleração da China tem um impacto enorme sobre os países emergentes e em desenvolvimento dependentes da exportação de matérias-primas. Os preços desabaram. O crescimento chinês deve cair de 6,9% no ano passado para 6,3% neste e 6% em 2017. A meta oficial para este ano é 6,5% a 7%.

Entre as grandes economias, o país que mais cresce no mundo é a Índia, que passou a China no ano passado, com 7,5%. Deve ter uma expansão de 7,3% neste ano e 7,5% nos dois próximos anos, abaixo da média de 8,5% de 2005 a 2010.

Um milhão de jovens fazem 18 anos por mês na Índia. O país precisa gerar empregos. A Índia é hoje a nona economia do mundo, terceira pelo critério de paridade do poder de compra. Tem uma economia de US$ 2 trilhões, cinco vezes menor do que a chinesa.

Em 2015, o crescimento nos países emergentes e em desenvolvimento diminuiu pelo quinto ano seguido. Mesmo assim, estes países cresceram 4% em média em 2015 e devem avançar 4,3% em 2016 e 4,7% em 2017. São responsáveis hoje por 70% do crescimento mundial.

Estas projeções para os próximos dois anos pressupõem uma melhoria da situação econômica na Rússia e no Brasil. O grupo BRICS virou IC.

A fragilidade da economia mundial reduziu os preços do petróleo em 70% desde junho de 2014. Agora, recuperou-se um pouco, mas está está 60% abaixo do pico anterior, de US$ 110. O recorde foi US$ 147,50, em julho de 2008, antes da Grande Recessão. Ontem, o barril do petróleo West Texas Intermediate, do Golfo do México, padrão da Bolsa Mercantil de Nova York, estava em US$ 38.

A baixa de preços começou como uma manobra da Arábia Saudita e das monarquias petroleiras do Oriente Médio para derrubar produtores de custo mais elevado, por exemplo, do óleo de xisto dos Estados Unidos.

O baixo preço do petróleo ajuda a explicar a deflação na Europa e no Japão. É devastador para países exportadores, como Venezuela, Rússia, Argélia, Angola e Nigéria. Mas foi um tremendo estímulo à recuperação econômica dos importadores.

Energia barata significa redução de custos para todos. Em tempo de aquecimento global, é bom não esquecer que energia barata significa mais poluição e agravamento do efeito estufa. Mas, no mundo inteiro, os consumidores economizaram US$ 1 trilhão ao encher o tanque.

Houve uma recuperação de preços, mas a expectativa do mercado é de uma alta moderada nos preços do petróleo em 2016 e 2017. Com o acordo para desmilitarizar o programa nuclear, o Irã voltou ao mercado internacional.

Enquanto a economia mundial não voltar a crescer com mais vigor, a oferta tende a superar a procura. No momento, o risco maior nos países desenvolvidos é de estagnação e deflação.

A queda nos preços do petróleo reduz os investimentos no setor de energia, outro fator do baixo crescimento mundial.

Enquanto o Japão e a Zona do Euro continuam imprimindo dinheiro para estimular o investimento e o consumo, o banco central dos Estados Unidos voltou a elevar as taxas de juros, praticamente zeradas desde dezembro de 2008 para enfrentar a chamada Grande Recessão, uma comparação com a Grande Depressão de 1929-39. A ação decidida dos bancos centrais fez a diferença, talvez evitando uma nova depressão mundial.

Amanhã sai o relatório mensal de emprego de março do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos. Se a geração de empregos se mantiver no ritmo atual, é provável que o banco central dos Estados Unidos (Fed, de Federal Reserve) aumente suas taxas básicas de juros duas vezes em 2016. No fim do ano passado, o mercado previa quatro altas.

Com os problemas do início do ano na China, a decisão do Fed de elevar os juros pela primeira vez desde 2006 foi questionada. Mas o relatório de emprego de fevereiro, com saldo de 242 mil empregos, confirmou a estabilidade da recuperação americana.

O ativismo dos bancos centrais só não basta. Faltam líderes mundiais. Os governos estão devendo. Logo depois da crise, houve uma ação coordenada no Grupo dos Vinte (19 países mais ricos do mundo e a União Europeia). Logo, cada país voltou a seguir seus próprios interesses.

EUA
Nos Estados Unidos, que ainda é o país mais importante do mundo, o sistema politico-eleitoral está em crise. Desde a primeira eleição do presidente Barack Obama, em 2008, o Partido Republicano foi mais para a direita do espectro político, empurrado pelo movimento radical Festa do Chá.

O Partido Republicano conquistou maioria na Câmara em 2010 e no Senado em 2014, e passou a fazer obstrução sistemática a Obama, a ponto de se recusar no momento a examinar a indicação do presidente para preencher a vaga na Suprema Corte aberta com a morte o juiz conservador Antonin Scalia.

Obama nomeou Merrick Garland, um juiz apartidário considerado um conversador moderado. Mesmo assim, a maioria republicana no Senado promete não examinar a indicação na esperança de que o partido reconquiste a Casa Branca, mantenha a maioria nas duas casas do Congresso em 8 de novembro – e nomeie um ministro tão conservador quanto Scalia.

O problema é que o bilionário Donald Trump atropelou os candidatos preferidos da cúpula do partido e é o favorito para levar a indicação do partido. Se ele conquistar nas eleições primárias os 1.237 votos necessários para garantir a indicação, só um golpe de Estado dentro do partido poderá derrubar Trump.

Quem é Donald Trump? Um magnata imobiliário de Nova York que apresentava um programa de televisão O Aprendiz, em que demitia no ar candidatos a vagas na sua empresa. Roberto Justus fazia a versão brasileira.

Trump é divorciado e casou de novo mais de uma vez. Não tem aquela família de comercial de magarina que costuma morar na Casa Branca. Trump já financiou e defendeu causas normalmente associadas ao Partido Democrata, inclusive o aborto. Mas virou o favorito das classes média e baixa brancas atingidas pela globalização, do homem branco sem curso superior.

Durante a campanha, Trump ofendeu as mulheres várias. Destratou a apresentadora Megyn Kelly, da Fox News, o canal ultraconservador que apoia o Partido Republicano. E defendeu a proibição do aborto  e punição para as mulheres que fizerem aborto, depois voltou atrás e falou em punir só os médicos. Mais de 70% das mulheres o rejeitam.

Também acusou os mexicanos de contrabando, crimes sexuais e tráfico de drogas. Promete construir um muro na fronteira sul a ser pago pelo México, o que levou o ex-presidente mexicano Vicente Fox a responder com um sonoro palavrão. Alienou o voto latino-americano.

Arrogante e prepotente, Trump acusa o governo de se curvar diante dos parceiros comerciais dos Estados Unidos e promete milagres com seu talento de negociador. É protecionista e ameaça provocar guerras comerciais com a China, o Japão, o México...

Trump promete usar a força para acabar com o Estado Islâmico, reintroduzir o afogamento e outras formas de torturas na luta contra o terrorismo, e até mesmo proibir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos – uma violação da Emenda nº 1 à Constituição dos Estados Unidos, que garante as liberdades de expressão, religiosa, de associação para fins pacíficos e o direito de acionar o governo para reparar lesões do direito individual.

É um demagogo populista com forte poder de sedução, pelo menos entre o eleitorado republicano. O matemático Nate Silver previu o resultado das duas últimas eleições americanas jogando uma massa de dados de pesquisas no computador e analisando os números resultantes.

Na opinião de Silver, o único republicano capaz de derrotar Hillary Clinton seria Marco Rubio. Tanto Trump quanto Ted Cruz sofreriam uma rejeição muito grande numa eleição nacional. Isso se chama Jornalismo de Dados. Silver está em fivethirtyeight.com.

Cruz é odiado em seu próprio partido. Senador pelo Texas, discursou 72 horas sem parar no Senado para forçar o fechamento do governo federal por falta de orçamento. É evangélico, contra o aborto e a favor das armas de guerra. Fez um anúncio de campanha em que frita bacon no cano de uma metralhadora.

Este é o nível da campanha. Do lado democrata, Hillary é acusada de usar e-mail privado quando secretária de Estado, colocando em risco a segurança nacional, e também pelas doações recebidas pela Fundação Clinton, que administra as palestras proferidas por ela e o marido, o ex-presidente Bill Clinton. Só de monarquias petroleiras do Oriente Médio, ganharam US$ 40 milhões.

O senador socialista Bernie Sanders vem obtendo vitórias significativas nas primárias ao colocar em discussão a desigualdade econômica e a concentração da riqueza, mas tem pouca chance real de destronar Hillary. Sempre cobra os textos das palestras feitas por Hillary para “seus amigos de Wall Street”, o centro financeiro de Nova York.

No Congresso, há expectativa de que os republicanos mantenham a maioria, mas preocupa o possível fracasso de uma candidatura Trump, capaz de arrastar junto outros candidatos do partido.

Durante os governos Obama, o Partido Democrata perdeu governos estaduais, deputados, senadores e membros dos legislativos estaduais. E o Partido Republicano está sendo destroçado por Trump.

O sistema político americano é disfuncional. O processo legislativo está paralisado pela falta de um consenso mínimo e as eleições primárias estão produzindo Donald Trump e Ted Cruz. Bernie Sanders é chamado de populista porque suas propostas exigiriam um orçamento anual de US$ 14 trilhões, três vezes maior do que o atual. Não teria autorização do Congresso.

Há um discrédito nos partidos políticos dos dois lados do Atlântico. A  ascensão da Frente Nacional na França e de outros partidos de extrema direita como Alternativa para a Alemanha ou o Partido da Independência do Reino Unido indicam o desgaste dos partidos tradicionais.

Na Alemanha, antes da crise dos refugiados, os dois maiores partidos receberam a menor porcentagem de votos desde a Segunda Guerra Mundial. Na Espanha, dois novos partidos dividiram o eleitorado de modo que não foi possível formar governo depois das últimas eleições. Na Itália, o Movimento 5 Estrelas, do humorista Beppe Grillo, foi o mais votado.

É uma crise da representação, da democracia representativa, no mundo inteiro, inclusive aqui no Brasil, e um debate sobre democracia participativa.

A atual polarização é um sintoma do declínio relativo dos Estados Unidos. Normalmente os candidatos à Presidência dos EUA se elegem com os votos dos independentes e até dos moderados do outro partido, como os democratas do Reagan, insatisfeitos com a inflação e a crise econômica do governo Jimmy Carter (1977-81).

Assim, Hillary é franca favorita. Se Trump não surpreender mais uma vez, temos a perspectiva da eleição de uma mulher para a Casa Branca. O banco central dos Estados Unidos já é presidido por uma mulher Janet Yellen. 

Na Europa, a primeira-ministra Angela Merkel lidera as decisões de combate às crises econômica e dos refugiados. Temos mulheres no poder dos dois lados do Atlântico.

CHINA
A China, segunda potência mundial, chegou lá por causa do seu extraordinário desenvolvimento econômico nos últimos 35 anos. No ano passado, cresceu oficialmente 6,9%, ligeiramente abaixo da meta de 7%.

As estatísticas chinesas provocam suspeitas. Se a economia estivesse dentro da meta não seriam necessárias tantas medidas de estímulo como desvalorização da moeda, cortes nas taxas de juros e nos depósitos compulsórios dos bancos no Banco Popular da China.

Com a queda no comércio exterior causada pela crise mundial, o governo chinês promete reorientar a economia do investimento e da exportação para os serviços, o consumo e o mercado interno.

Ao mesmo tempo, a economia chinesa precisa gerar pelo menos 10 milhões de empregos por ano só para absorver quem está entrando no mercado de trabalho. Uma reforma econômica precisa reduzir a capacidade ociosa, especialmente das empresas estatais ineficientes.

Há décadas o modelo chinês é orientado para o crescimento econômico. Isso legitima o regime dominado pelo Partido Comunista depois do declínio do marxismo-leninismo como ideologia. Todo prefeito e governador quer apresentar altas taxas de crescimento. Isso infla as estatísticas e leva a investimentos e obras desnecessárias.

Na sessão anual do Congresso Nacional do Povo, ficou evidente na prestação de contas e apresentação de planos de governo pelo primeiro-ministro Li Keqiang. Entre o crescimento e a reforma, o regime vai optar pelo crescimento por medo de uma crise social.

Mais estímulos podem evitar uma aterrissagem forçada, mas sem eliminar as dívidas incobráveis, reformar as empresas estatais e acabar com os monopólios a economia de serviços não vai deslanchar. O velho modelo econômico não funciona mais e o novo ainda não apareceu.

Uma crise econômica profunda pode levar ao questionamento da legitimidade do PC para governar a China. E o regime também enfrenta seus conflitos internos.

O atual líder supremo Xi Jinping, chefe do partido desde o fim de 2012 e presidente desde março de 2013, é considerado o mais poderoso líder chinês desde Deng Xiaoping, o arquiteto das reformas econômicas. Para se consolidar no poder, Xi ele move uma campanha anticorrupção contra seus adversários dentro do partido e do governo.

Neste clima, a repressão aos dissidentes e a censura aumentaram. Houve vários casos recentes de sequestro de editores, inclusive em Hong Kong, onde há o compromisso de manter as liberdades públicas.

O nacionalismo é outro aspecto importante do Sonho Chinês, uma paródia do sonho americano, criada pela propaganda de Xi. E a China é cada vez mais agressiva em suas reivindicações territoriais no Mar do Sul da China em disputas com Brunei, as Filipinas, a Malásia, Taiwan e o Vietnã; e no Mar do Leste da China, onde disputa as ilhas Senkaku para o Japão, Diaoyu para a China.

A China está transformando recifes em ilhas artificiais, ilhas têm direito a mar territorial muito maior, e instalando pistas de pouso e baterias antiaéreas. Para se defender da superpotência ascendente, o Vietnã se aproximou dos Estados Unidos, da Índia e do Japão, países democráticos que podem formar uma aliança para tentar conter a China.

O regime comunista chinês está certo de que os Estados Unidos não vão comprar uma briga com a China para defender as Ilhas Paracel ou as Ilhas Spratlys.

Mais do que isso: depois que o presidente Obama não cumpriu a ameaça de bombardear a Síria se o ditador Bachar Assad usasse armas químicas, um general chinês falastrão, que por isso mesmo não tem comando de tropas, é da Academia Militar, afirmou que “os Estados Unidos sofrem de disfunção erétil”, não vão entrar em guerra com a China.

A China tem problemas políticos também ao norte. Na Coreia do Norte, o último regime stalinista do mundo, órfão desde o fim da União Soviética, faz uma chantagem atômica em troca de energia e alimentos para sobreviver. Testa armas atômicas e desenvolve tecnologia de mísseis, ameaçando atacar os Estados Unidos.

A Coreia do Norte sempre foi uma carta na manga da China para negociar com os Estados Unidos. A China é o único país que tem alguma influência sobre a ditadura de Pionguiangue.

Para alguns dirigentes comunistas chineses, “a Coreia do Norte é a nossa Alemanha Oriental”. Mas a ditadura dinástica de Kim Jong Un começa a incomodar Beijim.

Depois dos últimos testes de mísseis, os Estados Unidos começaram a discutir com a Coreia do Sul a instalação de um sistema antimísseis que, na visão chinesa, daria uma vantagem estratégica aos Estados Unidos num futuro conflito entre as duas superpotências.

A questão coreana desvia a atenção dos Estados Unidos do Mar do Sul da China, mas o escudo antimísseis preocupa o regime comunista chinês.

Por outro lado, a diplomacia econômica chinesa tenta abrir mercados para os negócios e promover o desenvolvimento com grandes obras de infraestrutura como o novo Caminho da Seda, ligando a China à Europa; a Ferrovia Transoceânica, ligando o Atlântico ao Pacífico na América do Sul; e um novo canal ligando os dois oceanos na Nicarágua para concorrer com o Canal do Panamá.

RÚSSIA
No ano passado, a Rússia ressurgiu como potência mundial. Ao anexar a Crimeia e fomenter a revolta dos russos étnicos no Leste da Ucrânia, Putin reafirmou a intenção de manter a influência russa sobre as antigas repúblicas soviéticas, que considera sua esfera de influência.

A intervenção militar na Síria, a partir de 30 de setembro do ano passado, traz a Rússia de volta ao jogo político do Oriente Médio, de onde tinha saído ainda como União Soviética em 1977, quando o presidente Anuar Sadat abandonou a aliança com o Moscou, se aliou aos Estados Unidos e foi a Israel para negociar a paz e recuperar a Península do Sinai, tomada por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967.

A intervenção militar russa é resultado direto da decisão do presidente Obama de não intervir mesmo quando Assad cruzou a linha vermelha fixada por Obama, usando armas químicas contra uma área rebelada em 21 de agosto de 2013, quando mais de 1,4 mil pessoas morreram. Como Obama não atacou, a Rússia negociou a destruição do arsenal químico, que não foi total, em apoio ao aliado Assad.

No início do mês, Putin declarou vitória e anunciou a retirada depois de mudar o equilíbrio de forças no campo de batalha a favor do regime, que entra nas negociações mediadas pela ONU sem a intenção de fazer qualquer concessão.

Putin apresentou e testou armas. Reforçou sua imagem de herói nacional em meio a uma série crise econômica causada pela queda nos preços do petróleo e as sanções impostas pelos Estados Unidos e a Europa em retaliação pela intervenção na Ucrânia. E mostrou ao mundo que seu poderio militar é o único comparável ao dos Estados Unidos.

Sem um poder econômico à altura do poderio militar, Putin é um aventureiro e o maior risco geopolítico à ordem mundial.

ORIENTE MÉDIO
Na disputa pela liderança regional no Oriente Médio, há uma luta entre sunitas apoiados pela Arábia Saudita e xiitas apoiados pelo Irã no Iraque, na Síria, no Líbano, no Iêmen e no Bahrein. O Estado Islâmico aposta neste conflito sectário.

Com o fortalecimento da Assad, talvez a guerra civil síria se arraste por mais alguns anos depois de matar mais de 270 mil pessoas desde 15 de março de 2011. Mais de 5 milhões de pessoas fugiram do país e o número de deslocados internamente é ainda maior.

A crise dos refugiados na Europa é apenas parte desta tragédia humanitária. Só a Turquia tem 2,7 milhões de refugiados sírios e o pequeno Líbano 1,1 milhão.

É ingenuidade imaginar que um banho de sangue destas proporções não respingue na Europa, como nos atentados de 13 de novembro em Paris e 22 de março em Bruxelas.

O Oriente Médio vive uma contrarrevolução. Com a exceção da Tunísia, onde começou a Primavera Árabe quando um jovem desempregado ateou fogo às roupas depois que sua banca de frutas foi confiscada por um fiscal corrupto, os antigos regimes reagiram, como no Egito, ou os países caíram em anarquia e guerras civis sem fim, como no Iêmen, na Líbia e na Síria. A contrarrevolução mais brutal é na Síria.

Depois da revolução, veio a frustração. Como a liberdade não trouxe prosperidade econômica, a Tunísia é o país que mais forneceu voluntários para o Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Cerca de 5,5 mil tunisianos lutam hoje na Síria e no Iraque. De acordo com a CNN, outros 8,8mil foram barrados na fronteira.

Com dois governos paralelos e uma infiltração do Estado Islâmico, a Líbia vive em estado de anarquia desde a queda do ditador Muamar Kadafi, em agosto de 2011. Fala-se em nova intervenção militar ocidental, mas é impossível com dois governos.

Um tema importante nas relações internacionais é o colapso do Estado, como aconteceu no Líbano, no Afeganistão, na Somália, no Iraque, na Síria e no Iêmen. Na anarquia, proliferam grupos terroristas.

O Estado Islâmico do outro lado do Mediterrâneo é uma ameaça direta à Europa. Com a vitória do Exército da Síria em Palmira, está aberto o caminho para Rakka, a capital do califado autoproclamado pelo Estado Islâmico.

No Iraque, o governo anunciou o início da ofensiva para reconquistar Mossul, a segunda maior cidade iraquiana, tomada pelo Estado Islâmico em 10 de junho de 2014. Depois disso, foi proclamado o califado.

Se o Daech perder Rakka e Mossul, acabou o califado. A milícia terá de procurar uma base em outro lugar, talvez a Líbia, ou regredir à condição de grupo terrorista. O ataque a Paris para mim foi um sinal de fraqueza.

Como grupo terrorista, só ataques espetaculares podem manter a capacidade de recrutar novos voluntários para o martírio. É o que se pode esperar. O Brasil não é alvo, mas os Jogos Olímpicos podem ser.

Outro dia um garoto-bomba se detonou um estádio de futebol perto de Bagdá. Matou muito mais gente do que os atentados de Bruxelas. Temos o precedente do ataque de um grupo terrorista palestino contra a delegação israelense na Olimpíada de Munique, em 1972, quando 11 atletas foram mortos.

EUROPA
A Europa, que depois de cinco séculos de hegemonia nas relações internacionais se autodestruiu em duas guerras mundiais, virou com o projeto de integração uma experiência nova no cenário das relações internacionais: uma associação de países que decidiram resolver seus conflitos pacificamente e integrar suas economias.

É um projeto supranacional para superar o nacionalismo gerador de tantas guerras e social-democrata, com fundos de desenvolvimento estrutural para promover o desenvolvimento dos países mais pobres – um modelo que pode ser replicado em escala global se um dia tivermos uma verdadeira comunidade internacional.

Mas a Europa vive neste momento sua pior crise do pós-guerra. A crise econômica em países da periferia dividiu o continente. A Alemanha e outros países nórdicos não quiseram bancar as dívidas de gregos, irlandeses, portugueses, espanhóis e italianos.

A Grécia esteve prestes a deixar a Zona do Euro e vai sofrer por muitos anos por causa de uma depressão econômica que destruiu 25% de sua economia.

O mercado se acalmou quando o presidente do Banco Central Europeu, o italiano Mario Draghi, prometeu comprar as dívidas dos países em dificuldades. Mas o desemprego aumentou e trouxe de volta os fantasmas do nacionalismo de extrema direita responsável pelas guerras mundiais.

À crise econômica, soma-se a crise dos refugiados num momento em que atentados terroristas aumentam a discriminação a muçulmanos. A resposta deve continuar sendo insuficiente nas questões.

A Europa reluta em fechar suas fronteiras internas, um recuo simbólico importante no processo de integração. Mas quando é preciso ser revistado para entrar no metrô de Bruxelas, o controle de fronteiras é só um incômodo a mais para evitar novas tragédias.

Com a crise econômica, o terrorismo e os refugiados, os países da Europa Oriental que pertenciam ao bloco soviético adotaram uma posição diferente da Europa Ocidental, rejeitando a divisão dos refugiados de acordo com a população de cada país.

Na Polônia e na Hungria, há partidos de direita no poder que contrariam as normas da União Europeia. Disso se aproveita o presidente russo, Vladimir Putin, para tentar fazer um acordo de gás como primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, num desafio à política comercial integrada da Europa.

O governo nacionalista polonês é anti-Rússia, então não flerta com o inimigo. Mas censura e quer controlar o Poder Judiciário.

Do outro lado do continente, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, convocou um referendo para 23 de junho para o eleitorado decidir se o país deve continuar sendo membro da União Europeia. Sair da Europa é uma obsessão da direita conservadora que ainda sonha com o passado glorioso do Império Britânico, o maior que o mundo já viu.

As grandes empresas, as associações empresariais, o centro financeiro de Londres, as companhias estrangeiras sediadas no Reino Unido, bases tradicionais do conservadorismo, e os Estados Unidos são a favor de ficar na União Europeia.

O prefeito de Londres, Boris Johnson, há pouco anunciou que vai votar não numa manobra para derrubar o primeiro-ministro Cameron. A ala conservadora eurocética não parece disposta a aceitar um não como resposta.

Para a Europa, seria uma grande perda. O Reino Unido é a segunda maior economia do continente, depois da Alemanha, já se recuperou da crise, é uma ponte com os Estados Unidos e sedia o maior centro financeiro da Europa, Londres, que perderia esta primazia.

Para o país, pode ser um tiro no pé. Se o Reino Unido sair da União Europeia, é provável que a Escócia convoque um novo plebiscito sobre a independência e decida sair da Grã-Bretanha. Com esta última descolonização do Império Britânico, ficariam a Inglaterra e País de Gales, tornando o país irrelevante no cenário internacional.

A Europa precisa voltar a crescer para alimentar o sonho da comunidade europeia, mas a Alemanha não cede e a liderança de Angela Merkel foi arranhada pela abertura aos refugiados. A França e a Itália não conseguem vencer a estagnação e o desemprego, e o Reino Unido se debate com seu euroceticismo. Faltam líderes e sobram problemas, a começar pelo terrorismo.

Em 2014, o último ano sobre o qual vi estatísticas consolidadas, foram mais de 32 mil mortes em mais de 13 mil ataques em 93 países. O total de mortos aumentou nove vezes desde o ano 2000.

O autoproclamado Estado Islâmico do Iraque e do Levante e a milícia nigeriana Boko Haram, que agora se apresenta como a província do Estado Islâmico na África Ocidental, lideram a matança. Não dá para dizer que as potências ocidentais estão vencendo a guerra contra o terror.

É um conflito político, militar e ideológico, uma guerra civil do islamismo em torno da legítima interpretação do Corão.

ÁFRICA
Apesar dos ataques espetaculares, a Europa não é o principal alvo do terrorismo. Depois do Oriente Médio, a região mais atingida é o Sahel, uma faixa ao sul do Deserto do Saara que vai da Mauritânia à Somália passando pelo Mali, Níger, Argélia, Norte da Nigéria, República Centro-Africana, Sudão e Somália. São países pobres.

A África sofre com a queda na demanda chinesa e a crise econômica nos países ricos. A África Subsaariana, excluindo os países árabes do Norte do continente, deve avançar 3,5% em 2015, 4% em 2016 e 4,7% em 2017.

A situação é muito difícil para os grandes produtores de petróleo do continente, Nigéria, Angola e Argélia, dependentes da renda do petróleo, e também para exportadores de outras matérias-primas.

Na África do Sul, o presidente Jacob Zuma, desmoralizado por escândalo de corrupção, concordou em devolver US$ 23 milhões gastos pelo Estado em sua residência particular. Deve crescer 0,7% neste ano e 1,8% em 2017.

AMÉRICA LATINA
A América Latina também sofre com a desvalorização de seus produtos primários porque os chineses estão comprando menos minérios de ferro, cobre e outros metais. Mas não estão comprando menos soja, por exemplo, têm de alimentar 1,37 bilhão.

Há na América Latina uma crise dos governos de esquerda eleitos a partir da vitória de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998, quando o petróleo esteve perto de US$ 10 o barril por causa da crise financeira asiática. Não estou dizendo que todos sejam chavistas. Mas é o fim de um ciclo.

Há uma distinção clara entre o modelo econômico chavista, que está levando a Venezuela à ruína, o protecionismo da Argentina do casal Kirchner e as políticas econômicas do governo Dilma Rousseff, embora todos tenham gastado dinheiro demais comprometendo as finanças públicas.

Em contraste, em países pequenos, Rafael Correa, no Equador, e Evo Morales, na Bolívia, prestaram atenção no equilíbrio para que o Estado tivesse poder para intervir na economia.

Não vou opinar sobre a crise brasileira. Deixo para os especialistas em política nacional. Com Mauricio Macri, a Argentina volta a ser um país normal e se reabre para o mundo. Já adotou medidas protecionistas contra o Brasil, mais isso é pressão da indústria argentina.

Com o Paraguai e a Bolívia crescendo mais do que os vizinhos, o Chile e o Peru se integrando ao comércio transpacífico, a Colômbia prestes a assinar a paz com as FARC e o reatamento entre Cuba e os Estados Unidos, os grandes problemas são a Venezuela e a guerra contra as drogas.

Desde que o presidente Felipe Calderón declarou guerra ao tráfico, em 2006, mais de 80 mil pessoas foram mortas no México. De autoridades à mídia, quem mexer com o tráfico é alvo.

Sob pressão, alguns cartéis se transferiram para a Guatemala, Honduras e El Salvador, países da América Central que não tem recursos para enfrentar o desafio. Honduras e El Salvador são hoje os países mais violentos do mundo fora de zonas de guerra.

Depois de uma queda de 10% do produto interno bruto no ano passado, outra queda de 8% é esperada para este ano. A inflação de 180% no ano passado vai a 720% neste ano, pelas previsões do FMI. O desabastecimento é generalizado.

Na Semana Santa, o governo venezuelano decretou 10 dias de feriado para poupar água e energia, mas se nega a mudar o modelo econômico fracassado do socialismo do século 21 de Chávez e a acabar com os controles sobre os preços e o câmbio.

A oposição se mobiliza para convocar um referendo para revogar o mandato de Nicolás Maduro, mas a revolução chavista, mesmo fracassada, se recusa a deixar o poder.

Este é só um aperitivo sobre o mundo que espera vocês. Aqui vocês constroem o seu futuro e começam a dar a sua contribuição para construir um mundo melhor.

Bem-vindos à Universidade!

* Aula inaugural do curso de Relações Internacionais no Campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá, proferida em 31 de março de 2016

2 comentários:

psbabreu disse...

Bela aula inaugural! Gostaria de ter assistido na platéia! Análise límpida, elegante e precisa da atualidade!
Parabéns!

Nelson Franco Jobim disse...

Muito obrigado!