A política de segurança pública no Brasil encara o problema da violência como uma guerra, utilizando instrumentos como o veículo blindado conhecido como Caveirão, o que "criminaliza a pobreza", desrespeitando os direitos humanos das comunidades carentes, onde a polícia entra atirando, afirma o relatório anual da organização não-governamental Anistia Internacional, divulgado em Londres na quarta-feira.
Para a AI, nada mudou com a posse dos novos governadores. No Rio de Janeiro, o símbolo da segurança pública continua sendo o carro blindado conhecido como Caveirão.
O relatório cita um documento anterior da Anistia, lançado em dezembro de 2005, Brasil: "Eles entram atirando": policiamento de comunidades socialmente excluídas, mostrando "como os anos de negligência do Estado deixaram os bairros pobres sem saída, entre a violência das quadrilhas de criminosos e a brutalidade da polícia".
Desde então, "em maio de 2006, São Paulo sofreu uma onda de violência criminal que paralisou a maior cidade da América do Sul", matando 493 em nove dias, três vezes acima da média.
"Centenas de pessoas morreram quando uma quadrilha de criminosos percorreu a cidade atacando delegacias de polícia, atirando em policiais, incendiando ônibus e coordenando revoltas e tomadas de reféns em cerca de metade das penitenciárias do estado. A polícia reagiu da mesma forma, matando mais de cem 'suspeitos'. Recentemente, no Rio de Janeiro, uma noite de violência promovida pelas quadrilhas deixou 19 pessoas mortas, incluindo sete que foram queimadas vivas num ônibus. Acredita-se que os ataques tenham sido em represália ao poder crescente das 'milícias'. Estes grupos, compostos de policiais e bombeiros de folga, agora controlam mais de 90 favelas no Rio de Janeiro por meio de extorsão. As milícias ameaçam desestabilizar ainda mais a cidade, pois estão competindo com os traficantes pelo controle do território e do dinheiro."
Rio e São Paulo chegaram a um ponto que a AI chama de "balcanização" das metrópoles brasileiras, divididas em "diversos feudos violentos. O sistema penitenciário à beira do colapso deu origem a sofisticadas organizações criminosas. A própria polícia ficou vulnerável aos ataques, diminuindo sua capacidade de desempenhar o papel de protetores dos cidadãos brasileiros. Enquanto isso, as comunidades pobres continuam sofrendo, atingidas por balas perdidas, submetidas a um verdadeiro toque de recolher durante operações policiais e sendo extorquidas pelas milícias ou pelos traficantes."
Nada mudou com a posse dos novos governos. Assim, a Anistia reitera preocupações manifestadas anteriormente:
• a polícia mal treinada, sem recursos e com pouca capacidade para atividades de inteligência, o que a torna ineficaz e também vulnerável a ataques;
• a negligência do Estado com relação aos bairros mais pobres, que se tornaram zonas sem lei, onde os moradores sofrem de forma desproporcional com a violência, tanto do crime quanto da polícia;
• a falta de uma política coerente de segurança pública para o longo prazo, focalizada nas causas básicas da violência e da exclusão social;
• o sistema penitenciário à beira do colapso, em que a superlotação, os maus-tratos dos detentos, a corrupção e o crime organizado estão arraigados.
"O policiamento no Rio de Janeiro continua sendo caracterizado por operações em grande escala em que unidades da polícia 'invadem' as favelas com armamentos pesados, retirando-se assim que as operações são concluídas", observa o relatório.
"Estas incursões prejudicam enormemente as comunidades e trazem poucos benefícios. Colocam em perigo a vida de todos, inclusive da polícia. Danificam bens, imóveis e a infra-estrutura, provocam o fechamento do comércio e criam condições semelhantes a um toque de recolher, impedindo as pessoas de irem trabalhar ou estudar, implicando em custos financeiros e sociais que perduram após a conclusão da operação. Quando a polícia se retira, as facções do tráfico ou as milícias retomam o controle. Os problemas por trás disso – a exclusão social e a criminalidade – não são resolvidos, enquanto a comunidade é atingida por ondas de violência criminal e policial."
Enquanto "a estratégia policial ainda caracteriza-se pela repressão bruta", a média de homicídios mantém-se estável de 1998 a 2005, em 6.336. São 43,5 mortes por 100 mil habitantes no estado ou 57,3 por 100 mil na Baixada Fluminense. Aumentou, neste período, o número de mortes atribuídas à resistência das vítimas. Passou de cerca de 300 em 1997 para 1.195 em 2003 e 1.098 em 2005.
A impunidade dos policiais assassinos é a regra. Só um envolvido na chacina de 29 pessoas em 31 de março de 2005 na Baixada Fluminense foi condenado.
O relatório é crítico quanto à participação do Exército no combate à violência, "um papel para o qual não tem mandato, treinamento ou supervisão". Repete suas acusações contra o sistema penitenciário, onde há "uso de tortura e força excessiva", "condições desumanas, cruéis e degradantes". Reafirma que a corrupção policial comprova que, "sem uma reforma profunda, o sistema de segurança pública do Rio não tem interesse em combater aqueles que estão por trás das verdadeiras causas da violência no Estado. O foco da polícia e do sistema de justiça penal sobre os criminosos de menor categoria mostra uma relutância em combater aqueles que dirigem e supervisionam o tráfico de drogas e de armas que alimenta a violência criminal no Brasil de hoje."
Com a deterioração do quadro geral, em 2006, houve um grande crescimento da atuação da "milícias parapoliciais". No final do ano passado, elas controloriam 92 das cerca de 600 favelas cariocas.
Pernambuco registra a mais alta taxa de homcídios do país, 50,1 por 100 mil habitantes.
No final, o relatório da Anistia faz várias recomendações:
1. A introdução de um policiamento baseado nos direitos humanos, que inclua:
• Um Código de Ética legal, baseado nas normas de direitos humanos, em particular no Código de Conduta da ONU para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e nos Princípios Básicos da ONU sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei;
• Códigos de conduta, conforme o Código de Ética legal e com base nas normas de direitos humanos, relativos às funções essenciais da polícia, inclusive a prisão e detenção, ordem pública e investigação criminal;
• Melhor coleta de dados e produção de análises dos tipos de violência.
2. Um programa combinado para reduzir e prevenir os homicídios policiais, que inclua:
• Um programa para retreinar a polícia no uso legítimo da força e nas alternativas ao uso de armas de fogo, de acordo com padrões internacionais, entre eles o Código de Conduta da ONU para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei e nos Princípios Básicos da ONU sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei;
• A criação de um mecanismo externo de investigação, tratando especificamente com as queixas envolvendo a polícia, capaz de realizar investigações com seus próprios investigadores independentes;
• O fim do uso da designação “resistência seguida de morte”, que deverá ser substituída por um registro dos casos de mortes causadas pela polícia. Deve ser realizada uma investigação independente de todos os casos de morte em que há suspeita de envolvimento das forças de segurança pública;
• Medidas para combater a corrupção policial e seu envolvimento no crime.
3. Reforma penitenciária com o objetivo de garantir a segurança de guardas prisionais e detentos, que inclua:
• Maiores recursos financeiros e humanos, inclusive com investimento no treinamento de guardas prisionais e melhores instalações;
• Categorização dos presos de acordo com a severidade do crime, segregando aqueles que constituem um perigo para os funcionários do presídio e outros detentos;
• Um fim à prática de segregação dos presos segundo sua filiação às facções;
Revisão urgente do uso do RDD que, de acordo com especialistas penitenciários, está sendo aplicado de forma desproporcional como medida punitiva em vez de administrativa, sem supervisão adequada.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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