Em seu primeiro Discurso sobre o Estado da União, a prestação anual de contas do presidente ao Congresso dos Estados Unidos, Joe Biden acusou terça-feira à noite o ditador da Rússia, Vladimir Putin, de começar uma guerra ao invadir a Ucrânia e afirmou que "a liberdade sempre triunfa sobre a tirania".
"Seis dias atrás, a Rússia de Vladimir Putin tentou abalar os alicerces do mundo livre pensando que poderia dobrá-lo com suas ameaças. Mas cometeu um sério erro de cálculo. Pensou que poderia entrar na Ucrânia e que o mundo deixaria. Em vez disso, encontrou uma muralha de resistência que não esperava: o povo ucraniano", declarou Biden.
"Do presidente [Volodymyr] Zelensky a cada ucraniano, seu destemor, sua coragem e sua determinação inspiram o mundo", elogiou. "Na sua luta, como o presidente Zelensky disse em seu discurso ao Parlamento Europeu, 'a luz vai vencer as trevas'."
"Quando ditadores não pagam o preço por sua agressão, causam mais caos. Continuam avançando. E os custos para o mundo e os EUA aumentam. Por isso a OTAN (Organização do Atlântico Norte) foi criada, para garantir a paz e a segurança da Europa depois da Segunda Guerra Mundial", na verdade, para conter a União Soviética durante a Guerra Fria.
"O último ataque de Putin à Ucrânia foi premeditado e não provocado. Ele rejeitou diversos esforços diplomáticos. Pensou que o Ocidente e a OTAN não iriam responder. E pensou que ia nos dividir em casa Putin errou", asseverou o presidente dos EUA.
O resultado foi o oposto do que pretendia Putin: a OTAN e outros aliados dos EUA se uniram para impor sanções à Rússia e o nacionalismo ucraniano se fortaleceu.
Biden acusou Putin de mentir ao justificar a guerra. Não mencionou que Putin citou a invasão do Iraque pelos EUA sob o falso argumento de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, em 2003, para alegar que a Rússia tem o direito de fazer o mesmo. Os EUA violaram o direito internacional e criaram um precedente.
GUERRA ECONÔMICA
Outros 33 países, além dos EUA, aplicaram sanções poderosas à Rússia: os 27 da União Europeia, o Reino Unido, a Suíça, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia e o Japão.
O presidente norte-americano citou as sanções financeiras e tecnológicas à Rússia. É uma guerra econômica, possivelmente uma das razões que levaram Putin a colocar as forças nucleares em estado de alerta. Para contra-atacar, a Rússia tem a guerra cibernética e as armas atômicas. Mas parece um blefe de Putin para esconder sua própria fraqueza ao não conseguir tomar Kiev.
"Estamos tirando os maiores bancos da Rússia do sistema financeiro internacional, evitando que o Banco Central da Rússia possa defender o rublo usando o 'fundo de guerra' de US$ 630 bilhões", descreveu Biden. Falava das reservas cambiais da Rússia em moeda forte, no valor de US$ 643 bilhões, que o governo russo não consegue movimentar.
"Estamos cortando o acesso da Rússia à tecnologia que vai minar seu poder econômico e enfraquecer suas Forças Armadas por anos", previu o presidente norte-americano.
A seguir, dirigiu suas baterias contra os bilionários amigos do ditador russo: "O Departamento da Justiça dos EUA está formando uma força-tarefa para ir atrás dos crimes dos oligarcas russos e nos unimos aos aliados europeus para confiscar seus iates, apartamentos de luxo e jatinhos particulares."
Sob o impacto das sanções, o rublo caiu 30% e a Bolsa de Moscou, 40%. Enquanto isso, os EUA dão uma ajuda de US$ 1 bilhão à Ucrânia e vão fechar o espaço aéreo a aviões e companhias aéreas da Rússia.
Se os EUA não vão enviar soldados à Ucrânia para não entrar diretamente numa guerra com a Rússia, que poderia virar uma guerra nuclear, estão enviando armas à Ucrânia e reforçando aliados da OTAN que têm fronteira com a Rússia, como Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia e Romênia.
"Na batalha entre democracia e autocracia, as democracias estão se erguendo e o mundo escolhe claramente o lado da paz e da segurança", continuou. "Putin pode cercar Kiev com tanques, mas nunca vai conquistar os corações e as mentes dos ucranianos."
Os EUA e outros 30 países vão usar as reservas estratégicas de petróleo para tentar reduzir o preço dos combustíveis, anunciou Biden. Está preocupado com o impacto da inflação e do valor da gasolina nas eleições parlamentares do meio de seu mandato, em novembro. Com a popularidade baixa e aprovação de 41%, o governo deve perder as maiorias escassas na Câmara e no Senado.
RECUPERAÇÃO ECONÔMICA
Em seguida, o presidente passou para a política interna e aí acabou o consenso na plateia de deputados e senadores. Defendeu seu plano de recuperação da economia, de US$ 2 trilhões. Mencionou os 6,5 milhões de empregos gerados no ano passado, devidos principalmente à retomada pós-recessão da pandemia e a recuperação da infraestrutura. Prometeu banda larga de alta velocidade, num total de mais de 4 mil projetos e da recuperação de mais de 100 mil quilômetros de estradas e de 1,5 mil pontes.
"A vice-presidente Kamala Harris e eu concorremos à Presidência com uma nova visão econômica para os EUA: investir nos EUA, educar os norte-americanos, aumentar a força de trabalho, construir uma economia de baixo para cima e não de cima para baixo", enfatizou Biden.
Assim, pretendem preparar o país para competir com a China. "Comprem produtos norte-americanos para sustentar empregos norte-americano", conclamou o presidente, com um discurso protecionista de resgate da indústria dos EUA. Como exemplo, destacou uma fábrica da Intel em Ohio de US$ 20 bilhões "que vai criar 10 mil empregos e fazer microchips do tamanho de uma unha".
O investimento pode chegar a US$ 100 bilhões para acabar com a escassez que quase paralisou a indústria automobilística mundial.
"A Ford está investindo US$ 11 bilhões no carro elétrico, com criação de 11 mil empregos no país, e a GM o maior investimento de sua história, de US$ 7 bilhões, em carros elétricos, gerando 4 mil empregos em Michigan", acrescentou.
Biden admitiu que a inflação é a maior preocupação dos norte-americanos. Atribuiu o problema à pandemia, ao preço dos automóveis, à escassez de microchips e ao desarranjo das cadeias de suprimentos.
Havia personagens do discurso na plateia, como o diretor-executivo da Intel e Joshua Davis, um menino diabético de 13 anos. Biden prometeu baixar o preço da insulina para US$ 35 por mês para 200 mil norte-americanos que precisam do medicamento.
Biden reiterou uma promessa de campanha. "Ninguém que ganhe menos de U$ 400 mil por ano vai pagar um centavo a mais de impostos", mas prometeu que os ricos vão pagar sua "alíquota justa". "No ano passado, 50 grandes empresas lucraram U$ 40 bilhões de nã pagaram um dólar em impostos federais." Ele prometeu reduzir os custos de medicamentos, energia elétrica e cuidado infantil para as classes média e baixa.
Numa crítica ao presidente Donald Trump, responsabilizou os cortes de impostos para os ricos e as grandes empresas no governo anterior, no valor de US$ 2 bilhões, pelo aumento a dívida pública mesmo antes da pandemia. Com a covid-19, os fretes marítimos subiram até 1.000%. Biden quer investigar as empresas por abuso de poder econômico numa hora de crise.
DECLÍNIO DA PANDEMIA
Também festejou a melhora da situação da pandemia, que não tinha níveis de contágio e mortes tão baixas desde julho do ano passado. Por orientação do CDC, a maioria dos norte-americanos não precisam mais usar máscaras. Ele elogiou as vacinas, argumentou que ninguém comprou mais medicamentos do que ele. Prometeu testes e medicamentos para todos, e sequenciamento genético para detectar novas variantes.
As escolas e as repartições federais estão voltando ao normal. Com 70% dos EUA vacinados e hospitalização em queda, as crianças podem ir à escola sem máscaras.
Para vencer a pandemia, o governo Biden oferece máscaras, testes, vacinas e tratamento grátis, e colabora com a vacinação do resto do mundo. Os EUA enviaram 475 milhões de doses para 112 países, revelou Biden.
VIOLÊNCIA POLICIAL
O governo Biden quer US$ 350 bilhões para as cidades e estados contratarem mais policiais. Depois do assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020, que provocou protestos no mundo inteiro contra o racismo e a violência racial, houve movimentos para cortar a verba e até acabar com alguns departamentos de polícia.
"A resposta é financiar a polícia, com recursos e treinamento." Aí, os republicanos também aplaudem. Acusavam Biden de cortar o dinheiro para as polícias. Ele incluiu a afirmação para desarmar a oposição, que aplaudiu.
Contra a violência policial, o Departamento da Justiça tomou medidas como uso obrigatório de câmeras pelos policiais, proibiu golpes como sufocamento e mata-leão e restringiu mandados de busca em que a polícia entra arrombando a porta.
Depois de agradecer ao ministro Stephen Breyer, que está se aposentando da Suprema Corte e estava no Congresso, e elogiou sua indicada, Ketanji Brown Jackson, que deve ser a primeira juíza negra no supremo tribunal norte-americano.
ABORTO, DROGAS E DOENÇAS MENTAIS
Outro tema delicado é segurança de fronteiras e imigração ilegal. A proposta é usar alta tecnologia na fronteira, especialmente para detectar o tráfico de drogas, e criar caminhos para facilitar a naturalização dos sonhadores, que entraram ilegalmente no país quando eram menores de idade e correm risco de deportação.
Nas questões de costumes, Biden defendeu o direito ao aborto, que pode ser anulado pela Suprema Corte, os direitos das mulheres e a Lei da Igualdade para proteger os direitos de LGBTQ+. O presidente criticou leis estaduais contra os transgêneros.
As drogas são outro problema sério dos EUA. Mais de 100 mil pessoas morreram em um ano, durante a pandemia, por excesso de drogas, especialmente do fentanil, um opiáceo muito mais poderoso do que a heroína. Além de controlar as drogas ilícitas, a ideia de Biden é investir no tratamento. Há 23 milhões de norte-americanos "em recuperação".
Cada vez mais, as doenças mentais deixam de ser tabu. "As redes sociais precisam ser responsabilizadas pelo que fazem com as crianças, com assuntos dirigidos, coletando dados sobre nossas crianças", propôs Biden.
"Os veteranos de guerra são o que temos de melhor", observou o presidente, prometendo habitação, retreinamento profissional e tratamento médico. Muitos tiveram contato com materiais tóxicos perigosos, correm risco de cânceres e outras doenças. Lembrou o filho Bo Biden, que serviu nas guerras do Kossovo e do Iraque, e morreu de câncer no cérebro.
"Vamos acabar com o câncer como conhecemos. Isto é pessoal. Muitos de vocês perderam pessoas queridas. O câncer é a segunda causa de morte nos EUA, depois de doenças cardíacas. Queremos reduzir a mortalidade por câncer em 50% nos próximos 25 anos, tornar mais cânceres de sentenças de morte em doenças curáveis", desafiou.
Terminou prometendo defender a liberdade e "salvar a democracia". A guerra sempre costuma fortalecer o comandante em chefe internamente. Une o país tão dividido. Resta ver se aumenta a popularidade de Biden. Se o preço da gasolina aumentar na bomba, uma guerra na Ucrânia, que a maioria dos norte-americanos não sabe onde fica, talvez não ajude muito.
De acordo com pesquisa da CNN dos EUA, 71% dos norte-americanos aprovaram o discurso de Biden.