A Justiça do Iraque condenou à forca hoje por crimes contra a humanidade um ex-ditador Saddam Hussein (1979-2003), que parecia abalado mas desafiador, provocando reações de satisfação entre a maioria xiita e ressentimento entre a minoria sunita, que dominava o país durante seu governo. O processo investigou a morte de 148 xiitas em Dujail, em 1982, após uma tentativa de assassinato contra Saddam. Cabe recurso mas o ex-ditador pode ser executado no início de dezembro.
Apesar do toque de recolher na capital, houve protestos esporádicos em Bagdá. O primeiro-ministro xiita Nuri al-Maliki afirmou que o ex-ditador "recebeu a punição que merece".
Inicialmente, Saddam se recusou a ficar de pé para ouvir a sentença. Ao se levantar bradou "Deus é grande!" e "Longa vida ao Iraque!"
"Este tribunal decidiu sentenciar Saddam Hussein al-Majid ao enforcamento até a morte por crime contra a humanidade", leu o juiz Rauf Abdul Rahman, ignorando um pedido anterior do ex-ditador para ser submetido a um pelotão de fuzilamento.
Seu meio-irmão Barzan al-Tikriti e o ex-juiz Awad al-Bander também pegaram pena de morte por assassinatos, tortura e deportação de centenas de xiitas de Dujail. O ex-vice-presidente Taha Yassin Ramadan foi sentenciado a prisão perpétua.
Os Estados Unidos, que invadiram o Iraque em março de 2003 para depor Saddam, declararam que "hoje é um bom dia para o povo iraquiano". Mas é improvável que a execução do ex-ditador reduza o ímpeto da rebeldia contra o novo regime e do conflito sectário entre sunitas e xiitas.
Uma das questões levantadas pela invasão americana foi se o Iraque é um produto de Saddam Hussein ou se Saddam é um produto do Iraque. Se a ditadura era responsabilidade de Saddam, sua remoção abriria caminho para a democratização do país. Mas se Saddam é um produto da situação peculiar do Iraque, de seus conflitos internos que exigiriam um regime autoritário para manter o país unido, quem derrubou Saddam precisaria se transformar no novo Saddam.
Claro que a realidade é muito mais complexa. Importante hoje é que a dinâmica da violência política no Iraque não depende mais de Saddam Hussein. Os vários grupos que promovem a atual matança, dos jihadistas aos radicais sunitas e às milícias xiitas, não precisam de Saddam, assim como as células da rede Al Caeda não precisam de Ossama ben Laden para cometer seus atentatos terroristas suicidas.
Na advertência de um dos advogados de Saddam, a condenação à morte do ex-ditador "abriria as portas do inferno". Mas o Iraque já é um inferno há mais de três anos. Só durante este fim de semana foram encontrados pelo menos 55 corpos com sinais de tortura em Bagdá, um sem cabeça. São as últimas vítimas de um conflito sectário entre sunitas e xiitas que só cresceu desde o início do ano, quando os jihadistas destruíram uma mesquita xiita em Samarra.
A legitimidade do julgamento também foi questionada. Afinal, nos conflitos da antiga Iugoslávia e de Ruanda, os processos por crimes contra a humanidade foram realizados por tribunais internacionais criados pelas Nações Unidas, onde certamente Saddam Hussein denunciaria a ilegalidade da invasão do Iraque.
Durante todo o processo, Saddam apresentou-se como o presidente legítimo do Iraque, acusando o tribunal de ser um tribunal de exceção constituído após uma guerra ilegal, um tribunal da Zona Verde, a área de segurança máxima criada pelos EUA nos centro do poder em Bagdá. Mas os crimes que inegavelmente cometeu e os métodos que usou para governar tornaram a pena de morte praticamente inevitável.
Sua execução pode ser adiada porque ele está sendo processado pela perseguição e pelo genocídio da minoria curda iraquiana durante os anos 80, quando 70 mil pessoas foram mortas, sendo 6 mil em Halabja, a chamada Hiroxima curda, alvo de um ataque de armas químicas jogadas de helicóptero em março de 1988.
Saddam Hussein também pode ser processado pela invasão do Kuwait, em 2 de agosto de 1990, que o transformou no principal inimigo dos EUA no Oriente Médio até 11 de setembro de 2001, e pelo massacre dos xiitas depois da Guerra do Golfo de 1991.
Diante de um ditador tão brutal e de uma onda de violência tão aterradora, só uma condenação à morte não basta. Não é suficiente para convencer a opinião. Mas mesmo várias condenações à morte não serão suficientes para estabilizar, pacificar e reconciliar o Iraque.
Saddam foi um ditador brutal e certamente merece a condenação, embora pessoalmente eu seja contra a pena de morte. A invasão que o derrubou provocou uma explosão de violência que a ocupação americana e as novas autoridades se mostram incapazes de conter. Sua morte será insuficiente para acabar com esta guerra.
Se considerarmos que uma ditadura é um regime em guerra civil contra seu próprio povo, Saddam presidia a uma guerra civil surda, que com sua queda e o colapso do Estado iraquiano se tornou aberta e marcada por atrocidades.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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