A Era Angela Merkel termina com o pior resultado nas urnas da direita conservadora da Alemanha no pós-guerra. A aliança da União Democrata-Cristã (CDU) com a União Social-Cristã (CSU), de Merkel, conquistou apenas 24,1% dos votos nas eleições parlamentares deste domingo contra 25,7% do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD). Os extremistas perderam.
Os líderes dos dois grandes partidos, Olaf Scholz (SPD) e Armin Laschet (CDU), se declararam vencedores e prontos para formar o novo governo. Como a lei alemã permite, ambos tentarão articular uma coalizão.
Seus partidos recebiam 90% dos votos no passado. Hoje, ficam com 50%. Vão precisar do apoio de mais dois partidos, Os Verdes, que receberam 14,8% dos votos e o Partido Liberal-Democrata (FDP), que teve 11,5%. Os ecologistas querem mais impostos e mais gastos públicos. Os liberais-democratas defendem o liberalismo econômico. As negociações podem se arrastar por semanas por semanas ou até meses.
Com o SPD na chefia do governo, seria a coalizão sinal de trânsito: vermelha (SPD), amarela (FDP) e verde (Verdes). A alternativa é a coalizão Jamaica: preta (CDU-CSU), amarela (FDP) e verde (Verdes). Mas não se pode descartar a chance de uma grande coalizão entre CDU-CSU e SPD, como a do atual governo Merkel.
Scholz argumentou que a maioria relativa votou no SPD porque "quer uma mudança no governo", embora seja vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças desde 14 de março de 2018 na grande aliança entre CDU-CSU e SPD. Os alemães votaram para mudar, mas não muito. O próprio Scholz acenou com uma certa continuidade.
Apesar da derrota, Laschet reivindica o direito de tentar formar um governo. Enquanto os partidos não se entendem, Angela Merkel (2005-21) continua no poder como chanceler (primeira-ministra) interina.
ESTADISTA
Num mundo carente de líderes internacionais visionários, a chanceler alemã deixa o poder depois de 16 anos exaltada, com ampla aprovação dentro e fora da Alemanha como a "última estadista", a "mulher mais poderosa do mundo" (é mesmo) e elegias do gênero. Foi uma líder racional, forte e decidida numa era de populistas inconsequentes e temerários como o ex-presidente americano Donald Trump e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.
A menina criada sob o regime comunista da Alemanha Oriental se destacou depois da queda do Muro de Berlim. Chamou a atenção do chanceler Helmut Kohl, que a nomeou para ministra da Família e da Mulher em 1991 e ministra do Meio Ambiente em 1994.
Líder da CDU desde o ano 2000, Merkel comandou a oposição na Bundestag (Câmara Federal) ao governo Gerhard Schröder (1998-2005), que derrotou nas eleições de 2005.
Doutora em química, Merkel soube enfrentar a pandemia com a ciência. Teve um sucesso inicial ao impor o confinamento. Sob pressão de governadores estaduais e empresários, reabriu a economia cedo demais. A Alemanha soma 4,2 milhões de casos confirmados e pouco menos de 94 mil mortes na pandemia. É o 14º país do mundo em número absoluto de mortes e 52º em mortes por habitante.
Sob Merkel, a Alemanha cresceu 34%, mais do que o dobro do Reino Unido e da França, firmando o país como maior economia da Europa e a quarta do mundo, com um produto interno bruto de US$ 4,3 trilhões, quase R$ 23 trilhões.
REFUGIADOS
Quando os refugiados das guerras no Grande Oriente Médio correram para as fronteiras da União Europeia (UE), Merkel honrou o compromisso histórico da Alemanha no pós-guerra para purgar os crimes do passado nazista. Acolheu mais de 1 milhão de refugiados, uma medida correta, mas que levou ao ressurgimento da extrema direita no partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que conquistou 10,5% dos votos hoje, enquanto a Esquerda radical ficou com 4,9%.
A votação do AfD explica o pior resultado da aliança da direita conservadora CDU-CSU. Para evitar a presença de comunistas e nazistas no Parlamento no pós-guerra, a então Alemanha Ocidental introduziu uma cláusula de barreira. Para ter representação na Câmara Federal, um partido precisa de no mínimo 5% dos votos.
Até 2017, quando a crise dos refugiados estourou nas urnas e tornou a AfD o terceiro maior partido no Parlamento, com 12,6% dos votos, a direita republicana da CDU-CSU ia o suficiente para a direita para evitar o crescimento de partidos neonazistas. A crise dos refugiados rompeu esta barreira. A extrema direita voltou ao Parlamento da Alemanha pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
LEGADO
Depois de Adolf Hitler (1933-45), os alemães preferem líderes chatos e metódicos com o estilo de governanta alemã de Angela Merkel, sem drama nem estridência. Ela soube desdramatizar crises como na anexação da Crimeia pela Rússia e na intervenção militar russa no Leste da Ucrânia, em 2014, quando foi uma ponte entre o presidente americano, Barack Obama, e o ditador russo, Vladimir Putin. Também enquadrou o Reino Unido nas negociações para a saída da UE de modo a preservar o bloco.
Só Otto von Bismarck (1871-90), o Marechal de Ferro, chanceler da unificação da Alemanha, em 1871, e Helmut Kohl (1982-98), o chanceler da reunificação, em 1990, governaram mais tempo do que ela. Se o novo governo não tomar posse até 17 de dezembro, Merkel ultrapassa seu padrinho.
Bismarck fundou um império e criou o primeiro sistema de previdência social da Europa. É o pioneiro do modelo social-democrata europeu, adotado nos países com o maior índice de desenvolvimento humano.
Kohl reunificou o país, liderou a criação da União Europeia e concordou com a substituição do marco alemão, símbolo da estabilidade econômica do pós-guerra, na união monetária que criou o euro.
ORDOLIBERALISMO
As realizações de Merkel são bem mais modestas, comenta a revista inglesa The Economist. Faltou uma visão estratégica para construir o futuro da Alemanha e da Europa. O ordoliberalismo, o neoliberalismo alemão, e sua obsessão com o equilíbrio fiscal levou à aprovação de uma lei, em 2009, para zerar o déficit orçamentário, quando o governo poderia aproveitar os juros historicamente baixos para investir.
Isto não só impediu investimentos públicos em infraestrutura em geral e, em especial, para acelerar a transição digital e a descarbonização da economia para mitigar o aquecimento global. Prejudicou o projeto europeu reduzindo os ganhos da Alemanha com a integração econômica.
Na questão do clima, apesar da alta consciência ecológica do povo alemão, com o fechamento das usinas nucleares depois do acidente nuclear de Fukushima, no Japão, em 11 de março de 2011, a Alemanha tem o maior consumo de combustíveis fósseis por habitante entre as grandes economias da Europa. Com 44% da energia elétrica gerada por carvão, gás ou petróleo, está atrasada na descarbonização e na construção da economia do futuro.
CRISE DO EURO
Quando a Grande Recessão (2008-9) se transformou na Crise do Euro (2009-14), a Grécia, a Irlanda, Portugal, a Espanha e Chipre não conseguiram honrar suas dívidas e precisaram de ajuda do Grupo do Euro, do Banco Central Europeu (BCE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI). A Itália, terceira maior economia da Zona do Euro, correu risco de dar calote.
A Alemanha foi inflexível ao rejeitar a mutualização da dívida, a emissão de bônus lastreados por todos os países da Eurozona, o que só aceitou agora para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. Na Grécia, submetida a uma austeridade fiscal punitiva, Merkel chegou a ser pintada na imprensa com o bigodinho de Hitler.
Para o contribuinte alemão, não cabe a si bancar as dívidas de povos do Sul da Europa que considera indisciplinados, como gregos, português, espanhóis e italianos. Faltou uma visão estratégia para entender que a economia alemã é a maior beneficiária da integração econômica do continente no mercado comum europeu.
Merkel foi uma líder indispensável para debelar as crises da UE. Mas deixa um vácuo de liderança, não avançou na construção da arquitetura do bloco europeu, é acusada de ser leniente com o autoritarismo da China e da Rússia, com que prefere conseguir negócios para as empresas alemãs, e até mesmo com o autoritarismo interno da Hungria e da Polônia na UE.
O mundo precisa muito mais do que uma governanta alemã.