terça-feira, 2 de julho de 2013

Mídia ajuda mas pode atrapalhar processos de paz*


A visão liberal normalmente pressupõe que o papel dos meios de comunicação de massa é sempre positivo ao alimentar o debate político em sociedades democráticas. Um dos pontos que vou defender aqui é que a mídia ajuda ao criar consensos, mas pode atrapalhar, especialmente nas negociações de paz em conflitos armados, quando pode cristalizar posições rivais em termos inconciliáveis.

O economista e filósofo indiano Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2008, afirma que não há fome em massa em democracias. Nenhum governo democrático resiste à imagem de uma criança morta diante do seio murcho de uma mãe esquálida. Este é o poder da imagem, uma força positiva.

DEMOCRACIAS NÃO LIBERAIS
Mas uma das consequências da onda de democratização pós-Guerra Fria foi o surgimento de democracias não liberais em países sem experiência democrática como os antigos países comunistas, por exemplo, os que formavam a Iugoslávia ou surgiram da dissolução da União Soviética, ou mais recentemente no arco andino da América do Sul e no grande Oriente Médio.

Os meios de comunicação controlados pelo poder central foram decisivos para manutenção do poder por antigos hierarcas do regime comunista e pela ascensão de burocratas convertidos em olicargas pelas privatizações escandalosas da era Boris Yeltsin. Boris Berezovski foi um exemplo.

Sob Putin, a Rússia regrediu para um regime mais autoritário. Acabaram as eleições diretas para governador, aumentou o controle sobre a mídia e agora Putin quer se livrar das ONGs, tenta sufocar a sociedade civil emergente.

Em Ruanda e na Bósnia, a mídia foi decisiva para demonizar e desumanizar o inimigo, e assim justificar massacres. Outro dia recebi um comentário em nome de Siria Latinoamerica no meu blogue festejando a vitória das forças de Bachar Assad na Batalha de Kussair. Prometia “exterminar os ratos” até a vitória final.

INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS
No plano global, o mundo pós-Guerra levou a ONU a organizar várias operações de paz e a realizar intervenções para impor a paz. Surgiu uma discussão sobre o direito de intervenção por razões humanitárias, inicialmente chamado de direito de ingerência, hoje substituído pelo conceito de “responsabilidade de proteger”, mais correto politicamente.

Uma questão central que se coloca aqui está num ensaio de Peter Viggo JAKOBSEN, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, Interesse Nacional, Humanitarismo ou a CNN: o que deflagra das operações de imposição da paz depois da Guerra Fria?, publicado na revista Journal of Peace Research, do Instituto de Pesquisas sobre a Paz Internacional de Oslo (PRIO), na Noruega.

O autor observa que só houve uma operação de imposição da paz autorizada entre 1945 e 1990, a Guerra da Coreia (1950-53), e analisa as intervenções no Kuwait, na Somália, em Ruanda, no Haiti na primeira metade dos anos 90 com base em cinco critérios.

No momento em que os EUA relutam em intervir na Síria, por receio do governo Barack Obama de entrar numa guerra sem solução logo depois de sair do Iraque e enquanto tenta se retirar do Afeganistão, esse debate volta a ser importante.

CRITÉRIOS DE ANÁLISE
A primeira questão é a legitimidade e o apoio internacional. A aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU indica um alto grau de consenso que foi possível obter na Líbia, mas se revelou impossível quanto à Síria.

A segunda questão é obter apoio doméstico, mais difícil no Ocidente pós-Guerra Fria por causa da ausência de ameaças reais à segurança nacional, o que mudou um pouco depois do 11 de setembro, mas numa escala muito menor.

Isso remete à terceira questão: o papel da mídia. O chamado Fator CNN tem um peso importante. A televisão mostra imagens de atrocidades, os jornalistas fazem reportagens dramáticas sobre as tragédias, comentaristas criticam o governo por tolerar violações de direitos humanos protegidos pelo direito internacional e a opinião pública pressiona.

Hoje não é só a CNN. Al Jazira, por exemplo, revolucionou a cobertura do mundo árabe, passou a mostrar os conflitos como o palestino de um ponto de vista diferente. Teve um papel fundamental na catalisação de uma opinião pública liberal e de esquerda que deflagrou a Primavera Árabe.

A quarta questão se refere ao interesse nacional, definido aqui como o cojnunto de interesses estratégicos, econômicos e ideológicos. É sempre mais difícil a intervenção quando não há interesses nacionais envolvidos. Por isso, o Kuwait foi libertado de Saddam Hussein enquanto Ruanda foi abandonada à sua própria sorte.

A quinta questão é a probabilidade de sucesso. Obama não quer colocar os americanos numa nova guerra no Oriente Médio, uma guerra civil cada vez mais enquadrada no duelo regional entre sunitas e xiitas.

O sucesso tem aspectos militares e políticos. Sob o aspecto militar, avalia-se a chance de sucesso diante da expectativa de qual seria o custo aceitável em vidas humanas. Do ponto de vista político, além dos custos humano e econômico, interessam os objetivos.

LEGITIMIDADE E SUCESSO
Na Guerra do Golfo, de 1991, havia uma razão clara que dava legitimidade internacional ao uso da força. Pela primeira vez desde 1945, um país-membro das Nações Unidas ocupou e anexou outro, negando-lhe o direito de existir reconhecido internacionalmente.

O Conselho de Segurança aprovou a ação. Formou-se uma coalizão de 30 países, inclusive a Argentina. O Brasil optou por não participar.

Havia o interesse evidente de evitar que Saddam Hussein atacasse a Arábia Saudita, o que lhe daria o controle sobre 40% das reservas mundiais de petróleo conhecidas na época.

Os EUA contribuíram com 541 mil dos 795 mil soldados da aliança (Freedman & Karsh, 1993). Superestimaram a força do Iraque. Encomendaram 16 mil sacos plásticos para cadáveres. Ainda estavam sob a Síndrome do Vietnã.

LIÇÕES DO VIETNÃ
A grande lição do Vietnã é que os EUA não podem ir à guerra sem apoio interno. Este apoio interno cai na medida em que a guerra se alonga e/ou que comecem a chegar muitos corpos de soldados enrolados na bandeia.

As lições do Vietnã estão consolidadas na chamada Doutrina Colin Powell. Para encurtar a guerra e diminuir o número de baixas americanas, os EUA devem usar sua força máxima, menos o arsenal nuclear, iniciando a guerra com ondas de bombardeios aéreos devastadores.

Como a Guerra do Golfo de 1991 foi a primeira via CNN, o governo George Herbert Walker Bush, pai, tentou impor um total controle da informação. Havia duas coletivas por dia, uma do Pentágono, com seu videogame da guerra, que mostrava o ataque, mas não a destruição, e a do porta-voz de Saddam, que parecia totalmente fora da realidade. Quando queriam falar para o mundo, Bush e Saddam usavam a CNN.

FATOR CNN
“A Guerra do Golfo (1991) mostrou pela primeira vez na História que a TV pode substituir, com muitas vantagem, os tradicionais canais diplomáticos, em casos de conflitos armados”, afirma o jornalista uruguaio Jorge Gestoso, da CNN em espanhol. Tanto George Bush sr. quanto Saddam Hussein usavam a televisão que inovou transmitindo notícias todo o tempo, quando queriam falar para o mundo.

Gestoso entende que a guerra, de seis semanas, foi “o conflito em que mais se tentou manipular a imprensa”. Nunca antes nenhum jornalista independente tinha deixado de entrar no “teatro de operações”.

Tudo o que os jornalistas obtinham como informação vinha de uma das partes envolvidas no conflito. E a CNN foi a única emissora de TV ocidental autorizada a trabalhar no Iraque durante a guerra. Era um canal de comunicação que Saddam queria para falar ao mundo. Para os iraquianos, se dirigia através dos jornais do regime. Para falar ao mundo árabe, usava a Rádio Bagdá.

A CNN transmitia duas entrevistas coletivas por dia – uma dos iraquianos, outra do Pentágono. Na guerra da informação, cada parte contava o que lhe interessava.

GUERRA SANITIZADA
Os aliados mostravam seus “bombardeios cirúrgicos”, o chamado videogame da guerra. Víamos que um míssil certeiro havia destruído uma ponte. Não sabíamos qual o destino das pessoas que pudessem ter sido feridas pela explosão. Depois soubemos que os bombardeios não foram tão precisos assim, apesar de sua impressionante precisão, e que os mísseis antimísseis Patriota falharam muito mais do que foi anunciado na época.

Já os iraquianos mostravam imagens de civis mortos e feridos e de instalações civis destruídas pelo bombardeio dos EUA e aliados: fábricas, abrigos antiaéreos…

Uma das precauções da CNN, conta Gestoso, era dizer que as matérias eram submetidas à censura militar aliada ou iraquiana.

Os jornalistas americanos sofrem ainda com o rancor contra a política externa dos EUA, especialmente no Oriente Médio, onde existe um forte ressentimento porque Washington aplica dois pesos e duas medidas em relação ao conflito árabe-israelense e ocupa militarmente países muçulmanos.

Gestoso se defende alegando que “a filosofia da CNN é que o jornalista seja eticamente rigoroso com ele mesmo”. O modelo é o do jornalismo americano, “tentar apresentar as histórias com todas as facetas possíveis. Que o telespectador tire suas conclusões”.

Na América Latina, acrescenta o jornalista uruguaio, “quando alguém leva o jornalismo a fundo e a sério, aparecem as pressões, o risco de perder o emprego, a família, a vida”.

“Tudo depende da honestidade e da ética”, declara Gestoso, comentando que muitas vidas e reputações de pessoas depois absolvidas pela Justiça foram destruídas por jornalistas.

PAPA EM CUBA
Outro exemplo de manipulação da notícia citado por Gestoso foi a visita do papa a Cuba: “O povo cubano está sofrendo enormemente com o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos. (…) Os cubanos queriam mostrar ao mundo não só a visita do papa mas também o cotidiano do país.”(…) …o tiro saiu pela culatra porque logo no primeiro dia da visita do papa surgiu nos EUA o escândalo Monica Lewinsky x presidente Clinton”.

Cuba restringe o ingresso de jornalistas americanos na ilha. De repente, convida todas as grandes redes: “Com a presença do papa em Cuba, Fidel Castro buscava duas coisas: mostrar aos EUA que Cuba não está tão isolada. (…) Ter um endosso de algum calibre do papa condenando o embargo era muito importante para Fidel.”

O papa, por sua vez, aproveitou seus sermãos para divulgar suas mensagem de respeito aos direitos humanos, de liberdade, direito à religião, à liberdade de expressão: “Que Cuba se abra ao mundo e que o mundo se abra a Cuba”, disse João Paulo II, tendo o cuidado de pedir primeiro uma abertura no regime cubano, o que a rigor não pode desagradar aos EUA.

Gestoso diz ainda que o Exército Zapatista de Libertação Nacional, dos índios de Chiapas, no Sul do México, usou a imprensa para romper o cerco imposto pelo Exército convocando uma entrevista coletiva antes da eleição do presidente Ernesto Zedillo, em 1994. O subcomandante Marcos revelou-se um hábil manipulador da mídia.

CENSURA MILITAR
Quando estourou um conflito de fronteiras entre Peru e Equador, em 1995, a CNN foi convidada pelo mais fraco Equador para cobrir o conflito. O Peru, então governado por Alberto Fujimori, negou autorização. Deve-se cobrir um lado só?, questiona Gestoso, para concluir que é melhor a cobertura parcial do que nenhuma porque naturalmente Fujimori estava querendo esconder algo. É importante deixar sempre claro ao público que se cobre apenas um lado da guerra porque o outro não deixa.

Na Guerra do Golfo de 1991, como nem o Iraque nem a coalizão liderada pelos EUA permitia o trabalho de jornalistas, com algumas exceções e sob censura militar, até a fase final da guerra a cobertura se baseava em declarações oficiais.

Aquela guerra foi um bom exemplo de que na guerra o que morre primeiro é a verdade, ou talvez as armas de destruição em massa que justificaram a segunda guerra do Iraque sejam um exemplo ainda melhor. Este é o grande desafio dos jornalistas numa guerra: não servir de porta-vozes de mentiras estratégicas.

A CNN chegou a anunciar que depois de um intenso bombardeio aéreo o plano de ataque previa um assalto anfíbio pelo Golfo Pérsico e numa terceira fase uma invasão terrestre do Kuwait. A operação de assalto anfíbrio, que teria custo humano elevado, não foi realizada, mas o anúncio obrigou Saddam a mobilizar suas forças para defender o litoral do Iraque.

PROCESSO DE PAZ
A ampla aliança, a vitória sobre Saddam e o papel de Israel, que não reagiu aos ataques de Scuds de Saddam para não afastar aliados árabes da coalizão, como a Síria, criaram um clima favorável às negociações sobre a paz no Oriente Médio, lançadas na Conferência de Madri, em 30 e 31 de outubro de 1991.

Bush chegou a suspender garantias de crédito no valor de US$ 10 bilhões a Israel para pressionar o primeiro-ministro linha-dura Yitzhak Shamir a participar. Essa negociação é um bom exemplo de como a diplomacia às vezes exige sigilo até que se tenha algo concreto capaz de superar desconfianças históricas e o boicote dos radicais de ambos os lados de um conflito armado.

Logo ficou evidente que os negociadores palestinos consultavam Yasser Arafat e a cúpula da Organização para a Libertação da Palestina, que em seguida assumiu o comando da delegação.

No fim das reuniões de negociação, retomadas em Washington, as diferentes partes, especialmente israelenses e palestinos, já que os sírios se retiraram no início, davam declarações aos jornalistas voltadas para suas opiniões públicas nacionais.

As entrevistas serviam apenas para cristalizar posições consideradas inaceitáveis pelo outro lado, como o direito de retorno dos palestinos, a devolução do setor oriental de Jerusalém, o futuro das colônias judaicas nos territórios árabes ocupados e as garantias à segurança de Israel.

LONGE DA MÍDIA
Como não havia avanço, a Noruega se ofereceu para mediar negociações secretas. Negociadores israelenses e palestinos se reuniram na mesma casa. Tomavam café da manhã, almoçavam, jantavam e tomavam drinques juntos para criarem laços pessoais.

Um mês depois, as negociações para valer começaram. Os noruegueses saíram de cena e disseram: “Agora, vocês têm de se entender. Evitem as recriminações sobre o passado. Pensem no futuro da região, no que vocês querem construir para o futuro. Se vocês brigarem a socos, a gente entra e aparta a briga. Mas sai de novo porque são vocês que precisam se entender”.

Em agosto de 1993, foi anunciada a declaração de princípios assinada por Arafat e o primeiro-ministro israelense trabalhista Yitzhak Rabin nos jardins da Casa Branca em 13 de setembro do mesmo ano. Sem falar na criação de um Estado nacional palestino, transferência parcialmente o poder para um governo palestino na Faixa de Gaza e na cidade bíblica de Jericó, como um primeiro teste para o entendimento entre árabes e judeus na Palestina.

Por vários motivos, o processo de paz não foi concluído até hoje. Clinton tentou fazer um segundo acordo de Camp David, no fim de seu governo, em 2000, mas nenhuma das partes estava disposta a fazer as concessões necessárias para chegar a um acordo, em parte porque o desequilíbrio de forças é enorme.

Mas o que eu queria chamar a atenção aqui é que foi necessário negociar longe da mídia, longe da cobertura diária de jornais em busca de manchetes para fugir dos clichês da guerra. A diplomacia ainda exige segredos de Estado, cada vez mais ameaçados no mundo do WikiLeaks. Talvez os espiões tenham de voltar à era dos papéis escondidos na roupa.

ACORDO SOBRE A BACIA DO PRATA
Outro exemplo foi o acordo entre Brasil e Argentina, assinado no início do governo João Figueiredo, em 1979, para resolver um conflito em torno da exploração hidrelétrica da Bacia do Prata. Quando o Brasil resolveu fazer Itaipu, a Argentina se sentiu ameaçada, alegando que a obra esgotaria o potencial energético do Rio Paraná.

A jornalista Miriam Leitão, na época setorista do Itamaraty, soube do acordo dias antes do anúncio oficial e aceitou um apelo do então porta-voz do Ministério das Relações Exteriores para não dar o furo sob pena de estragar o acordo, que poderia ser minado por elementos extremistas das ditaduras dos dois países. Ela usou o que o sociólogo Max Weber chama de uma ética da responsabilidade, em contraste com a ética dos valores absolutos que geralmente orienta a atividade jornalística, sob o princípio de que “a verdade deve ser dita”.

EXCLUSÃO AÉREA
Quando a Guerra do Golfo de 1991 terminou, o primeiro-ministro britânico John Major e o presidente Bush conclamaram curdos e xiitas a se rebelar contra Saddam, mas não lhes deram apoio militar até que a CNN os obrigou.

Diante dos massacres, sob pressão da opinião pública, impuseram zonas de exclusão aérea no Norte e no Sul do Iraque. Relutaram porque os interesses nacionais não eram os mesmos com Saddam derrotado e humilhado, e o restabelecimento da monarquia petroleira no Kuwait.

FOME NA SOMÁLIA
Derrotado por Bill Clinton com a ajuda de Ross Perot e da crise econômica em novembro de 1992, Bush sr. resolveu fazer uma operação de ajuda humanitária na Somália, pressionado mais uma vez pelo Fator CNN em meio à fome em massa.

Talvez até pela falta de notícias na ressaca pós-eleitoral, observou Nik Gowing (1994), hoje âncora da BBC, em ensaio escrito na JFK School of Government, na Universidade de Harvard, sobre a cobertura ao vivo de guerras e conflitos diplomáticos, questionando se distorcem as decisões de política externa, o noticiário se voltou para a fome na África.

Era uma operação considerada viável pelo Pentágono. Uma intervenção de baixo custo com amplo apoio popular fecharia o governo Bush sr. com uma nota positiva e ajudaria o Pentágono a evitar os cortes de gastos prometidos por Clinton durante a campanha.

Diante de uma crise humanitária evidente num país sem governo desde a queda do ditador Mohamed Siad Barre, em 1991, sob pressão da mídia liberal, Bush obteve a aprovação unânime do Conselho de Segurança da ONU.

BATALHA DE MOGADÍSCIO
A operação foi um sucesso enquanto se limitou a distribuir comida. Quando o chefe do clã que controlava o porto da capital começou a perturbar a operação da ONU para usar a comida como arma de guerra, o governo Clinton resolveu caçar o senhor da guerra Mohamed Farah Aidid. Como as forças dos EUA não tinham o equipamento e o contingente necessários para ações ofensivas, foram derrotadas e humilhadas na Batalha de Mogadíscio, retratada no filme Falcão Negro em Perigo.

Mais uma vez, os EUA perdiam a batalha da opinião pública, neste caso diante de imagens humilhantes de soldados americanos mortos sendo arrastados pela multidão nas ruas de Mogadíscio.

O trauma da Batalha de Mogadíscio foi decisivo para que os EUA evitassem uma intervenção capaz de evitar o genocídio em Ruanda, que Clinton considera hoje seu maior erro.

GENOCÍDIO EM RUANDA
Depois da morte do presidente Juvenal Habyarimana num ataque de mísseis da Frente Patriótica de Ruanda em 6 de abril de 1994, o governo hutu acuado começou a matar adversários do regime e a minoria étnica tútsi. A mídia oficial do regime em queda fomentou os massacres, descrevendo os inimigos como “baratas” que tinham de ser esmagadas.

Sob ameaça, a ONU reduziu seu contingente de 2,5 mil para 275 homens e sofreu uma das grandes humilhações de sua história, muito maior do que a da força de paz holandesa que não conseguiu impedir o massacre de Srebrenica, na Bósnia, em julho de 1995.

Em dois meses, cerca de um milhão de pessoas foram mortas. Em maio, o ministro do Exterior conservador francês, Alan Juppé, declarou que “a comunidade internacional não pode agir como polícia, mandando forças de paz para todo lugar onde houver conflito”.

Só em meados de junho, sob pressão do noticiário sobre as matanças, com o presidente socialista François Mitterrand preocupado com seu lugar na história, a França se ofereceu para intervir, mas sua ação foi vista mais como o exercício de um poder pós-colonial sobre a África francófona para preservar sua área de influência.

A FPR acusou a Operação Turquesa de proteger a fuga do governo hutu e da milícia Interahamwe, responsável pelo genocídio.

Mais uma vez, foi a opinião pública, neste caso especialmente da França, que forçou a intervenção, tardiamente.

LONGE DAS CÂMARAS
O genocídio em Ruanda e a fuga dos hutus desestabilizou o Zaire, que virou a República Democrática do Congo com a queda do ditador Joseph Mobutu e foi palco da chamada Primeira Guerra Mundial Africana, que não terminou até hoje e já matou mais de 5 milhões de pessoas.

É uma guerra brutal, especialmente para as mulheres, submetidas sistematicamente à violência sexual, e relativamente esquecida porque é travada longe da mídia internacional. A guerra virou parte da vida cotidiana. Não é notícia. Então é claro que a atenção da mídia é fundamental para revelar e denunciar os crimes cometidos.

AJUDA AO HAITI
No caso do Haiti, as intervenções em 1994 para derrubar o general golpista Raoul Cédras e restaurar a presidência de Jean-Bertrand Aristide, deposto em 1991, e de 2004 para evitar uma guerra civil com a queda de Aristide, foram movidas mais pelo interesse nacional dos EUA de evitar uma fuga em massa de refugiados pelo Mar do Caribe rumo ao território americano.

Nos dois casos, o custo era baixo e a chance de sucesso, elevada. Ambas podem ser enquadradas como operações de ajuda para evitar crises humanitárias, mas o motivo central foi o interesse nacional americano de evitar uma crise no seu litoral.

O Brasil comanda e fornece a maior parte da tropa da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah). Uma de suas principais tarefas foi pacificar as favelas de Porto Príncipe, a capital do país.

Com o trágico terremoto de 12 de janeiro de 2010, a atenção da mídia internacional se voltou para o Haiti, chocada por cerca de 200 mil mortes e 1,5 milhão de desabrigados. As Forças Armadas dos EUA participaram da operação de resgate, a exemplo do que tinham feito no maremoto na Indonésia. Através da ONU, foram prometidos US$ 10 bilhões para reconstruir o país.

MÍDIA NÃO BASTA
Na guerra da Bósnia-Herzegovina (1992-95), o pior conflito armado em território europeu depois de 1945, o Fator CNN estava presente, mas não foi suficiente para mobilizar a opinião pública a pressionar o governo dos EUA a intervir.

Para o presidente Bush, pai, no mundo pós-Guerra Fria, as questões europeias onde não houvesse interesses americanos envolvidos deveriam ser resolvidas pelos europeus. Os europeus não estavam dispostos a usar a força sem a liderança dos EUA.

Quando Bill Clinton decidiu intervir, foi contra a opinião pública, que era contra, mesmo diante do massacre de 8 mil homens Srebrenica. Além de não haver interesses dos EUA em jogo, a chance de sucesso escassa desestimulava a intervenção.

A conclusão é que a mídia não é fundamental quando há interesses nacionais dos EUA em jogo, embora os governos a usem e manipulem para justificar a ação. Não havendo interesses nacionais em jogo, o Fator CNN é importante para mobilizar a opinião pública e pressionar os governos a agir.

A televisão e a mídia divulgam as imagens da tragédia da guerra. É um fator necessário para criar uma opinião pública favorável à intervenção, mas não suficiente. Precisa haver uma expectativa razoável de sucesso. Na Bósnia, as potências ocidentais foram dragadas para o conflito e obrigadas a usar a força para não serem obrigadas a fazer uma retirada humilhante.

MENOS INTERVENÇÕES
A expectativa de JAKOBSEN, nos anos 90, era de que não haveria tantas intervenções militares no futuro próximo.  Elas seriam realizadas pelas grandes potências nas suas áreas de influência, como a intervenção do Reino Unido em Serra Leoa e da França na Costa do Marfim ou no Mali.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 mudaram a realidade da primeira década pós-Guerra Fria, com a chamada “guerra contra o terror”, que não era guerra nem contra o terror. Isso ajudou a destruir o frágil consenso possível no Conselho de Segurança da ONU.

Diante da ameaça de massacre em Trípoli, a segunda maior cidade líbia, em março de 2011, o Conselho de Segurança da ONU autorizou o uso da força para proteger civis na Líbia.

A operação realizada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi criticada por supostamente ter ido além de seu mandato de proteger civis para derrubar o ditador Muamar Kadafi e mudar o regime. Os EUA, a França e o Reino Unido alegaram que seria impossível proteger os civis com Kadafi no poder.

A presidente Dilma Rousseff defendeu o conceito de “responsabilidade ao proteger”, mas esse debate não evoluiu. Houve mortes injustificadas de civis nos bombardeios da OTAN, mas a morte do ditador e o fim do regime suscitaram reações.

REVOLUÇÕES SEM LÍDERES
O papel revolucionário das novas mídias no Oriente Médio é examinado desde a queda do Xá no Irã na revolução islâmica de 1979. Se as guerras civis e revoluções são rupturas na ordem sociopolítica, as comunicações certamente têm um papel central, observa Jerrold GREEN, do Centro de Políticas Públicas do Oriente Médio da Rand Corporation, nos EUA, no artigo A Revolução da Informação e a Oposição Política no Oriente Médio, publicado no Middle East Studies Association Bulletin, em 1999.

Por muito tempo, os líderes do Oriente Médio relutaram em permitir a difusão de qualquer tecnologia que pudesse ser usada por oposicionistas. Na virada do século, a região tinha os menores índices de acesso à rede mundial de computadores, abaixo da África.

Já naquela época, GREEN observava que "a revolução da informação está mudando a política do Oriente Médio", com "incontáveis sítios de Internet dedicados a temas da Oriente Médio", "centenas de antenas de satélite, mesmo onde eles são ilegais", os boletins divulgados por fax, "a proliferação dos telefones celulares" e "o crescente acesso à Internet". Ele notou que muita gente "associa estas tecnologias à pornografia e à decadência moral" e também à violência que veem nos filmes de Hollywood. O cinema é uma mídia fundamental para formar a imagem de um país no exterior.

Como estas tecnologias são essenciais ao funcionamento de uma economia moderna, a censura oficial não conseguiu resistir totalmente . A exposição a essas novas ondas de informação levou a um maior pluralismo. Sob pressão da recessão econômica mundial de 2008-9, o caldeirão explodiu.

Tanto a Tunísia como o Egito, observa Jean-Pierre FILIU em A Revolução Árabe – dez lições dos levantes democráticosforam capazes de derrubar ditaduras entrincheiradas com protestos pacíficos, organizados com a ajuda das novas mídias. Uma combinação de pressão das ruas, agitação trabalhista e ativismo pela liberdade abriram o caminho para a transição democrática e reformas constitucionais.

No Egito, foi fundamental a mobilização via redes sociais, com destaque para Wael GHONIM, diretor do Google para o Oriente Médio. Ele criou no Facebook a página Todos Nós Somos Khaled Said, em homenagem a um estudante morto pelo governo, foi preso e deu uma entrevista pedindo desculpas pelas mortes, das quais não era responsável. Há um livro dele, Revolução 2.0: o poder do povo é maior do que o das pessoas no poder, contando essa história.

No caso da Líbia, a heterogeneidade da coalizão anti-Kadafi se tornou sua maior fraqueza. A situação ainda é extremamente instável.

Na Síria, o conflito degenerou na mais sangrenta guerra civil em andamento hoje no mundo. Espero que essas observações tenham ajudado a compreender a incapacidade da sociedade internacional de articular uma solução pacífica e o às vezes contraditório papel da mídia em negociações de conflitos internacionais.

* (Texto preparado para apresentação no Ciclo de Palestras Mídia e Relações Internacionais, organizado pelo Núcleo de Estudos Internacionais Brasil-Argentina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2 de julho de 2013)

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