Um dos grandes personagens da Guerra Fria, o coronel Muamar Kadafi desafiou o Ocidente, financiou o terrorismo e chegou a ser chamado de "cachorro louco" pelo presidente americano Ronald Reagan. Ele morreu como um cão, revela agora o relato mais completo de sua morte publicado até hoje.
O ditador fugiu da capital com dois filhos em 28 de agosto de 2011, três dias antes de completar 42 anos de um reinado absolutista na Líbia. Depois de meses de ofensiva, Trípoli caía em poder dos rebeldes.
Em menos de 24 horas de fuga, seu filho Khamis morreu, talvez num bombardeio aéreo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a aliança militar liderada pelos Estados Unidos. Seu provável sucessor, Seif al-Islam, conseguiu escapar para Bani Walid, onde seria preso em novembro, conta o jornal The Washington Post, citando como fonte um relatório da organização não governamental Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos).
Depois de quatro décadas, o poder do clã se dissolvia rapidamente. O Post admite que a reportagem se baseia em depoimentos da milícia que matou Kadafi e de um assessor que o acompanhava e sobreviveu ao ataque final - o que torna impossível confirmar os detalhes. Mas afirma ser o relato mais completo até agora dos últimos dias da vida de um personagem da História do Século 20.
Kadafi chegou a Sirte, sua terra natal, uma cidade de 75 mil habitantes, observa o jornal americano, com um grupo de guarda-costas e um oficial do serviço secreto chamado Mansur Dhao. Hospedou-se num apartamento no centro. Lá o coronel em fuga recebeu o chefe do servico secreto, Abdullah Senussi, e o filho Mutassim Kadafi para discutir a guerra que estavam perdendo.
Mutassim, notório por sua crueldade, comandava a defesa de Sirte. Foi várias vezes discutir a situação com o pai.
Quando os rebeldes intensificaram o bombardeio, Kadafi deixou o centro e se refugiou num bairro do oeste de Sirte. O ditador que mandou bilhões de dólares do petróleo líbio para contas no exterior e seus guarda-costas invadiam casas abandonadas para procurar comida. Como o sistema de abastecimento de água também fora destruído, tinham sede.
Durante suas últimas semanas, "Kadafi passou a maior parte do tempo rezando e lendo o Corão", disse Dhao, o oficial de segurança.
Acuado, o coronel mudava de esconderijo a cada quatro ou cinco dias. Usava um telefone de satélite para falar com alguém que tivesse acesso à televisão e pudesse lhe dar informações sobre a guerra civil. Mas já não tinha mais influência sobre os acontecimentos.
À medida que o cerco se fechava e as condições de vida nos refúgios ficava pior, "Kadafi foi ficando mais e mais furioso. Ficava furioso principalmente pela falta de eletricidade, de comunicações e de uma televisão. Quando íamos falar com ele, perguntava sempre: 'Por que não há eletricidade? Por que não há água?'".
No fim, o bairro onde Kadafi se escondia foi transformado num enclave do que restava de seu governo, cercado por milícias que transformaram o hospital local num hospital de campanha. Mas a concentração de kadafistas atraiu a atenção dos rebeldes.
Em 19 de outubro de 2011, Mutassim apresentou ao pai um plano de fuga. Eles teriam de furar o cerco rebelde. À noite, os guarda-costas carregaram um comboio de 50 veículos, inclusive picapes com lançadores de mísseis e metralhadoras armadas na caçamba.
O plano era partir entre 3h30 e 4h da madrugada. Mas a preparação do comboio só ficou pronta as 8h, quando os rebeldes já tinham retomado suas posições e o sol iluminava a vastidão do deserto no Norte da África.
Não ficou claro por que Muamar e Mutassim Kadafi decidiram levar adiante o plano, observa o Washington Post. Talvez achassem que não poderiam esperar pela próxima noite, talvez não quisessem perder o impulso de fugir, talvez fosse desespero. Mas a fuga totalmente errada selou o destino do coronel.
Eles saíram pela costa na direção oeste, passando por bairros arrasados pela guerra civil. Logo os rebeldes iniciaram a perseguição ao comboio, que tomou uma estrada rumo ao sul. Em seguida, um míssil caiu perto do carro de Kadafi. O impacto foi tão forte que acionou os airbags.
Kadafi e sua turma voltaram a uma zona urbana onde ficaram encurralados ao dar de frente com uma milícia da cidade de Missurata, alvo de um cerco e bombardeio de semanas pelas forças kadafistas, inclusive com bombas de fragmentação que a tornaram "num inferno", na visão dos rebeldes.
Ao atacar de frente os rebeldes, o comboio chamou a atenção da Força Aérea da OTAN, que interveio militarmente com mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas para proteger a população civil e não para mudar o regime nem para matar o coronel Kadafi - o que provocou críticas e dificulta uma intervenção na Síria.
Os caças-bombardeiros da OTAN jogaram duas bombas de 500 libras (227 kg) guiadas a lêiser no comboio, provocando uma série de explosões de munição que dividiram o grupo que levava Kadafi.
O coronel, Mutassim, o ministro da Defesa e um grupo de guarda-costas tentaram se esconder numa casa abandonada. "Encontramos Muamar lá, com um elmo e um colete a prova de bala. Ele tinha um revólver na cintura e carregava uma arma automática na mão", contou o filho do ministro da Defesa, descrevendo a luta desesperada para proteger o líder.
Mutassim formou um grupo de uns dez homens para tentar furar o cerco. "Vou abrir uma saída", disse ao pai no último diálogo entre os dois. Foi preso em seguida e morto horas depois.
Quando a casa começou a ser bombardeada, Kadafi e o que restava de seu grupo saíram correndo mais uma vez. "Havia uma série de blocos de concreto para alguma obra. Nós nos escondemos ali, junto com os guarda-costas e algumas famílias", lembrou o filho do ministro da Defesa.
Em mais um erro, Kadafi e mais dez decidiram correr em campo aberto até uma tubulação de concreto que havia debaixo de uma estrada. Ali, se esconderam. Quando saíram, foram logo vistos pelos rebeldes, relataram testemunhas citadas pelo Human Rights Watch.
Aí começou a batalha final. Os seguranças de Kadafi jogaram várias granadas de mão. Uma bateu numa parede de cimento armado e caiu perto do coronel. Quando um guarda-costas se abaixou para afastá-la, ela explodiu, arrancando seu braço. O coronel e o ministro da Defesa foram feridos.
"Corri na direção do meu pai e perguntei se ele estava bem, mas ele não respondeu. Vi Muamar sangrando", ferido na cabeça, recorda o filho do ministro da Defesa. O esquema de segurança do ditador entrou em colapso.
Os rebeldes desceram da estrada e finalmente pegaram o ex-homem-forte da Líbia. Confuso e abalado, Kadafi foi cercado por uma multidão que o humilhou, o espancou e puxou seu cabelo. Um miliciano o empalou enfiando-lhe uma baioneta no ânus.
"Foi uma cena violenta", reconheceu um comandante rebelde em depoimento ao Human Rights Watch. "Ele foi colocado na cabine de uma picape que tentou levá-lo, mas caiu. Sabemos que deveria haver um julgamento, mas não pudemos controlar todo o mundo, algumas pessoas se descontrolaram".
O golpe fatal ainda é mistério. No vídeo de celular que horas depois circulava pelo mundo via Internet, pela descrição da ONU, "o corpo de Kadafi seminu e aparentemente sem vida é colocado numa ambulância, o que sugere que ele poderia ter sido morto no local da captura", antes de ser levado para Missurata.
Quem matou talvez nunca se saiba. O coronel tinha vários ferimentos. É possível que mais de um fosse mortal.
"Alguns milicianos de Bengázi alegaram ter matado Kadafi numa discussão com rebeldes de Missurata sobre para onde levariam o ditador, mas essas alegações não foram confirmadas", pondera o Human Rights Watch.
Muamar Kadafi, Mutassim e o ministro da Defesa foram enterrados pelo governo provisório em local não revelado para evitar que se torne um lugar de peregrinação dos órfãos do cachorro louco da política internacional.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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