domingo, 10 de junho de 2012

Conflito na Síria relança dilema da intervenção militar

Com mais de 12,5 mil mortes em um ano e três meses, a guerra civil na Síria recoloca a questão da legalidade e legitimidade de intervenções militares por razões humanitárias.

Depois de autorizar no ano passado o uso da força "para proteger civis" na Líbia, o Conselho de Segurança das Nações Unidas nem sequer aprovou sanções contra a ditadura síria, por veto da China e da Rússia. Essas potências, o Brasil, a Índia, a África do Sul e outros países em desenvolvimento entendem que a operação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ultrapassou os limites do mandato ao derrubar o coronel Muamar Kadafi e mudar o regime líbio.

Em 1904, o então presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt argumentou que "há crimes cometidos numa escala tão grande e com tamanho horror" que justificariam uma reação armada. Pouco menos de um século antes, quando a Grécia lutava pela independência, em 1821, seu predecessor John Quincy Adams advertiu os americanos para os riscos de "sair ao exterior em busca de monstros para destruir".

O isolacionismo marcou a política externa do início dos EUA. No seu Discurso de Despedida, o primeiro presidente, George Washington, alertou que o país não deveria se envolver em guerras onde não estivesse em jogo o interesse nacional dos EUA.

Ao entrar no sistema internacional, os EUA aceitavam os princípios da soberania nacional e da não intervenção nos assuntos internos de outros países, bases da ordem internacional criada pelo Tratado de Paz da Vestfália, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos (1618-48).

Em 1917, o presidente intervencionista Woodrow Wilson, para justificar a entrada do país na Primeira Guerra Mundial (1914-18), teve de convencer os americanos de que era "a guerra para acabar com todas as guerras".

Wilson não conseguiu persuadir os americanos a aprovar sua proposta de criação da Liga das Nações. A primeira organização internacional de caráter universal nasceu frágil. Sem a maior potência mundial, não conseguiu impedir a invasão da China pelo Japão, da Etiópia pela Itália e da Tcheco-Eslováquia pela Alemanha, ações militares que levaram à Segunda Guerra Mundial (1939-45).

Quando o conflito acabou, sob a inspiração de outro presidente americano, Franklyn Roosevelt, nasceu a Organização das Nações Unidas. A Carta da ONU consagra em sua carta os princípios de soberania nacional e de não intervenção como bases do sistema internacional. Mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, a organização também promete proteger os direitos individuais, esmagados pelo genocídio contra os judeus e tantos outros massacres cometidos durante a guerra.

Em 10 de dezembro de 1948, a ONU aprovava a Declaração Universal dos Direitos Humanos e depois as convenções contra a Tortura e o Genocídio, além das Convenções de Genebra, elementos centrais do direito internacional humanitário.

Pelo menos três intervenções militares do século passado passaram a ser enquadradas como humanitárias, o que implica o reconhecimento de que não havia outros interesses políticos ou econômicos que as justificassem:
• a intervenção da Índia na guerra civil paquistanesa que levou à independência de Bangladesh, o antigo Paquistão Oriental, em 1971;
• a guerra da Tanzânia contra Uganda, em 1978, para derrubar o ditador Idi Amin Dada, que tentara anexar a província tanzaniana de Kagera;
• e a invasão do Camboja pelo Vietnã no Natal de 1978 para derrubar em 9 de janeiro de 1979 a ditadura de Pol Pot e o reino de terror do Khmer Vermelho, acusado por 2 milhões de mortes.

Nos anos 80, com o fim da Guerra Fria, a ONU realizou uma série de missões de paz na África, na América Latina e na Ásia. Na maioria dos casos, era operações de manutenção da paz negociada entre as partes em conflito, que convocavam a instituição internacional para dar aval, garantir a trégua, desarmar os beligerantes e tentar construir as bases permanentes da pacificação e da reconciliação, com eleições e organização da sociedade civil.

Nos anos 90, o desafio seria bem maior: impor a paz. Tanto na antiga Iugoslávia como nas guerras na África, não havia paz a manter.

Sob a bandeira da ONU, os EUA fizeram uma operação para garantir a distribuição de comida na Somália, em 1992, no fim do governo George Bush sr. Seu sucessor, o presidente Bill Clinton quis transformar a intervenção numa luta contra o senhor da guerra Mohamed Farah Aidid, que dificultava a missão humanitária, sem os recursos militares necessários para a missão. Foi um desastre, mostrado em Falcão Negro em Perigo, que virou livro, filme e videogame.

Depois da morte de 18 americanos na Batalha de Mogadíscio, em 1993, Clinton não só retirou os soldados dos EUA da Somália. Usou o poder de veto dos EUA para impedir uma intervenção da ONU em Ruanda, onde 800 mil pessoas foram mortas em 100 dias em 1994, no último genocídio do século 20. Hoje, ele reconhece que esse foi seu maior erro.

O massacre pelos sérvios de quase toda a população adulta masculina de Srebrenica, uma cidade da Bósnia-Herzegovina que havia sido declarada "zona sob proteção" da ONU, em julho de 1995, levou a uma campanha aérea da OTAN e aos acordos de paz de Dayton, em novembro daquele ano, pondo fim temporariamente às guerras que destruíram a Iugoslávia.

Quando o ditador sérvio Slobodan Milosevic voltou a cometer crimes contra a população albanesa do Kossovo, foi alvo de uma guerra aérea de 78 dias da OTAN, em 1999. No seu 50º aniversário, depois do desaparecimento da arqui-inimiga União Soviética, a aliança militar ocidental buscava uma nova doutrina. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, defendeu o "direito de intervenção por razões humanitárias".

Para conciliar os princípios de soberania nacional e não intervenção com o direito de ingerência por razões humanitárias, o então secretário-geral da ONU Kofi Annan criou uma comissão. Seu trabalho concluiu que é dever do Estado proteger seus cidadãos. Assim, se um governo atacar seus próprios cidadãos, pode ser alvo de uma intervenção internacional baseada na "responsabilidade de proteger".

É um conceito estranho para os adeptos da realpolitik como o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger, que só concebe a guerra por "razões de Estado", na linha de um de seus ídolos, o cardeal Richelieu, primeiro-ministro de Luís XIII, na França. Ele acaba de se opor a uma intervenção na Síria, alegando que sem uma estrutura de governo montada para tomar o poder haveria um vazio político e uma guerra civil de consequências ainda piores.

Ao comentar o assunto, no artigo O Dilema da Intervenção, o ex-secretário da Defesa adjunto para política de defesa Joseph Nye jr., professor da Universidade de Harvard, observa que a política externa deve adotar o mesmo princípio da medicina: "Em primeiro lugar, não faça mal".

A Líbia foi o primeiro teste da "responsabilidade ao proteger". Quando as forças leais ao ditador Muamar Kadafi se aproximavam de Bengázi, segunda maior cidade do país e principal foco da rebelião, em março de 2011, a ONU autorizou o uso da força para "proteger os civis".

Para marcar posição contra os EUA e as potências europeias, a presidente Dilma Rousseff lançou a ideia da "responsabilidade ao proteger", insinuando que a OTAN seria responsável pela morte dos civis que deveria defender.

Duas organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos, Anistia Internacional e Human Rights Watch, pediram investigações sobre mortes de civis em bombardeios da aliança atlântica. Mas o total de mortes de civis inocentes atribuídas à OTAN não chega a cem, muito menos que seria de se esperar se Kadafi massacrasse Bengázi e esmagasse a revolta popular.

Nye acredita que a Síria é uma situação muito diferente, complicada pela diversidade étnico-religiosa do país e por sua posição no Oriente Médio. Isso não significa, ressalva, que nada possa ser feito. Seria importante, na sua opinião, convencer a Rússia a retirar seu apoio ao ditador Bachar Assad, que para os EUA e a Europa perdeu qualquer legitimidade.

Também contrário a uma intervenção miliar que não está nos planos do presidente Barack Obama num ano eleitoral, o jornalista e intelectual americano Fareed Zakaria aposta no colapso econômico do regime, se a sociedade internacional impuser sanções econômicas duras.

Em último caso, admite Nye, a Turquia poderia intervir para dar um empurrão final num Assad enfraquecido. Ele cita intervenções militares bem-sucedidas na Bósnia, na Libéria, em Serra Leoa e no Timor Leste. Não resolveram todos os problemas dos conflitos, mas melhoram a vida das populações destes países, ao contrário do que aconteceu na Somália, onde hoje há uma intervenção do Exército do Quênia, além da presença de uma força de paz da União Africana para apoiar o frágil governo provisório.

As guerras no Afeganistão e no Iraque não podem ser enquadradas como intervenções militares por razões humanitárias, apesar disto ter sido alegado para justificar a derrubada de Saddam Hussein depois que não foram encontradas as armas de destruição em massa que legitimariam a invasão.

Seu custo elevado de milhares de vidas e trilhões de dólares minaram o apoio a intervenções militares. Obama só concordou participar da intervenção na Líbia depois de um pedido da Liga Árabe e da aprovação do Conselho de Segurança da ONU. A França e o Reino Unido lideraram o processo.

Como superpotência, os EUA devem continuar intervindo militarmente no exterior, prevê Nye, mas as intervenções devem ser curtas, envolvendo um número menor de soldados, com predominância de tropas de elite e tecnologias que permitam ações à distância.

Numa era de guerra cibernética e ataques com aviões não tripulados (drones), o professor de Harvard entende que as intervenções militares em grande escala pertencem ao passado. Se isso será suficiente para proteger os direitos humanos de populações ameaçadas, é outra história.

A tensão entre os direitos ou o poder dos Estados e os direitos humanos é um dos temas centrais do direito e das relações internacionais contemporâneas. Volta à tona toda vez que ditadores e facínoras promovem banhos de sangue.

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