Quando quatro caças-bombardeiros da França atacaram uma coluna de tanques do coronel Muamar Kadafi a caminho de Bengázi, principal foco da rebelião na Líbia, em 19 de março de 2011, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi ficou furioso. Acusou o presidente Nicolas Sarkozy de passar por cima da Organização do Atlântico Norte (OTAN) e ameaçou vetar o uso das bases na operação para proteger a população civil.
Foi necessário um longo e delicado trabalho diplomático para articular e manter unida a aliança durante os sete meses até a queda e morte de Kadafi. Uma personagem central nesta história foi a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, a ministra mais destacada do governo Barack Obama, que colecionou mais uma vitória em política externa para tentar compensar a situação difícil da economia doméstica, informa o jornal The Washington Post.
Vários deputados da oposição republicana ironizaram a expressão "liderar de trás", sem estar na primeira linha das operações nem usar todo o poder aéreo dos Estados Unidos para vencer logo a resistência de Kadafi, principal crítica do senador John McCain, candidato derrotado por Obama em 2008.
Mas uma intervenção considerada desnecessária num conflito onde não havia interesses estratégicos dos EUA em jogo nem apoio popular se transformou num modelo. Como observou o vice-presidente Joe Biden, o custo foi de US$ 2 bilhões e não morreu nenhum americano.
"Houve períodos de angústia e remorso" nesses sete meses, admitiu Hillary, mas "adotados uma política que estava do lado certo da História, dos nossos valores e interesses estratégicos na região".
De sua primeira ação armada, em 18 de fevereiro, até 9 de março, o desorganizado movimento rebelde conquistou sucessivas vitórias. Quando Kadafi reagiu e prometeu esmagá-los como "ratos", os rebeldes pediram ajuda internacional.
Por iniciativa da França e do Reino Unido, em 17 de março, o Conselho Segurança das Nações aprovou a Resolução 1.973, autorizando o uso da força para "proteger a população civil" da Líbia da contraofensiva das forças leais ao coronel Kadafi por 1o a zero, com quatro abstenções, da Alemanha, China, Rússia, Brasil e Índia.
A proposta inicial era criar uma zona de exclusão aérea ou proibição de voo para impedir Kadafi de usar a Força Aérea para atacar os rebeldes. No último momento, sob pressão dos EUA, o texto foi mudado para autorizar o uso de "todos os meios necessários" para proteger a população civil líbia.
Na Casa Branca, temia-se que a guerra aérea não fosse suficiente para derrotar Kadafi. O secretário da Defesa, Robert Gates, era contra envolver os EUA em mais uma guerra. Em duas visitas à Europa no início de março, Hillary deixou claro que os americanos não estavam dispostos a liderar mais uma ação militar arriscada contra um país muçulmano.
"Éramos contra fazer algo meramente simbólico", relembra Hillary. "Teríamos cruzado a barreira da intervenção sem conseguir nada."
Em 12 de março, a Liga Árabe aprovou a imposição de uma zona de exclusão aérea na Líbia. Era a aprovação que faltava para o modelo de intervenção do que poderá a ser a Doutrina Obama (ou Hillary) para lidar com conflitos desta natureza, em que que ditadores ameaçam massacrar seu próprio povo. Os EUA agem em conjunto, com o apoio de uma aliança e a aprovação da ONU, afastando-se do unilateralismo do governo George W. Bush.
No dia seguinte, em Paris, durante uma conferência do Grupo dos Oito (G-8), a secretária de Estado recebeu pela primeira vez Mahmoud Jibril, vice-líder do Conselho Nacional de Transição da Líbia. Ela também negociou o apoio militar de países árabes da região do Golfo Pérsico para que não fosse uma intervenção militar só do Ocidente e esteve com o ministro do Exterior da Rússia, que poderia vetar a resolução da ONU.
"Quando Hillary chegou à França, não tinha orientação expressa da Casa Branca para apoiar o uso da força contra a Líbia", observa um diplomata americano. Não havia consenso no governo Obama sobre o que fazer.
Dois dias depois, a secretária de Estado tinha uma resposta: "É uma oportunidade para os EUA atenderem a um pedido árabe. Iria melhorar a imagem dos EUA no mundo árabe a mandar um sinal importante para os movimentos da primavera árabe".
Ao falar com Obama em 15 de março, Hillary se tornara uma forte defensora da intervenção militar. O presidente concordou.
Quando Sarkozy decidiu iniciar os bombardeios aéreos, Berlusconi não gostou e o presidente da Turquia, Abdullah Gul, manifestou suspeita de que a França tivesse "interesses secretos" intervenção militar.
A estrutura de comando das operações da OTAN foi definida numa conferência telefônica entre Hillary e os ministros do Exterior da França, Alain Juppé; do Reino Unido, William Hague; e da Turquia, Ahmet Davutoglu.
Com a OTAN pacificada, foram os aliados árabes que se rebelaram. A Jordânia, o Catar e os Emirados Árabes Unidos tinham prometido mandar aviões de combate. Três dias depois do início dos bombardeios, recuaram temendo a reação interna de suas populações e descontentes com as críticas de Washington à intervenção militar da Arábia Saudita no Bahrein.
Hillary pressionou diretamente o emir do Catar e o rei da Jordânia: "É importante para os EUA, é importante para o presidente e é importante para mim pessoalmente."
Em 25 de março, os aviões catarinos entraram em combate. Logo a força aérea internacional conteve o avanço dos kadafistas rumo à capital rebelde. Mas, em maio, a guerra civil líbia entrou num impasse, sem avanços significativos de nenhuma parte.
No início de julho, os rebeldes estavam sem armas, munições e até mesmo comida. Hillary pediu a Obama que reconhecesse o CNT como governo provisório da Líbia, contrariando a recomendação dos advogados do Departamento de Estado. Num encontro em Istambul, na Turquia, em 15 de julho, convenceu 30 outros governos árabes e ocidentais a fazer o mesmo.
Assim, os rebeldes teriam acesso aos fundos líbios congelados pelas sanções contra a ditadura do coronel Kadafi.
Cinco semanas depois, Trípoli caiu. A Força Aérea dos EUA fez menos de um terço das 14 mil missões de ataque, mas deu apoio logístico e realizou operações de reabastecimento no ar.
O balanço final da intervenção ainda está longe de ser concluído. Vai depender da natureza do regime que os rebeldes construírem na Líbia. Mas foi claramente uma tentativa dos EUA de tentar manter sua preeminência nas relações internacionais de forma discreta, formando alianças e economizando recursos.
Uma pesquisa da revista Time divulgada na semana passada indicou que, se fosse a candidata do Partido Democrata à eleição presidencial de 2012, Hillary venceria todos os possíveis adversários republicanos. Obama ficaria num empate técnico com o ex-governador de Massachusetts Mitt Romney.
Para a maioria do eleitorado, Hillary teria dado uma presidente melhor, mais firme e decidida do que Obama.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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