quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Kadafi liderava regime paranoico e cruel

Ao tentar realizar uma revolução socialista num país árabe tribal em torno de sua personalidade, o coronel Muamar Kadafi, morto hoje aos 69 anos, criou na Líbia nos últimos 42 anos um regime singular centrado na sua própria figura, com baixa institucionalização, marcado pela prepotência e arbítrio.

Com a visão anti-imperialista que sustentou o golpe contra a monarquia, em 1º de setembro de 1969, Kadafi se aliou ao bloco soviético durante a Guerra Fria. Durante décadas, travou um duelo com o Ocidente e apoiou grupos terroristas.

Como Cachorro Louco da política internacional, sua ação externa ajudou a esconder o que já estava sob forte censura interna na Líbia.

Sua Jamaria, ou república árabe socialista, é apresentada como um sistema de governo dirigido diretamente pelas massas. Na realidade, observa Dirk Vandewalle, na introdução de Qadhafi’s Libya: 1969-94, era um regime onde “o líder e um pequeno grupo de assessores tomava praticamente todas as decisões relativas à economia e à polícia, excluindo deliberadamente os setores econômicos cruciais da administração popular direta”.

Até sua reaproximação com o Ocidente, em 2003, Kadafi se apresentava como o futuro do nacionalismo pan-árabe, órfão desde a morte política do presidente do Egito Gamal Abdel Nasser, que veio com a derrota dos árabes para Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967. A Líbia era pintada como um bastião da resistência ao imperialismo ocidental.

Apesar do sonho de servir de modelo de desenvolvimento para o mundo árabe e o resto da África, a revolução deflagrada para combater a corrupção e controlar a riqueza do petróleo não fez um planejamento econômico de longo prazo para desenvolver o país.

Ao destruir as instituições da monarquia a pretexto de combater a corrupção, Kadafi deixou os líbios mais dependentes das prestações sociais do governo. Isso aumentou o controle sobre a população, já vigiada de perto por uma polícia política de corte soviético insuflada pela paranoia do chefe supremo, que formalmente não ocupava nenhum cargo.

Sem planejamento econômico, a Líbia passou a importar quase tudo, de bens de consumo a técnicos e especialistas para a indústria do petróleo.

Num país cheio de contradições, o ativismo do líder contrastava com a passividade de uma sociedade de 6 milhões de pessoas que se acomodavam com as benesses da renda do petróleo até que os vizinhos da Tunísia e do Egito decidiram derrubar seus ditadores, no início do ano.

A Líbia tem as maiores reservas de petróleo da África, 3% do total mundial. Antes da revolução, produzia 1,6 milhão de barris de petróleo por dia, 85% exportados para a Europa.

Durante a revolução dos últimos oito meses, ficou evidente que a Líbia não tinha Forças Armadas estruturadas por causa do medo de Kadafi de um golpe de Estado.

No regime paranoico de Kadafi, as informações confiáveis eram escassas. Várias instituições destruíram dados coletados desde a independência do país, em 1951. 

“A informação foi compartimentalizada para tornar a revolução menos vulnerável”, explicou em 1988 o diretor do Centro do Livro Verde, Ibrahim Ibjad. Sua instituição estudava o pensamento do líder.

Os contatos acadêmicos e profissionais com o resto do mundo foram reduzidos. Dentro do país, os comitês revolucionários interviam no sistema educacional para propagar a ideologia do Livro Verde dos pensamentos de Kadafi.

Depois de rejeitar a influência do Ocidente, substituindo o modelo de Estado herdado do imperialismo italiano inicialmente por uma islamização das leis e mais tarde por um modelo inspirado pela Grande Revolução Cultural Proletária da China (1966-76).

Em vez do Livro Vermelho de Mao Tsé-tung, o Livro Verde de Kadafi servia de base para uma legislação baseada na religião e nos costumes.

Diante de um crescente conflito entre o islamismo tradicional e a revolução, Kadafi lançou no fim dos anos 70 sua Terceira Teoria Universal. Na sua visão, o Islã sancionava e justificava a ideologia do regime. Era uma das fontes de legitimidade de um sistema político frankensteiniano construído à imagem e semelhança de seu líder.

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