A Doutrina Bush é a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, encaminhada pelo presidente George Walker Bush ao Congresso em setembro de 2002, sob o impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001, e revista no segundo mandato, em março de 2006.
Tem dois pilares:
- as guerras preventivas, como maneira de evitar atentados terroristas, já que terroristas não declaram guerra antes de atacar;
- e a democratização, especialmente do Oriente Médio, para que a oposição política seja exercida publicamente, sem recurso à violência e ao terrorismo, de modo a isolar os extremistas.
É impossível construir uma ordem internacional baseada no Direito com base numa doutrina de guerras preventivas. O uso da força só é admissível em legítima defesa. Nas relações internacionais, isto inclui o princípio de autodeterminação dos povos, o que tem dado origem a muitas guerras civis no mundo pós-Guerra Fria.
Um aspecto central das relações internacionais, como destacou Hedley Bull, é que a sociedade internacional é uma sociedade anárquica, não por que não tenha ordem mas por que não tem governo. Não há governo mundial, os cidadãos do mundo não querem um mega-Estado. Há mecanismos de governança global, como as organizações internacionais.
Em seu livro A Sociedade Anárquica, Bull identificou cinco instituições da sociedade internacional:
1. A Guerra: sempre foi vista como a maneira natural e inevitável de resolver os conflitos entre os povos. A idéia de paz é recente. Começa com o Projeto para uma Paz Perpétua (1713), do Abade Saint-Pierre e com o Tratado para uma Paz Perpétua (1795), do filósofo alemão Emanuel Kant.
2. O Equilíbrio de Poder: como a humanidade, em sua diversidade, reage contra um governo mundial ou uma monarquia universal, como sonhava Carlos V, sempre que um país se torna poderoso demais os outros tendem a se aliar para contrabalançar este poderio. No momento, a total supremacia militar dos Estados Unidos parece desmentir isto. Mas se os EUA forem muito agressivos, a China e outros países se armarão e farão alianças para fazer frente ao desafio.
3. As Grandes Potências: na ausência de um governo mundial, as grandes potências impõem suas normas às relações internacionais, podendo exercer um papel positivo. Há até uma Teoria da Estabilidade Hegemônica que afirma que a existência de uma potência hegemônica garante a ordem do sistema. O Conselho de Segurança das Nações Unidas é um condomínio de grandes potências. Nesse sentido, o mau exemplo e a perda de autoridade moral dos EUA aumentam a anarquia no sistema.
4. A Diplomacia: existe formalmente como a conhecemos hoje pelo menos desde as cidades-Estado italianas do Renascimento. Os representantes estrangeiros devem ter imunidade para serem intermediários nos negócios de Estado.
5. O Direito Internacional: é uma série de tratados, convenções, acordos e regimes que dão maior estabilidade e previsibilidade às relações internacionais. Refletem os interesses dos países que os propõem. Como não existe um governo mundial, quem aplica estas normais são as potências mundiais ou regionais e as organizações internacionais, dependentes destas mesmas potências.
PAZ É IDÉIA RECENTE
A paz é, então, sobretudo uma idéia do século 20, depois do horror de duas guerras mundiais e da ameaça de um holocausto nuclear durante a Guerra Fria, que pode ser considerada a terceira guerra mundial.
Só no século 20 surgiram as primeiras organizações internacionais universais dedicadas à paz mundial, a Liga das Nações e a Organização das Nações Unidas.
Sua origem remonta ao Concerto Europeu, criado pelo Congresso de Viena, que reuniu em 1815 as potências européias que haviam derrotado Napoleão e queriam restaurar a velha ordem monárquica.
A internacionalização do processo se dá com as conferências de Haia. Numa delas, já no século 20, brilhou Rui Barbosa.
Mas foi a Primeira Guerra Mundial que abalou a Europa, até então o centro do mundo, atraindo para os campos de batalha europeus os EUA, que desde sua fundação tinham como princípio não se envolver em guerras na Europa.
Para vender a guerra ao povo americano, o presidente Woodrow Wilson, um liberal internacionalista, disse que “era a guerra para acabar com todas as guerras”. Ele achava que o problema estava na monarquia e na falta de democracia plena.
Os EUA entraram na guerra em 1917, mesmo ano da Revolução Russa. Era a entrada no cenário internacional das duas superpotências que dominariam o planeta na segunda metade do século 20.
Wilson apresentou um plano de 14 pontos na Conferência de Versalhes, em 1919, que seria descrita como “a paz para acabar com todas as pazes”. Entre eles, estava a criação da Liga das Nações (1919), a primeira organização internacional dedicada à paz universal.
Mas o Senado dos EUA, que precisa aprovar os acordos internacionais, rejeitou o tratado que criava a Liga das Nações, sob o argumento de que limitaria a soberania nacional do país.
Sem seu membro mais poderoso, a Liga foi inoperante diante das agressões que provocaram a Segunda Guerra Mundial, como a invasão da Manchúria (1931) e do resto da China (1937) pelo Japão; da Etiópia (1935-6) pela Itália fascista, de Benito Mussolini; e da anexação da Áustria (1938) e da região dos Sudetos (1938), na Tcheco-Eslováquia, pela Alemanha nazista, de Adolf Hitler.
A Liga conversava mas não tinha força real. Estava armado o caminho para a Segunda Guerra Mundial.
Os EUA entram na Segunda Guerra Mundial em 7 de dezembro de 1941, quando os japoneses lançam um ataque sem declarar guerra à frota americana em Pearl Harbor, no Havaí, matando 2.403 americanos, no Dia da Infâmia. Depois, eles destruiriam a maioria das grandes cidades japonesas, mas esta é outra história.
AS NAÇÕES UNIDAS
Mesmo antes de entrar na guerra, o presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, tinha assinado uma declaração conjunta com o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, a Carta do Atlântico, estabelecendo os princípios para o mundo do pós-guerra.
Na Declaração das Nações Unidas, de 1º de janeiro de 1942, os aliados assumem os compromissos da Carta do Atlântico. Este é o embrião da ONU.
Para não repetir o erro da Liga, Roosevelt criou o Conselho de Segurança, um condomínio de grandes potências, já que seriam elas que teriam de garantir os princípios da Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.
Hoje a constituição do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) é obsoleta mas não há uma ruptura da ordem internacional que permita uma mudança, sobretudo porque a ampliação do Conselho, por exemplo, com a entrada da Alemanha, do Japão, do Brasil e da Índia, diluiria o poder dos EUA e tornaria muito mais difícil articular o consenso necessário entre as grandes potências com direito de veto.
Sem o direito de veto, os novos membros permanentes seriam sócios de segunda classe, sem o maior privilégio das verdadeiras potências.
Cabe assinalar que o veto paralisou a ONU durante a Guerra Fria. Desde 1945, somente três guerras foram autorizadas pela ONU.
Na Guerra da Coréia, a União Soviética estava boicotando a organização porque a China comunista não tinha sido admitida. Até hoje, as forças lideradas pelos EUA ao Sul do Paralelo 38 Norte têm um mandato das Nações Unidas.
Em 1991, na guerra para expulsar os iraquianos do Kuwait, o dirigente soviético Mikhail Gorbachev votou a favor e a China se absteve, abrindo o caminho para uma guerra liderada pelos EUA.
Depois dos atentados de 11 de novembro, os EUA receberam uma carta branca e, em seguida, com seus aliados, invadiram o Afeganistão.
Os EUA têm a supremacia militar. Se você acredita que no final de contas o que vale é a lei da força, tenta se armar cada vez mais. Se acredita numa ordem internacional baseada no Direito, aproveita sua hegemonia para construir uma ordem internacional liberal, como tentaram Wilson e Roosevelt, com resultados muito distintos.
Os EUA têm a maior economia do mundo, US$ 13,3 trilhões anuais. Lideram a atual revolução tecnológica, da informática, e estão na vanguarda da próxima, da biotecnologia. Ganharam todos os prêmios Nobel de ciências do ano passado. Investem US$ 330 bilhões por ano em pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico, bem à frente da China, com US$ 136 bilhões, que acaba de passar o Japão, com US$ 130 bilhões anuais.
Então, qualquer profecia sobre a decadência americana, apesar de problemas econômicos estruturais como o déficit comercial de US$ 850 bilhões e o déficit público que Bush criou, são prematuras, na minha opinião.
FUTURO MULTIPOLAR
Mas o unipolarismo é insustentável. Nenhum tem condições de dominar o mundo globalizado. No mundo do futuro, lá entre 2030 e 2050, é provável que tenhamos diversos centros de poder, os EUA, talvez ainda em primeiro lugar, a China, o Japão, a Europa, a Rússia, a Índia e o Brasil – se o Brasil crescer a uma taxa média de pelo menos 3,7% ao ano até lá.
O fracasso da invasão do Iraque revelou as limitações do uso da força nas relações internacionais. Como disse o professor Joseph Nye jr., ex-subsecretário para política de defesa no governo Clinton, autor de O Poder Suave, os EUA ganharam a Guerra Fria sem disparar um tiro, com Hollywood, a economia e o estilo de vida americano, mais com idéias como a democracia liberal do que com balas.
Aqui está o segundo pilar da Doutrina Bush: a democracia liberal como forma de permitir a livre expressão de idéias, de fazer política abertamente e não em grupos clandestinos e terroristas.
Mas a democracia é um processo, é uma cultura. É fruto de uma sociedade que chegou a um consenso para resolver seus conflitos pacificamente, através do diálogo e da negociação. Está claro que o Iraque não estava maduro como diziam os neoconservadores que convenceram Bush a realizar a aventura militar.
O fracasso da ocupação do Iraque tornará a política externa americana menos ativista, pelo menos por um período, porque há uma rejeição da opinião pública. O segundo pilar da Doutrina Bush, que ele prometeu priorizar no discurso de posse do segundo governo e que deu o titulo ao livro, Bush 2: A Missão, também desmoronou.
Este é hoje o grande problema de Bush, que acreditou no uso da força e demonizou inimigos ao falar de um “eixo do mal” no Discurso sobre o Estado da União, em janeiro de 2002, com o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte.
Nem o uso da força nem a política de mudança de regime deram certo. Tendem a ser abandonadas. Embora o uso da força seja sempre uma opção para a única superpotência, não faz sentido se for contraproducente.
Ao demonizar seus inimigos, Bush fechou o espaço de negociação, encurralando estes países. O discurso visava a preparar o povo americano para a invasão do Iraque. Acabou radicalizando as posições da Coréia do Norte e do Irã, que passaram a perseguir ativamente seus programas nucleares.
O Iraque é uma criação do Império Britânico, depois da dissolução do Império Britânico no final da Primeira Guerra Mundial. Foi o subsecretário para o Oriente Médio, Winston Churchill, que acabou com a promessa de criar o Curdistão ao juntar a província de Kirkuk, rica em petróleo, às províncias de Bagdá e Bássora.
Seu objetivo era criar um país suficientemente forte para conter o Irã. O Iraque fez isto de uma forma ou de outra até a invasão americana de março de 2003, especialmente na Guerra Irã-Iraque (1980-88), após a Revolução Islâmica, de 1979.
O Irã é até agora o maior beneficiado da invasão americana, que fortaleceu os xiitas do Iraque, subjugados pelos sunitas desde o tempo do Império Otomano, criando um crescente xiita no Oriente Médio, reforçado ainda mais pela ascensão do Hesbolá (Partido de Deus), a milícia fundamentalista xiita que resistiu a uma ofensiva israelense no Líbano em julho e agosto deste ano.
A BOMBA IRANIANA
A antiga Pérsia não é um país artificial. Foi o primeiro império multinacional da História. Tem um nacionalismo forte antiimperialista. Era disputada pelos impérios russo e britânico. No final da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética ocupava parte do Irã, o que provocou uma das primeiras crises da Guerra Fria.
Em 1953, um golpe militar apoiado pelos EUA e a Grã-Bretanha derrubou o primeiro-ministro Mossadegh, que nacionalizara o petróleo, levando ao poder o xá Reza Pahlevi, que impôs uma ditadura militar com uma polícia política, a Savak, acusada de 100 mil mortes.
A repressão violenta e a ocidentalização alimentaram a revolução de 1979, que começou com uma greve no setor de petróleo mas levou o aiatolá Khomeini ao poder porque o clero muçulmano era a única oposição organizada, provocou a ocupação da embaixada americana em Teerã e destroçou as relações com os EUA, descrito pela república dos mulás como o Grande Satã.
Um aiatolá moderado, Mohamed Khatami, ganhou duas eleições presidenciais com mais de 70% dos votos, em 1997 e 2001, mas o Ocidente não conseguiu reforçar o bloco reformista. Ao contrário. As invasões, primeiro do Afeganistão e depois do Iraque, criaram no regime iraniano a sensação de estar cercado pelo inimigo dos dois lados.
Isto provocou uma radicalização. Nas eleições legislativas de 2004, o Conselho dos Sábios vetou 2,5 mil candidatos; na eleição presidencial de 2005, mais de mil. Acabou ganhando o prefeito de Teerã, Mahmoud Ahmadinejad, um linha-dura ainda mais radical que se notabiliza por declarar que o Holocausto é um mito e que Israel será varrido do mapa.
O que mais preocupa Bush é o programa nuclear do Irã, que ameaça diretamente Israel, principal aliado dos EUA no Oriente Médio. Ao alterar o equilíbrio de poder na região, cria o risco de uma corrida nuclear, já que Egito e Arábia Saudita não vão querer ficar atrás.
A decisão de fazer a bomba teria sido tomada pelo aiatolá Khomeini em 1987, durante a guerra contra o Iraque. Quem transferiu a tecnologia de centrifugação foi Abdul Kadir Kahn, o pai da bomba paquistanesa. Ninguém duvida de que o Irã queira mesmo ter a bomba, inclusive para se defender da um possível ataque americano.
Mas quem fez a explosão nuclear primeiro foi a Coréia do Norte, terceiro país, incluído na última hora no eixo do mal para que não tivesse apenas países muçulmanos, numa tentativa de descaracterizar um possível choque de civilizações entre o Ocidente e o Islã.
A Coréia foi dividida no final da Segunda Guerra Mundial. O Japão a ocupava desde 1910. Quando foi derrotado pelos EUA, depois da explosão das duas bombas atômicas, em 9 de agosto de 1945, a URSS declarou guerra ao Japão, invadiu a parte norte da península coreana e algumas ilhas japonesas.
Em 1950, uma invasão do Sul pelo Norte provocou a Guerra da Coréia (1950-53), um dos conflitos mais sérios da Guerra Fria, com milhões de mortos. Até hoje o país está dividido.
CHANTAGEM NUCLEAR
Enquanto a Coréia do Sul, capitalista, tornou-se um dos países que mais se desenvolveram nas últimas décadas, a Coréia do Norte, último reduto do stalinismo, é uma ditadura militar à beira do colapso, com uma crise que provocou a morte pela fome de cerca de 2 milhões de pessoas. Tem menos da metade da população da Coréia do Sul e uma renda per capita 20 vezes menor. Faz então uma chantagem nuclear.
O regime de Pionguiangue usa a questão atômica para barganhar com seus vizinhos e especialmente com os EUA, já que considera os governos do Japão e da Coréia do Sul como fantoches dos americanos. No ano passado, anunciou ter feito uma explosão atômica, na verdade fraca, muito menor do que a pretendida. Foi mais um fracasso do que um sucesso. Mas foi uma explosão nuclear.
Como a Coréia do Norte é “um cão que ladra mas não morde”, nas palavras do estrategista americano Edward Luttwak, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington, e está cercada pela China, Rússia, Japão e Coréia do Sul, uma guerra é considerada impensável, a não ser por alguns falcões. A estratégia em relação a Pionguiangue é de negociação diplomática para forçar o país a voltar ao regime de não-proliferação nuclear e abrir suas instalações nucleares a inspeção da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
A guerra não interessa a ninguém, a não ser a alguns falcões remanescentes em Washington. Destruiria o regime norte-coreano ou o que resta dele. Arrasaria Seul e boa parte da Coréia do Sul. Desestabilizaria toda a região, prejudicando o crescimento econômico, prioridade número um da China. Ressuscitaria o adormecido militarismo japonês.
No Irã, uma invasão como a do Iraque está descartada mas não a possibilidade de um bombardeio “cirúrgico” de uns 100 alvos ligados ao programa nuclear iraniano, admite Luttwak, dizendo que os EUA serão obrigados a atacar, se não houver um acordo em que o Irã desista de ter armas nucleares e respeite o Tratado de Não-Proliferação Nuclear.
O governo Bush pode terminar assim com uma grande explosão. E não há garantias de que o bombardeio conseguirá impedir a fabricação da bomba iraniana. A proliferação é outro problema sério do século 21. A bomba atômica está de volta, agora na mão de potências médias ou regionais que podem ser tentadas a usá-las, o que é impensável para as grandes potências.
Quanto à Doutrina Bush, nenhum país jamais deixará de atacar preventivamente se tiver informações suficientes para supor que será alvo de um ataque. Seria irresponsabilidade. Mas para fazer isto dentro das normas do Direito Internacional, precisa ficar caracterizada a legítima defesa.
Neste sentido, a Doutrina Bush é irrelevante.
*(Palestra de lançamento do livro Bush 2: A Missão, atualizada para a sessão de autógrafos de 29 de março em S. Paulo)
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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