sexta-feira, 10 de março de 2006

Pragmatismo marca viagem de Lula a Londres

A visita de Estado do presidente Luiz Ignacio Lula da Silva ao Reino Unido mostrou um triunfo do pragmatismo sobre a retórica latino-americanista e antiamericana na política externa brasileira.

O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, é o maior aliado do presidente dos Estados Unidos, George Bush. Isto não impediu que Blair e Lula buscassem pontos de interesse comum dos dois países, como a retomada das negociações de liberalização comercial da Organização Mundial do Comércio, a reforma das Nações Unidas com uma vaga permanente para o Brasil no Conselho de Segurança, o combate à fome, à pobreza absoluta e ao aquecimento da Terra. Tudo isto foi claramente expresso num artigo conjunto publicado simultaneamente nos jornais Folha de S. Paulo e The Times, de Londres.

Uma visita de Estado tem um caráter mais formal e protocolar. De modo geral, nada fugiu da rotina. Mas a visita do presidente Lula teve bastante cobertura dos meios de comunicação britânicos, mais do que a visita de Estado do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 1997, onde ele apareceu nos jornais ingleses em fotos ao lado de Pelé sem ser identificado.

Houve um certo constrangimento quando Blair pediu desculpas pelo assassinato pela polícia britânica do imigrante illegal brasileiro Jean Charles de Menezes, confundido com terroristas, em 22 de julho. Na verdade, ele manteve a política de atirar para matar e apóia a posição da polícia nas investigações. Mas isto não prejudicou a visita.

O simples fato do Brasil ser distinguido com duas visitas de Estado em 10 anos já indica uma elevação do status internacional do país. Só dois países são convidados a cada ano. Isto significa que o Brasil, agora sob Lula, é cada vez mais tratado com igualdade e respeito pelos países ricos e nos foros internacionais.

O Brasil só não merece mais atenção porque o crescimento econômico brasileiro é pálido diante de economias emergentes como a China e a Índia, como deixou escapar o príncipe Andrew, filho da rainha Elizabeth II, em mais uma gafe da família real britânica. Mas é visto como potência econômica emergente.

Lula não inventou uma nova política externa. Construiu a sua em cima de um longo e competente trabalho do Itamarati. Mas deu-lhe renovada força política ao reafirmar a independência e a soberania nacionais diante das grandes potências, e defender a adoção de políticas globais de combate à fome e à miséria, argumentando que a justiça social é o único caminho seguro para a paz. Faltou, na minha opinião, uma iniciativa para resolver o problema do genocídio em Darfur, no Sudão, para evitar que esta pregação por um programa Fome Zero mundial saia do discurso.

TERCEIRA VIA
Blair é o principal aliado de Bush e tinha grande identificação com Fernando Henrique. Lula não gosta de ser comparado à chamada Terceira Via, uma espécie de ideologia do neotrabalhismo de Blair criada pelo sociólogo ingles Anthony Giddens, da London School of Economics, amigo pessoal de Fernando Henrique. A idéia é criar um caminho alternativo entre o neoliberalismo e a social-democracia tradicional baseada na intervenção estatal na economia.

Para o ex-embaixador Brasil nos EUA e no Reino Unidos Rubens Barbosa, hoje diretor de comércio exterior da Federação das Indústrias de São Paulo, “a terceira via é uma combinação de ortodoxia econômica com investimentos sociais”. A meta é manter uma economia saudável e estável para aumentar a capacidade de investimento do Estado em areas onde o setor privado não tem interesse, especialmente em infra-estrutura, saúde e educação.

Neste sentido, os governos Lula e Blair se parecem, por mais que o Partido dos Trabalhadores rejeite esta comparação em nome de um purismo ideológico. Mas a postura de Lula em Londres foi extremamente pragmática, na linha preferida pelo ministro das Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim, em contraste com posições mais ideológicas, radicais e antiamericanas associadas ao secretário-geral do Itamarati, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, e o assessor de relações internacionais de Lula, Marco Aurélio Garcia.

O Brasil e a Grã-Bretanha criaram uma comissão de alto nível para revisar as relações bilaterais. Também decidiram unir esforços para a retomada das negociações de liberalização commercial da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), embora o chanceler Celso Amorim já admita que será difícil chegar a um anteprojeto do acordo final até 30 de abril.

A Grã-Bretanha deu apoio à aspiração do Brasil de ser membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas como representante da América Latina. Como os EUA, que têm direito de veto, até o momento só concordam com a entrada de seu aliado Japão, a reforma do CS está paralisada. Mas é importante o apoio de outro membro permanente.

Londres apóia a adesão da Alemanha, do Brasil, da Índia e do Japão, que considera o limite para que o órgão supremo do sistema ONU não fique muito amplo e diluído, o que traria um risco de paralisia.

Lula e Blair também concordaram quanto à necessidade de impulsionar o desenvolvimento da África para combater a miséria do continente mais pobre do mundo e também de tomar medidas decisivas para atacar o aquecimento da Terra.

NEGÓCIOS BILIONÁRIOS
Com a crise permanente do Oriente Médio, o preço do petróleo em US$ 60 por barril e o risco de novos choques de oferta, cresce o interesse internacional pelo programa nacional de álcool do Brasil, recentemente citado por Bush como alternativa energética.

Na parte de negócios, a mineradora Rio Tinto, concorrente da Vale do Rio Doce manifestou a intenção de retomar um projeto de US$ 2,5 bilhões no polo siderúrgico de Corumbá-MS, parado há anos porque a lei brasileira proíbe exploração mineral de fronteiras por estrangeiros, entrave legal que o governo brasileiro prometeu eliminar.

Outro gigante, a companhia farmacêutica GlaxoSmithKline, está negociando um investimento de US$ 300 milhões com a Fundação Osvaldo Cruz para a fabricação de vacinas.

Em suma, a visita de Lula a Londres revela uma política externa madura, pragmática e realista, sem a contaminação ideológica sempre presente nas relações interamericanas. O foco central está na OMC, onde o Brasil espera extrair concessões em agricultura que dificilmente conseguirá nas negociações com os EUA para criar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que estão estagnadas, ou entre a União Européia e o Mercosul.

Nos dois casos, o protecionismo agrícola dos países ricos fala mais alto. É uma carta a ser usada numa instituição multilateral como a OMC. A Grã-Bretanha apóia o Brasil porque adota uma política econômica liberal e é contra os subsídios agrícolas europeus, que beneficiam sobretudo França e Alemanha mas também Espanha, Grécia e Polônia, o que torna difícil qualquer concessão significativa para um bloco de menor peso econômico como o Mercosul.

RISCO DE ISOLAMENTO
O maior problema da política externa de Lula no momento está justamente no projeto de integração regional da América do Sul. Há uma séria crise no Mercosul. O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, está mais interessado em crescimento econômico e na sua reeleição em 2007 do que na Comunidade Sul-Americana de Nações, sonho maior de Lula. Prefere aprofundar o Mercosul a ampliá-lo para incluir os países andinos.Argentina e Uruguai estão brigando por causa de um projeto uruguaio de construir fábricas de celulose junto ao Rio Uruguai. Paraguai e Uruguai podem fechar acordos comerciais com os EUA. E a entrada da Venezuela de Hugo Chávez ameaça a institucionalização do Mercosul, fundamental para que o bloco avance.

Diante do fracasso da ALCA, os EUA estão fechando acordos de comércio bilaterais que ameaçam isolar Brasil, Argentina e Venezuela. Além do Acordo de Livre Comércio da América do Norte com o México, que entrou em vigor em 1994, Washington fez o Acordo de Livre Comércio da América Central. Acaba de fechar um acordo com a Colômbia. Peru e Uruguai já manifestaram interesse em negociar acordos com os americanos. E até o Paraguai, que está realizando manobras militares com a presença de tropas americanas, pode não só abrigar uma nova base militar Americana na região como partir daí para um acordo de livre comércio.

Brasil, Argentina e Venezuela, o eixo de América do Sul, ficariam isolados. Os três países anunciaram a construção de um gasoduto de US$ 30 bilhões para integrar a região. É um projeto político acalentado por Chávez cuja relação custo-benefício é considerada antieconômica pelos analistas. Atravessaria a Amazônia, exigindo a construção de estradas que acelerariam ainda mais a destruição da maior floresta tropical do planeta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Mestre, brilhante leitura da situação. Parabéns pelo canto virtual! Fernando

CFagundes disse...

É coisa de Amorim, né? É difícil crer que seja um trabalho conjunto dos diplomatas do Itamaraty, já que muitos parecem estar mais ocupados com a supervisão do bolinho de aipim e da farofa nas churrascarias brasileiras do exterior.