A Guerra do Iraque, ao ser justificada como promoção da democracia, levanta suspeitas sobre a promoção da democracia, afirma a pesquisadora brasileira Valerie de Campos Mello, analista do Fundo das Nações Unidas para a Democracia. Em mesa-redonda realizada hoje sobre Estratégias de Promoção da Democracia, no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), no Rio de Janeiro, Valerie ressalvou que "não existe modelo perfeito" de democracia, que na sua opinião é sempre um "processo interno" de cada país.
“Os valores democráticos estão presentes na Carta da ONU”, notou a pesquisadora, “mas a democracia em si não tinha sido declarada como objetivo da ONU” porque os princípios de soberania nacional e de não-intervenção são a base do sistema internacional.
Assim, o Fundo da ONU para a Democracia só surgiu em 2005, sob a pressão dos Estados Unidos, que colocaram a liberdade e a democracia como armas importantes na guerra ideológica contra o terrorismo dos fundamentalistas muçulmanos. Isto provocou uma certa desconfiança, admitiu Valerie de Campos Mello, por causa do fracasso da invasão do Iraque.
“O Fundo nasceu num momento de desconfiança em relação aos EUA”, reconhece a pesquisadora. “Mas a democracia não pertence a ninguém. É um trabalho feito com base na Carta da ONU. É um fundo novo que nasce num contexto difícil. Precisa ser visto como um instrumento sem vinculação político-ideológica”.
Como cada país tem suas particularidades e a democracia é um processo interno, a ação do Fundo se baseia em dois princípios:
1. Não existe modelo perfeito de democracia: é um processo dinâmico sempre em evolução. As ameaças à democracia são a abstenção, a crise de representatividade dos partidos, a corrupção, as crises sociais.
2. É um processo interno: o papel internacional deve ser de apoio. “Exagera-se o papel de agentes externos".
Em outras palavras, a democracia não pode ser imposta a ferro e fogo como os EUA fizeram no Iraque.
“No momento, o Fundo da ONU para a Democracia desenvolve 125 projetos em 110 países”, revelou a pesquisadora, “desde o modelo de organização de eleições no Camboja, supervisão de eleições na Namíbia, fiscalização eleitoral na Nicarágua e assistência técnica na Mauritânia”. Até hoje, recebeu US$ 60 milhões, tudo em doações voluntárias.
A ONU dá legitimidade aos regimes políticos, acrescenta Valerie. “Toda a área de direitos humanos pode ser acionada em apoio à democracia. Outro trabalho importante é o das missões de paz. O Fundo da ONU para a Democracia é uma tentativa de participar mais deste processo. Foi criado pela reforma da ONU aprovada em 2005”.
Ela destacou ainda “o papel de organizações privadas como a Fundação Ford, a Fundação Soros, o Centro Jimmy Carter, as fundações alemãs”.
O trabalho da ONU visa a garantir a realização de eleições livres e limpas e a consolidação das instituições, com três objetivos:
• Melhorar a qualidade da resposta dos Estados às demandas da população: liberdade, prosperidade, desenvolvimento.
• Aumentar a participação da sociedade civil em processos decisórios.
• Aumentar a transparência e a prestação de contas das elites e classes dominantes.
Valerie de Campos Mello rejeitou a idéia de que o déficit democrático nos países muçulmanos esteja associado à religião, lembrando que o mesmo preconceito já foi usado contra os países ibéricos e latino-americanos.
“Estamos numa crise de legitimidade do debate sobre democracia, afetando o que parecia ser um avanço cada vez maior da democracia, por causa da guerra do Iraque, da guerra preventiva, da tentativa de imposição da democracia à força”, resume a pesquisadora. “Mas o desejo dos povos de escolher seus governantes, na grande maioria dos dos casos, faz parte dos anseios da população. É uma agenda legítima. Deve ser estimulada.”
Ela negou que haja um retrocesso da democracia, uma reação negativa no Oriente Médio por causa da intervenção militar americana, um movimento para derrubar o governo do Líbano, o desgaste da ‘revolução laranja’ na Ucrânia, a concentração cada vez maior de poderes nas mãos do presidente da Venezuela, Hugo Chávez.
“Não há retrocesso mas problemas sérios”, sustenta Valerie. “A taxa de participação eleitoral foi elevada no Líbano e no Iraque. Mas existem ameaças reais.”
O Haiti, onde há uma missão de paz liderada por soldados do Brasil, é um “caso prioritário” para a ONU. Mas a pesquisadora não é otimista: “Há uma rejeição crescente da população à ajuda estrangeira. É um país fortemente marcado pelo apoio americano a governos anteriores”, diz, em linguagem diplomática, ao falar das terríveis ditaduras da família Duvalier (1957-86). “Há sérios problemas econômicos mas o Haiti revela um Brasil mais ativo, menos conservador”.
Para o professor Pedro Cunca Bocayuva, que participava como debatedor, “Caetano Veloso estava certo: o Haiti também é aqui”, uma referência à desigualdade social brasileira.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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