Primeiro, é preciso definir o que é boliviariano. Quando fiz, no Jornal do Brasil, minha primeira matéria sobre boliviarismo, publicada 5 de fevereiro de 1992, no dia seguinte ao frustrado golpe liderado por Hugo Chávez contra o presidente Carlos Andrés Pérez, em 1992, um leitor intelectualizado (e o JB tinha muitos) foi até a redação conversar comigo e me convencer de que bolivariano não é construção da língua portuguesa. O correto seria bolivarismo.
Simón
Bolívar, o mais famoso dos libertadores da América, foi um caudilho
nacionalista, um general brilhante e um ditator. Nunca foi socialista nem antiamericano, as duas
características do bolivarismo chavista. Admirava os EUA e era a favor
da integração regional, da criação da uma espécie da Estados Unidos da
América do Sul para contrabalançar o peso do Grande Irmão do Norte.
Bolívar foi um pioneiro do pan-americanismo e da integração
regional. Isso se reflete na ideologia chavista.
Karl Marx criticou Bolívar duramente como autoritário e bonapartista: "Tendo se proclamado ditador e libertador das províncias orientais da Venezuela, ele criou 'a ordem do libertador', criou um grupo militar de elite sob o comando de seu guarda-costas e cercou-se do aparato de uma corte."
O
manifestado do Movimento Nacionalista Bolivariano divulgado por Chávez
em 1992 era um nacionalismo militarista e anti-imperialista na linha do general e caudilho argentino Juan Domingo Perón, sem o "socialismo do século 21", que aparece depois, sendo
fortalecido pelo golpe de 2002 contra Chávez, apoiado pelo governo
de George W. Bush nos EUA. O documento citava explicitamente questões de fronteira com a
Colômbia e a Guiana, inquietando os vizinhos, que viam Chávez como um Rambo de esquerda.
Assim,
o bolivarismo, que prefiro chamar de chavismo, já que Bolívar nunca
foi socialista, transformou-se numa ideologia revolucionária, mais
pan-americana do que nacionalista, anti-imperialista, antiamericana,
antiliberal e anticapitalista. Na prática, o modelo chavista propõe
mobilizar as massas para reformar revolucionariamente os países
refundando os Estados Nacionais através de Assembleias Nacionais
Constituintes eleitas pelo voto popular.
De
acordo com Ernesto Laclau, guru do kirchnerismo, a versão argentina do chavismo, recentemente falecido,
as Constituições em vigor representam e cristalizam a dominação das
oligarquias. A única maneira de romper esta ordem conservadora é
reescrevendo as Constituições a partir de zero.
Isso remete ao discurso
lulista de Ano Zero ("Nunca antes na história deste país..."), como se o
país tivesse sido refundado desde a vitória do ex-presidente Lula, em 2002, mas o Brasil tem feito reformas sob a Constituição de 1988. Uma das principais críticas ao chavismo é nunca ter dado tempo de uma Constituição ser aplicada antes de apresentar uma série de emendas.
Na
realidade, esse poder constituinte personalizado na figura do caudilho
desinstitucionalizou os países onde foi adotado, Venezuela, Bolívia e
Equador, colocando mais uma vez na História da América Latina o líder
acima das instituições, um grande risco para a democracia. Isso se deve fundamentalmente ao fato de que as
instituições eram frágeis e de que os países estavam em profundas
crises.
Chávez
foi eleito em 1998, quando, sob o efeito da Crise da Ásia, o preço
do petróleo caíra para cerca de US$ 10. A esse preço, só o petróleo do
Oriente Médio seria viável economicamente. Na Bolívia e no Equador, ninguém
conseguia terminar o mandato.
O
Brasil tem instituições fortes e consolidadas - e não enfrenta nenhuma
crise séria. Assim, não vejo como possa se tornar bolivariano. No
Mensalão, o governo Lula foi acusado de comprar o Congresso,
especialmente sua maioria conservadora e fisiológica. Um amigo petista
comentou na época: "Compraram deputados de direita para aprovar projetos
de direita",
entre eles parte da reforma da Previdência.
Não
existe a menor perspectiva de qualquer partido, de direita ou de
esquerda, de obter uma maioria qualificada para mudar a Constituição.
Muita gente nas correntes mais à esquerda do PT, do PCdoB e do PSoL
talvez sonhe com a regulamentação da mídia (necessária do ponto de vista
econômico, mas usada na Argentina para dividir o grupo Clarín, que até a
greve dos ruralistas, em 2008, apoiava o casal Kirchner), com uma
Constituinte para fazer a reforma política e investimentos muito mais
expressivos em programas sociais, como fez Chávez.
O
maior problema para estas correntes de esquerda é o colapso do chavismo
na Venezuela, com inflação acima de 70% e escassez de produtos básicos
como papel higiênico, carne, arroz, farinha etc. num país que se orgulha
de ter as maiores reservas mundiais de petróleo.
O
bolivarianismo está em colapso por causa da desinstitucionalização
promovida por Chávez. Desde 1999, a Venezuela vendeu cerca de US$ 1
trilhão em petróleo e não tem dinheiro para nada, o que ameaça os
subsídios que dá a Cuba, Nicarágua e outros países do Caribe na
Petrocaribe. Além de mediar o diálogo com a oposição, o Brasil deveria
propor reformas econômicas a Maduro. Com a militarização do regime, a
Venezuela marcha para a tragédia. É um exemplo a evitar.
Onde
o chavismo está dando certo é na Bolívia e no Equador, que não tem
riquezas abundantes como o petróleo venezuelano. O segredo dos presidentes boliviano, Evo Morales, e equatoriano, Rafael Correa, é uma administração rigorosa das contas públicas para poder
financiar os programas sociais de combate à pobreza.
Então,
na Bolívia e no Equador, há censura à imprensa, pressões sobre o
Judiciário e outras características
renitentes do autoritarismo latino-americano, mas o desenvolvimento
social e a estabilidade são ganhos concretos em relação a um passado
recente em que presidentes não conseguiam completar seus mandatos nos
dois países. Ambos têm grandes populações indígenas antes excluídas.
Correa e Morales trabalham para elas, o que os coloca em conflito com a
elite branca.
Não há paralelo entre esses países pequenos e o Brasil.
Em economia, seguir o modelo chavista seria suicídio. De resto, o país
tem instituições fortes e consolidadas. Não vejo no Brasil risco de que
alguém consiga maioria absoluta para refundar o país via Constituinte ou
reforma constitucional. Pelo contrário, o Congresso fragmentado é um
bastião do conservadorismo.
Outra questão é o Supremo Tribunal Federal. O PT terá o direito
de nomear mais alguns ministros nos próximos anos. É o que acontece em
qualquer democracia grande um partido fica muito tempo no poder. Desde
o governo Ronald Reagan (1981-89), a Suprema Corte dos EUA passou de liberal a conservadora.
Existe no ar uma suspeita genérica de que os últimos ministros do Supremo Tribunal Federal foram escolhidos sob
medida para absolver os mensaleiros de formação de quadrilha, mas o
prestígio do STF aumentou com o julgamento do Mensalão. A Justiça
brasileira tem muitos problemas, a começar pelo altíssimo índice de
homicídios, mas a independência do Judiciário é garantida pela Constituição, cabendo aos ministros do Supremo honrá-la.
O
debate sob controle ou regulamentação da mídia é uma proposta muito
mais do partido do que do governo. Com 70 deputados num total de 513,
não vejo como possa prosperar. A censura é inaceitável na sociedade
brasileira.
A regulamentação na era da Internet se dá por aqui numa
queda de braço entre TV e telefônicas que exige a supervisão do Estado em defesa da liberdade de expressão e dos direitos dos usuários. De resto, o conteúdo está pulverizado na rede mundial de computadores. Ao contrário de países como a China, a Rússia e o Irã, ninguém vai censurar Internet no Brasil
Como
observou o professor Alan Knight, especialista em América Latina na Universidade de Oxford, numa conferência sobre os 500 anos
do Brasil, em 2000, "no Brasil, ninguém se assume como liberal, mas o país é uma
democracia liberal e tem uma economia liberal". Isso não vai mudar.
Sob
o PT, na minha opinião, o país avança no sentido de ampliar e
universalizar direitos, ou seja, de ampliar os benefícios desta
democracia liberal para construir uma sociedade mais justa e inclusiva. É
esse projeto de reformas graduais e moderadas que vem da redemocratização e da
Constituição de 1988 que tem apoio popular e ganha
eleições.
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