O sistema multilateral de comércio é fruto da nova ordem econômica mundial pós-Segunda Guerra Mundial, traçada a partir da Conferência de Bretton Woods (1944), que cria o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Internacional do Comércio, lembrou o professor Marcos Jank, presidente do Instituto de Comércio e Negociações Internacionais (Ícone), nesta semana.
Como a OIC foi rejeitada pelo protecionismo do Senado dos EUA, surge em 1947 o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), um acordo temporário renovado periodicamente. Desde então, houve nove rodadas de negociações de liberalização comercial. O Gatt nasce em 1947, com 23 países, e a OMC em 1994; tem hoje 149 países-membros.
Os acordos regionais surgiram sob pressão da Comunidade Econômica Européia, criada pelo Tratado de Roma (1957). Dentro de um bloco, é permitido reduzir tarifas sem estender os benefícios a todos os membros do sistema multilateral de comércio.
Durante cinco rodadas, só houve reduções tarifárias de produtos industriais. O Gatt era um clube de países ricos.
O Gatt em si é um conjunto de normas e regras instituídas na primeira rodada multilateral e revistas nas rodadas subseqüentes. Ainda há rodadas porque há temas pendentes, sobretudo em agricultura e serviços. Entraram novos temas (propriedade intelectual, compras governamentais, investimentos, medidas antidumping) porque alguns países temiam perder muito nestes setores e queriam compensações.
O sistema deve continuar funcionando através de rodadas.
O princípio básico é a não-discriminação
Os principais instrumentos:
- cláusula de nação mais favorecida;
- tratamento nacional: não pode cobrar impostos diferentes nem discriminar empresas ou produtos;
- reciprocidade, o que gera uma visão mercantilista.
Há tarifas consolidadas e tarifas negociadas.
Outra regra das negociações do sistema multilateral de comércio é o single undertaking, compromisso único: nada está acertado até que tudo esteja acertado. Isto impede uma negociação fatiada em que só entrariam na pauta os temas de interesse dos países mais poderosos.
Primeiro, os países negociam os métodos e modalidades, as regras de negociação. Como o sistema exige que todas as decisões sejam tomadas por consenso, este consenso surge via coalizões de geometria variável. O Brasil pode estar ao lado dos EUA contra a UE em agricultura e a favor da UE e contra os EUA em medidas antidumping.
É preciso não só formar coalizões mas convencer os outros países de que a proposta da sua coalizão é boa. Os líderes das várias coalizões se reúnem em reuniões fechadas. Até a Rodada Uruguai (1986-94), quando o Gatt era um clube de países ricos, o acordo era fechado pelo grupo Quad (EUA, UE, Canadá e Japão) e apresentando aos outros, que se limitavam a assinar em baixo.
Hoje a negociação se ampliou para uns 30 países, com o aumento do peso dos países em desenvolvimento no comércio internacional. O consenso permite um processo mais equilibrado mas torna a negociação mais lenta e complexa. A Rodada Uruguai levou oito anos. A Rodada Doha pode ir por aí.
O Art. XXIV do GATT e o Art. V do GATS (Acordo Geral de Tarifas e Serviços) autorizam a formação de zonas de livre comércio e de uniões aduaneiras. Mas têm de ser consistentes com o sistema, passos adiante na liberalização. Deve compreender “uma parcela mais do que substancial” (pelo menos 80%) do comércio do bloco, e a OMC deve ser notificada. Foi originalmente uma maneira de acomodar a CEE.
Há cerca de 300 acordos preferenciais de comércio, que estão perdendo a característica regional.
Na América, há 67 acordos de comércio internacional. EUA, Chile e México são os centros. É o que o economista liberal Jagdish Bhagwati, professor da Universidade de Colúmbia, chama de espaguete. O maior problema é o festival regulatório, que aumenta o custo das transações.
O efeito final do prato de espaguete seria negativo pela:
- erosão das preferências:
- desvio de comércio;
- existência de regras de origem.
Outra exceção é a Cláusula de Habilitação (1979), que dá tratamento diferenciado favorável aos países em desenvolvimento, por meio do Sistema Geral de Preferenciais e da redução de barreiras entre os países menos desenvolvidos.
Pelas Convenções de Lomé, 80 ex-colônias européias da África, do Caribe e do Pacífico têm acesso especial ao mercado europeu. Isto acaba criando uma aliança entre os mais ricos e os mais pobres contra os mais competitivos. É o caso da UE com o açúcar. As ex-colônias disseram que era um sistema maravilhoso, que promove o desenvolvimento. Outro caso clássico é o da banana.
Com a crise do multilateralismo, a tendência é de uma explosão do bilateralismo.
Mas há questões sistêmicas, como subsídios. Por isto a OMC é necessária, além de ser um tribunal de solução de controvérsias. Tem dentes. Não é discursiva. A cada rodada, há mais países e mais temas.
Sob o impacto dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, dois meses depois, a Conferência Interministerial da OMC lançou a Rodada Doha, com alto nível de ambição. Uma side letter autorizava os países em desenvolvimento a quebrar patentes em casos de crise de saúde pública.
Jank não acredita que os EUA tenham cedido por causa da ameaça do bioterrorismo: “Os EUA têm um sistema de patentes draconiano. Os medicamentos são caríssimos. Não teriam problema para quebrar patentes em nome da segurança nacional.
A UE só liberaliza a agricultura em troca de abertura em indústria e serviços. Em serviços, negociam-se acesso e regras do jogo, marco regulatório. Se resolverem agricultura, as futuras negociações ficarão concentradas em serviços.
A propriedade intelectual entrou nas negociações do sistema multilateral porque assim quem viola a propriedade intelectual pode ser alvo de retaliações comerciais.
Existe também o Efeito China: o temor Norte-Sul se transfere para a China.
O Brasil se abriu de 1987 a 1994, durante a Rodada Uruguai, mas sem que uma coisa tenha relação com a outra. A abertura unilateral foi uma política do Ministério da Fazenda. A tarifa média caiu de 50% para 12%.
Hoje a abertura unilateral está quase parando. Há uma explosão de acordos bilaterais e plurilaterais. Há mais países e mais acordos comerciais. Há uma fragmentação política e um reagrupamento via acordos comerciais. Não é uma lógica geográfica. Pode não ser econômica, pode ser geopolítica.
O presidente Fernando Collor (1990-92) reduziu as tarifas para combater a inflação. “A diferença entre os planos Cruzado e Real é a abertura da economia. O Brasil tinha de se abrir. O mundo inteiro se abriu”, opina o presidente do Ícone.
O Mercosul aconteceu em paralelo, inicialmente sem a participação do setor privado.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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