domingo, 20 de agosto de 2006

Hesbolá redesenha mapa político do Oriente Médio

O presidente dos Estados Unidos, George Walker Bush, afirma estar criando um novo Oriente Médio. Mas na opinião do professor francês Olivier Roy, um dos principais especialistas europeus no mundo árabe e muçulmano, quem redesenhou o mapa geopolítico da região foi a milícia fundamentalista xiita libanesa Hesbolá (Partido de Deus).

Em artigo publicado no jornal inglês Financial Times, Roy, professor da Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais, em Paris, admite que a vitória do Hesbolá pode ser de curto prazo mas destaca mudanças significativas no panorama político do Oriente Médio depois de 34 dias de ofensiva militar israelense no Líbano.

“Pela primeira vez, as Forças de Defesa de Israel não venceram os árabes numa guerra aberta. Mais significativo ainda”, para o cientista político francês, “o vencedor é um movimento armado não-estatal muçulmano xiita apoiado pela Síria e pelo Irã. Nas guerras anteriores de Israel, de 1948 a 1982, os inimigos eram árabes sunitas”.

Na realidade, a tentativa israelense de expulsar o Hesbolá do Sul do Líbano difere muito dos objetivos militares das guerras anteriores de Israel. É, na visão de Olivier Roy, resultado de tendências complexas e às vezes aparentemente conflitantes do Oriente Médio de hoje.

“Primeiro”, analisa o professor, “há um ressurgimento de uma frente islâmica radical contrária ao processo de paz árabe-israelense. Segundo, há uma crescente divisão entre sunitas e xiitas na região do Golfo Pérsico. Finalmente, há uma dinâmica política diferente depois da entrada recente de movimentos islâmicos radicais – como o Hesbolá e o Hamas – na política eleitoral.

“O alinhamento entre Hesbolá, Síria e Irã numa frente radical contra um acordo de paz com Israel promove mais o antiamericanismo e o nacionalismo árabe do que qualquer ideologia islâmica”, prossegue Roy. “A ‘rua árabe’ sunita abraçou Saied Hassan Nasrallah, o líder do Hesbolá, como novo herói árabe, o “Nasser da vez”.”

A expansão e o fortalecimento da um crescente xiita, com a volta do radicalismo da revolução iraniana, a ascensão dos xiitas no Iraque após a queda de Saddam Hussein, e agora a vitória política do Hesbolá ao resistir à ofensiva militar israelense, preocupa os regimes sunitas conservadores da região, como o Egito, a Jordânia e as monarquias petroleiras do Golfo.

Quando o conflito Israel-Hesbolá começou, em 12 de julho, com um ataque na fronteira com Israel que matou oito soldados israelenses e levou à captura de outros dois, a Arábia Saudita, o Egito e a Jordânia criticaram a “provocação” da milícia xiita.

Na Arábia Saudita, que se considera o centro do Islã por abrigar as cidades sagradas de Meca e Medina, os ulemás wahabitas (seita do Islã adotada oficialmente no país) publicaram um decreto religioso (fatwa) condenando os xiitas como hereges. Tiveram de recuar diante da percepção no mundo árabe de que o Hesbolá obteve uma vitória, a primeira, contra Israel. Editaram uma fatwa apoiando a milícia xiita libanesa.

Rapidamente o Irã e a Síria reivindicaram a suposta vitória do Hesbolá para eles. A Síria quer recuperar a influência perdida no Líbano, de onde foi forçada a retirar suas tropas que estavam lá desde 1976, depois do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, em fevereiro do ano passado, num atentato atribuído a agentes sírios.

Ao destruir a infra-estrutura do Líbano, Israel enfraquece o governo central libanês, fazendo sem querer o jogo da Síria, nota Olivier Roy.

Por outro lado, o colapso do regime sírio traria o risco de ascensão da Irmandade Muçulmana, grupo fundado no Egito em 1928 que é o berço do fundamentalismo. Nem o Egito nem a Jordânia e muito menos Israel querem ver um partido islamita no poder em Damasco.

Para o professor francês, de certa forma, o Irã se vinga do apoio que os árabes de modo geral deram a Saddam Hussein na Guerra Irã-Iraque (1980-88). O Irã nunca conseguiu unir os xiitas mas agora forma o que o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, chama de “arco do extremismo”, unindo-se à Síria, ao Hamas e ao Hesbolá. Ao formar uma aliança do radicalismo muçulmano com o nacionalismo árabe, empolga as massas árabes alienadas por governos autoritários, minando sua legitimidade.

Ao mesmo tempo em que dá um troco nos árabes, o Irã trava uma guerra indireta contra Israel e os Estados Unidos cujo objetivo maior é evitar um bombardeio aéreo contra suas instalações nucleares. A presença de tropas européias no Sul do Líbano interessa a Teerã no momento em que aumenta a tensão entre o Irã e o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que exige a suspensão do programa nuclear da república islâmica.

Na interpretação de Roy, o Irã foi o grande vencedor da guerra entre Israel e o Hesbolá, e continuará sendo enquanto o Hesbolá for visto como o grande campeão da causa árabe e não parte de um crescente xiita.

A questão central, no momento em que o cessar-fogo no Líbano ameaça fracassar, e que a ONU não consegue formar uma força da paz suficientemente robusta para a missão de patrulhar o Sul do Líbano, é o Hesbolá.

A França, que lideraria a força de paz com 5 mil homens, agora só oferece 200 soldados. Não está disposta a enfrentar o Hesbolá, que não dá sinais de que pretenda se desarmar, como exige a Resolução 1.559 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Isto enfraquece a missão, tornando-a incapaz de se interpor efetivamente entre Israel e a milícia libanesa,

O Partido de Deus, raciocina o professor francês, primeiro, manifesta a solidariedade dos xiitas com o Irã, acuado sob pressão internacional liderada pelos EUA. Segundo: ao apelar para o nacionalismo libanês, coloca-se como uma força central na política interna do Líbano. Em terceiro lugar, inflama a militância árabe contra Israel e os EUA como parte da aliança contrária ao processo de paz.

O Hesbolá iniciou um conflito com Israel como um movimento internacionalista interessado em abrir uma nova frente de batalha para aliviar a pressão sobre o Hamas (Movimento de Resistência Islâmica), que combatia Israel na Faixa de Gaza, também depois do seqüestro de um soldado israelense, em 25 de junho .

Além da solidariedade com sua seita religiosa e do caráter internacionalista na guerra árabe-israelense, o Hesbolá apresenta-se hoje como o maior defensor dos interesses nacionais libaneses. Foi o que disse Nasrallah no “discurso da vitória”.

“O Hesbolá não será desarmado nem marginalizado”, prevê Olivier Roy. “A única maneira de lidar com isso é criar um novo regime político no Líbano onde ele tenha um papel central como partido político.

“Se o Ocidente quer conter a sinergia entre nacionalismo árabe, militância sunita e crescente xiita, que uniria os campos de batalha do Afeganistão ao Líbano, precisa atrair movimentos fundamentalistas como o Hamas e o Hesbolá para a política eleitoral”, aconselha o professor francês. “Isto implica encorajar um acordo de paz no Líbano envolvendo todos os atores libaneses, sem a interferência da Síria ou do Irã; apoiar a democratização da Síria e a negociação com o Hamas. Isto também significa que Israel deve renunciar à sua política de ‘bunkerização’, de recuar para trás de fronteiras fortificadas, saindo para esmagar seus inimigos diante de qualquer sensação de ameaça.”

O que acontecer nas próximas semanas e meses no Líbano será importante não apenas para o preço do petróleo, sempre sensível às tensões geopolíticas no Oriente Médio. Estão em jogo o projeto americano para democratizar a região como forma de isolar e combater o terrorismo.

O problema é que, a curto prazo, só há duas forças políticas no mundo árabe: o nacionalismo árabe e o fundamentalismo muçulmano. Se houver eleições, diante do declínio do nacionalismo pan-árabe de Nasser (presidente do Egito de 1953 a 1970), e da corrupção associada aos regimes pró-ocidentais no poder na maior parte do Oriente Médio, partidos islamitas como o Hamas e o Hesbolá serão eleitos. Será preciso negociar com eles.

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