quarta-feira, 17 de maio de 2006

Esquerdas se enfrentam na América Latina

Depois do gás e do petróleo, o novo governo da Bolívia está agora preparando uma reforma agrária que pode incluir a expropriação de terras de brasileiros que investiram quase US$ 1 bilhão naquele pais, especialmente na produção de soja, hoje o segundo item na pauta de exportações bolivianas, depois do gás. Mas em depoimento no Senado, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, declarou que a crise será tratada com uma política de “boa vizinhança”, descartando o endurecimento cobrado pelos senadores.

O chanceler brasileiro admitiu o desconforto do governo Luiz Inácio Lula da Silva com a atuação cada vez mais proeminente do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, na América Latina, que estaria atrapalhando o projeto de integração regional. Amorim reconheceu que a expansão da economia brasileira provocará este tipo de conflito internacional.

Para o professor Paulo Vicente, especialista em estratégia empresarial da Escola Superior de Propaganda e Marketing no Rio de Janeiro, os conflitos serão inevitáveis e o Brasil deve se preparar, inclusive militarmente para enfrentá-los. Ele teme que o próximo passo de Morales seja mesmo confiscar as terras de agricultores brasileiros. Diante de mais provocações, até onde a diplomacia brasileira manterá o tom suave? A alternativa é retomar o processo de integração da América Latina.

Está em jogo sobretudo o futuro da esquerda na América Latina. Na região mais desigual do mundo, é natural que o eleitorado mais pobre vote nas promessas políticas de uma vida melhor, observa o cientista político e ex-ministro do Exterior mexicano Jorge Castañeda.

No artigo A Guinada da América Latina para a Esquerda, publicado no último número da revista Foreign Affairs, a mais prestigiada publicação do mundo sobre relações internacionais, Castañeda constata que “há na verdade duas esquerdas na região. Uma tem raízes radicais mas tem agora a mente aberta e é moderna; a outra é nacionalista, tem a mente fechada e é estridentemente populista”. Ele entende que o resto do mundo deve apoiar a primeira vertente.

“Há apenas uma década”, constata Castañeda, “a América Latina parecia iniciar um ciclo virtuoso de progresso econômico e melhoria da governança democrática sob a supervisão de um número crescente de governos centristas”, entre eles o do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na reunião de cúpula das Américas, convocada pelo então presidente americano, Bill Clinton, parecia haver uma “convergência quase sem precedentes” com os Estados Unidos.

Pouco mais de 10 anos depois, apesar do crescimento econômico dos últimos dois anos, a América Latina dá uma guinada à esquerda que inclui a rejeição de algumas tendências predominantes nos últimos 15 anos: liberalização econômica, concordância com os EUA em diversos pontos e a consolidação da democracia representativa, questionada por não ter conseguido até agora distribuir os frutos do progresso para a população mais pobre.

A onda populista começou com a eleição de Chávez na Venezuela em 1998, quando o preço do petróleo caíra a cerca de US$ 10 por barril por causa da crise da Ásia, e pode culminar com a vitória de Andrés Manuel López Obrador no México em 2 de julho.

Depois da Chávez, foram eleitos Lula, no Brasil; Nestor Kirchner, na Argentina; Tabaré Vasquez, no Uruguai; Evo Morales, na Bolívia; e Michelle Bachelet, no Chile. O ex-oficial golpista Ollanta Humala disputa o segundo turno no Peru em 28 de maio e Daniel Ortega pode voltar ao poder na Nicarágua. Todos são de esquerda mas de esquerdas diferentes.

Na opinião de Castañeda, a esquerda tradicional modernizou-se. É aberta, reformista e internacionalista. Aprendeu com os erros do passado, sobretudo com o fracasso de seus dois modelos: Cuba e a União Soviética.

A outra esquerda tem suas raízes no populismo político latino-americano. É nacionalista, fechada e estridente. Por não reconhecer os erros do passado, é incapaz de se modernizar.

UTOPIA REDEFINIDA
Castañeda, autor de ‘Utopia Desarmada; a esquerda latino-americana depois da Guerra Fria’, identifica os pontos-chave das mudanças no panorama político do subcontinente. O primeiro foi o fim da Guerra Fria, que tirou o estigma da esquerda e permitiu a melhoria das relações com os EUA.

Em segundo lugar, Castañeda entende que “a extrema desigualdade (a América Latina é a região mais desigual do mundo), a pobreza, a concentração da riqueza, da renda, do poder e das oportunidades” favorecem a esquerda. “A combinação de desigualdade e democracia tendem a causar um movimento para a esquerda em qualquer lugar. As massas desfavorecidas votem no tipo de políticas que acreditam ser capazes de lhes tornar menos pobres”.

Assim, em terceiro lugar, a democratização e a consolidação das eleições como único meio de ascensão ao poder levaram a vitórias da esquerda. Isto foi reforçado pela incapacidade das reformas políticas, econômicas e sociais promovidas a partir dos anos 80 de melhorar a situação da maioria pobre.

Com a exceção do Chile, que ostenta hoje a mais alta renda por habitante do subcontinente (US$ 10 mil por ano), a região apresenta baixas taxas de crescimento, muito inferiores às da Ásia e da Europa Oriental liberada do comunismo, e da própria América Latina entre 1940 e 1980. Este crescimento medíocre manteve a miséria, a desigualdade, o desemprego e o subemprego elevados, a baixa competitividade e a infra-estrutura deficiente.

Além do mais, a democracia não foi capaz de eliminar pragas seculares como a corrupção, a debilidade do Judiciário, a incompetência governamental e a concentração do poder.

Desta maneira, acrescenta Castañeda, a modernização não levou a esquerda latino-americana a seguir o exemplo dos partidos socialistas e social-democratas europeus, com exceção do Chile, mais uma vez. Uma das razões, diz o autor, é que o colapso da URSS não provocou o fim de seu aliado na América Latina, o regime comunista de Cuba. Mantém-se uma “dependência emocional de Fidel Castro”, revigorado pelo apoio que recebe hoje de Chávez.

A esquerda defende “o progresso social em vez da ortodoxia macroeconômica, uma distribuição mais igualitária da riqueza em vez de sua criação, a soberania nacional em vez da cooperação internacional e a democracia em vez da eficácia do governo”, continua Castañeda.

O cientista político lembra que os partidos comunistas chegaram a receber votações expressivas nos anos 30 e 40, participando de governos de “frente popular” ou de “unidade nacional”. Mas nos anos 50 e 60, no auge da Guerra Fria, sua corrupção, acomodação e submissão a Moscou provocou um discrédito.

A Revolução Cubana gerou uma nova esquerda, combativa e guerrilheira. Mas a aliança cubano-soviética levou a uma convergência entre comunistas e castristas.

Já a outra esquerda tem origem num fenômeno político da América Latina: o populismo. Suas principais figuras históricas foram Lázaro Cárdenas, no México; Getúlio Vargas, no Brasil; Victor Raúl Haya de la Torre, no Peru; Jorge Eliecer Gaitán, na Colômbia; José Velasco Ibarra, no Equador; e Juan Domingo Perón, na Argentina.

Eles representavam uma outra esquerda, sempre autoritária e quase sempre anticomunista, mais interessada na política como instrumento para conquistar e consolidar o poder do que para promover mudanças que emancipassem as massas empobrecidas que juravam defender. Fizeram obras sociais ao mesmo tempo em que criaram as estruturas corporativistas.

Ao privilegiar negócios com amigos do regime, geraram um capitalismo de compadres que até hoje emperra o desenvolvimento econômico da região. Quando nada dava certo, sua alternativa era aumentar os gastos públicos.

Estas duas esquerdas estiveram quase sempre em conflito. A tradicional modernizou-se. Os populistas permaneceram fiéis a si mesmos.

Com o colapso do comunismo, diversos governos de esquerda adotaram as políticas de seus antecessores, respeitando a democracia, a economia de mercado e o cumprimento dos contratos. É o caso do Chile, do Uruguai e, em certo sentido, do Brasil.

Sua diferença em relação à direita está na maior ênfase em programas sociais de educação, redução da pobreza, saúde e educação. Ao mesmo tempo, mantêm a ortodoxia econômica. Geralmente a esquerda tenta aprofundar e ampliar a institucionalização da democracia. Mas, como no caso brasileiro, a corrupção e o autoritarismo comprometem seus ideais.

O único pais normal da região, onde a discussão sobre o modelo econômico tornou-se secundária, é o Chile. Com os socialistas no poder há 16 anos, em aliança com a Democracia Cristã, apresenta altas taxas de crescimento; significativa redução da miséria; melhorias em educação, saúde e educação; certa queda na desigualdade; aprofundamento da democracia e desmantelamento da herança da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-90); discussão e julgamento de violações dos direitos humans; e uma relação forte e madura com os EUA que inclui um acordo de livre comércio.

No Uruguai, Tabaré Vásquez, da Frente Ampla, que reúne o Partido Comunista, o Partido Socialista e muitos ex-guerrilheiros tupamaros, restabeleceu relações com Cuba mas está propondo a negociação de um acordo de livre comércio com os EUA. Ele não foi à posse de Morales. Seu pais, de 3,5 milhões de habitantes, tem a menor taxa de pobreza e a menor desigualdade da América Latina. Vasquez quer evitar riscos.

Já o Brasil de Lula manteve os compromissos assumidos com o Fundo Monetário Internacional e o crescimento continua medíocre. Na área social, Castañeda destaca a generalização do programa Bolsa-Família, copiado das políticas sociais de Carlos Salinas e Ernesto Zedillo no México, ou seja, “tão neoliberal e pouco revolucionário como qualquer outro”.

Para o cientista político, o Partido dos Trabalhadores optou claramente pela social-democracia. É um símbolo da transição da esquerda revolucionária para a nova esquerda que não rejeita a economia de mercado. “Mas a conversão não foi completa: os escândalos de corrupção que abalam o governo brasileiro têm mais a ver com uma certa negligência com as práticas democráticas do que com tentativas de enriquecimento pessoal. Mas a direção em que Lula está se movendo é clara”.

VELHO POPULISMO
Os populistas, por sua vez, estão mais preocupados com a retórica do que com a substância. Estar no poder é mais importante do que o exercício responsável do poder. O desespero dos pobres é mais um instrumento do que o desafio. Atacar os EUA é uma forma de buscar legitimidade que mina os reais interesses internacionais de seus paises.

“A diferença é óbvia: Chávez não é Castro; é Perón com petróleo”, sentencia Castañeda. “Morales não é um Che Guevara indígena; é um populista habilidoso e irresponsável. López Obrador não é Chávez nem Lula; vem diretamente do Partido Revolucionário Institucional de Luiz Echeverría, presidente do México de 1970 a 1976, com quem aprendeu seu populismo autoritário e gastador. Kirchner é um peronista clássico e se orgulho disto.”

Para estes líderes, raciocina o cientista político mexicano, “desempenho econômico, valores democráticos, conquistas programáticas e boas relações com os EUA não são imperativos mas constrangimentos aborrecedores”. Preocupados em manter a popularidade a qualquer preço, querem controlar fontes de renda como gás e petróleo, e podem suspender os pagamentos da dívida externa.

Kirchner conseguiu restaurar o crescimento econômico e renegociar a dívida externa da Argentina. Está atacando os fantasmas da guerra suja em que o último governo militar matou 30 mil argentinos. Mas, para Castañeda, ainda “é um autêntico peronista, muito mais interessado em atacar os credores e o FMI do que em formular políticas sociais inovadoras, em combater a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) do que em fortalecer o Mercosul, em se aproximar de Morales, Castro e Chávez do que em reduzir o custo de importar gás da Bolívia. Ninguém sabe exatamente o que acontecerá quando os preços dos produtos de exportação argentinos caírem ou o pais for forçado a voltar aos mercados de capitais em busca de dinheiro novo”.

Na previsão de Castañeda, “Kirchner vai distribuir dinheiro, expropriar o que quer que seja necessário ou esteja disponível, e atacar os EUA e o FMI a cada possibilidade. Ao mesmo tempo, terá pouca preocupação com os argentinos vivendo na miséria e será o mais íntimo de Chávez possível”.

É mais ou menos o que Chávez faz na Venezuela, segundo o professor mexicano: lidera a luta contra a Alca, torna cada vez mais difícil a atuação de companhias estrangeiras no pais, apóia grupos e candidatos de esquerda em paises vizinhos.

O caudilho venezuelano “estabaleceu uma parceria estratégica com Cuba, que enviou 30 mil médicos e professores à Venezuela. Está flertando com o Irã e a Argentina em questões nujcleares. Acima de tudo, está tentando, com algum sucesso, dividir o hemisfério em dois campos: pró-Chávez e pró-EUA”.

Ao fazer isto, como deixou entrever o chanceler Celso Amorim no Senado, Chávez prejudica o projeto de integração regional na América Latina. Enquanto isto, a estrada que leva ao aeroporto de Caracas entrou em colapso meses atrás e os indicadores sociais venezuelanos se deterioraram.

Seus programas sociais são corruptos e ineficientes mas Chávez dá petróleo a Cuba e a outros paises do Mar do Caribe, comprou títulos da dívida argentina e é acusado de financiar campanhas de aliados na Bolívia, no Peru e no México. Vive atacando o presidente George Walker Bush e seguidamente acusa lideres latino-americanos como o presidente Vicente Fox, do México; e o candidato a presidente do Peru e ex-presidente Alan García; e o atual presidente peruano, Alejando Toledo; de serem cachorrinhos de madame de Bush. Não é uma estratégia de conciliação e integração.

López Obrador seguiria a mesma linha. Não vai permitir investimentos privados na empresa estatal Petroleos de México (Pemex), responsável por um terço da arrecadação do pais, nem na estatal de eletricidade.

Morales seguiu o exemplo de Chávez. Estatizou o gás e o petróleo, e quer renegociar a presença de empresas estrangeiras na Bolívia. Sua primeiva viagem ao exterior foi a Cuba e a segunda a Caracas. Humala promete fazer o mesmo, se for eleito no Peru.

“A esquerda populista ama mais o poder do que a democracia, e vai lutar para mantê-lo a todo custo”, adverte Castañeda. Seu desrespeito pela democracia e o Estado de Direito é lendário. Geralmente usando métodos democráticos, tenta concentra o poder através de novas constituições, controle da mídia e dospoderes Legislativo e Judiciário, perpetuando-se no poder por meio de reformas eleitorais, nepotismo e a suspensão das garantias constitucionais. Chávez é o maior exemplo”.

Historicamente o populismo tem sido desastroso para a América Latina e o cientista político mexicano não vê razões para que seja diferente agora. Provoca inflação, aumento da pobreza e da desigualdade e confrontos com os EUA, colocando em risco as mais importantes conquistas da região nas últimas décadas: “o estabelecimento da democracia e o respeito aos direitos humanos”.

No artigo, Castañeda recomenda à Europa e aos EUA que usem seu poder sobre a América Latina para fortalecer a esquerda moderna e responsável, reconhecendo a liderança do Brasil como um negociador sério e engajando os governos responsáveis na busca de soluções para os problemas de outros paises da região. Também devem fazer um esforço multilateral para tratar de questões como comércio internacional, não-proliferação nuclear, terrorismo, drogas, direitos dos povos indígenas, e a luta contra a corrupção e a lavagem de dinheiro.

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