quinta-feira, 14 de setembro de 2006

EU ACUSO

Professor Doutor JOSé HENRIQUE DE FARIA

O materialismo histórico e dialético é a base epistemológica que Marx utiliza para explicar as mudanças ocorridas na sociedade através de seus elementos contraditórios. Não obstante Marx tenha explicitado seu método, sua teoria e suas concepções com bastante clareza, apesar da complexidade de seu pensamento, cada um de seus vários seguidores postula para si a propriedade da única e verdadeira interpretação. Eis que existem, nesta cesta, os vários “marxismos verdadeiros”: stalinista, leninista, estruturalista, mecanicista, formal, fenomenológico, maoísta e, entre outros, os atuais populistas nacionalistas. Também é possível encontrar o marxismo ortodoxo dogmático, que postula que Marx explicou tudo o que pretendia explicar, explicou o que não pretendia explicar e explicou o que não podia explicar.

Este último marxismo, o da beatificação, o religioso, mais comum do que se pensa, vale-se de categorias marxistas de análise, mas o faz de forma idealista, descolada do concreto, como se este tivesse sido imobilizado desde a publicação de O Capital. Além destes, existem os falsos marxismos, que se utilizam de alguns pensamentos de Marx para parecerem marxistas; estes muitas vezes se misturam aos demais e, de forma insidiosa, se vão amalgamando até serem confundidos com os mesmos e deles não se distinguindo devido à sua condição mimética, a não ser que se preste atenção às suas características camaleônicas.

No Prefácio da "Contribuição à Crítica da Economia Política", Marx identifica os seguintes estágios de desenvolvimento das forças produtivas (modos de produção): asiático (comunismo primitivo), escravista (da Grécia e de Roma), feudal e burguês. A tese geral marxiana (para não confundir com os mencionados marxismos) é a de que o modo pelo qual a produção das condições materiais de existência de uma sociedade é realizada condiciona a organização política e as representações ou, para dizer de outro modo, a base material ou econômica condiciona diretamente a formação das instituições jurídico-políticas (as leis, o Estado) e ideológicas. No processo histórico, tais contradições são geradas pelas lutas entre as classes sociais em presença. Resumidamente, a evolução de um modo de produção para outro ocorre a partir do desenvolvimento das forças produtivas e da luta de classes, de forma que o movimento da História não somente segue um processo de transformação progressivo, como obedece a um movimento dialético.

Para o marxismo autêntico, aquele que se baseia no pensamento original de Marx e reconhece sua força e suas fragilidades, assim como o capitalismo surgiu do feudalismo desenvolvido, é do capitalismo desenvolvido, dialeticamente expresso, que surgirá um modo de produção superior. Não faz o mínimo sentido, para o marxismo autêntico, que a história possa ou deva regredir. O que há de feudal no capitalismo são resquícios de um modo de produção que ainda permanecem e que permanecerão até que o modo atual tenha se desenvolvido plenamente, quando, então, será também superado.

Nesta profusão de esquerdismos, alguns grupos de uma auto-intitulada esquerda, que por suposto deveriam ter como meta a construção do socialismo ou, então, de uma sociedade democrática, passam a manifestar publicamente apoio a práticas medievais, que escravizam mulheres e não reconhecem a elas igualdade de direitos com os homens; apoio a regimes baseados na tirania, em que os opositores podem ter a mão decepada ou sofrer humilhações e nos quais, com toda a certeza, estes mesmos grupos de esquerda não teriam liberdade para se manifestar e se o fizessem não sobreviveriam; apoio ao fanatismo religioso que a esquerda conceituaria como sendo demonstração de primitivismo; apoio aos que se recusam a possuir mercadorias do mundo capitalista ocidental, mas que paradoxalmente, utilizam sua mídia eletrônica, sua ciência e sua tecnologia ultra-moderna; apoio a um sistema educacional que se sustenta no princípio do ódio; apoio, enfim, a práticas superadas pelas lutas de resistência dos trabalhadores, nas quais muitos pagaram com a própria vida. Tudo isto baseado na lógica de que qualquer coisa que seja contra o capitalismo deve ser apoiada e incentivada, mesmo que represente o atraso. Este é o fundamento da falsa esquerda, que não trata da unidade dos contrários, do desenvolvimento das forças produtivas, da busca de uma síntese, mas que demonstra uma preferência subjetiva movida pelo sentimento objetiva e historicamente preconceituoso. Neste sentido, o materialismo aparece na forma de ideologia, o histórico na forma de dados manipulados e o dialético na forma de classificação dicotômica.

O falso marxismo aproveita-se de todas as situações para acenar suas bandeiras repletas de símbolos e para proferir discursos elegendo os sempre disponíveis demônios e também prometendo aos seus seguidores a ataraxia social. De fato, o conflito recente no Oriente Médio é uma destas situações que faz reabrir velhas e surradas análises eivadas de equívocos, parciais e maniqueístas. Certos pensadores que se pretendem dialéticos mostram-se incapazes de encontrar a unidade dos contrários, base analítica da busca da negação, e entram no fácil caminho da dicotomia entre o bem e o mal, tratando como se fossem oposições o que nem ao menos é dialética mecanicista. Outros, revelam desprezo pela história e a reduzem a um conjunto mal feito de efemérides, às vezes até ordenadas cronologicamente para dar certa impressão de capricho contextual. Para estes “analistas”, o Oriente Médio se divide em dois grupos: o do capitalismo, representado por Israel e o do anti-capitalismo, representado pelo Hamas, Hezbollah e seus financiadores. Tais analistas, em primeiro lugar, caem em um erro comum, de certa maneira promovido pelos Islamitas Integristas, que se resume em colocar todos os fatos na mesma cesta analítica. O que está se passando no Líbano não tem relação direta com a questão Palestina, mas a auto-intitulada esquerda não é capaz de ver qualquer diferença, já que seu mundo se divide em capitalismo e anti-capitalismo. O Islã tenta hoje se apropriar das crises do Mundo Árabe e propor soluções de "Volta à era gloriosa do Profeta", à época da Expansão Islâmica, ou seja, à Idade Media. E é para a Idade Média que a auto-intitulada esquerda está desejosa de ir, talvez saudosa dos bons tempos do feudalismo, das monarquias absolutas, das corporações de ofícios, das jornadas de trabalho de 14 horas para trabalhadores de até 12 anos.

Quando estes “analistas” da auto-intitulada esquerda se dispõem a explicar um fato a partir de uma história sem passado, nos deparamos inevitavelmente com análises plenas de erros, nas quais tudo se justifica para “um lado”, que é o lado do bem, descrito como tendo sua origem natural pela existência do outro, o lado do mal. Psicanaliticamente, poder-se-ia falar de um psicótico: sou o que sou por culpa do outro e não tenho responsabilidade alguma em sê-lo. Daí, proliferam as análises do tipo causa-efeito, tão ao gosto do raciocínio linear, inaugurando, quem sabe, um novo sub-marxismo: o linear-positivista. “Um lado” é apresentado como bondoso, caridoso, social, humano, assistencial e deificado. O outro, é apresentado como malévolo, demoníaco, desumano, assassino. Esta história, como se sabe, já tem milênios. E quando tudo se justifica para um e tudo se condena para outro, pratica-se um outro tipo de terrorismo: o do preconceito. Este que se esconde sob a máscara dos que não assumem suas faces.

Nada justifica, de “um lado” e de outro, a morte de inocentes. Não há bons e ruins nas guerras. Há apenas a barbárie humana. Pode-se explicar qualquer conflito que tire a vida de uma única vítima que seja, mas não há nenhum argumento, por melhor que seja, que o justifique. Porém, criminalizar um e inocentar ou sacralizar outro é tentar justificar o injustificável, é dar abrigo “ao que não tem governo nem nunca terá, ao que não tem juízo” . Por este motivo é também necessário questionar, como se deve fazer, que outros fatores se encontram impregnados neste conflito. Não para justificar, mas para entender.

Acobertar e aceitar atitudes, omitir informações, deturpar a história, não são atividades compatíveis com a tradição da esquerda, pelo menos da esquerda autêntica. Por esta razão, a humanidade orgulha-se dos seus grandes expoentes, que não caíram na armadilha do discurso fácil dos acusadores em busca de aplausos dos que nada sabem, que não se deixaram levar pelas aparências, pois eles sempre foram a garantia do registro de um passado que é necessário expor sem julgamentos pré-concebidos. Hoje, ao contrário, é fácil encontrar análises que, a pretexto de revelarem a história, primam pela quantidade de inverdades, distorções, exageros, omissões, confusões e mitos. Deste modo, convém lembrar que se alguma verdade pode ser encontrada é que a verdade é o lugar da práxis.

O que passa no Líbano atualmente é do estilo déjà vu . País criado depois da Primeira Guerra Mundial, tendo como cenário a rivalidade Franco-Britânica, o Líbano se caracterizou pela sua sociedade pluri-confessional, sendo quatro as comunidades importantes que o constituíram: Muçulmanos Sunitas, Muçulmanos Xiitas, Druzos e Cristãos Maronitas. Na época (anos 1930 e 1940), os Cristãos Maronitas eram maioria. Em 1943, no Pacto Nacional que representa um acordo constituinte de vida civil em comum, estabeleceram-se as bases políticas do País. Trata-se de um equilíbrio muito sensível que foi resultado de um acordo das duas maiores comunidades naqueles anos (Maronitas e Sunitas) que lograram manter sempre o Presidente Maronita e o Primeiro Ministro Sunita, com um sistema de proporção na representação parlamentar.
Convém salientar as ocasiões em que este equilíbrio foi abalado, para se poder perceber os traços comuns dos acontecimentos:

1. Em 1958, sob a influência Nasserista (Pan-Arabismo), há uma tentativa de tomada de poder, em que se buscou derrubar o Presidente Camille Chamoun, visto como pró-ocidente. É a época da Guerra Fria e o Líbano é invadido pelos Marines Americanos (Eisenhower);

2. No fim dos anos 1970, a Organização para a Libertação da Palestina – OLP começa seu capítulo Libanês e tenta fazer dele a base da luta Árabe contra Israel, acusado de representar o Imperialismo Americano no Oriente Médio. Inicia-se uma guerra civil que abala de novo o equilíbrio precário da Sociedade libanesa. Nesta época, se armam as milícias Confessionais: os muçulmanos apóiam a OLP; os cristãos unem-se em torno das Falanges de Pierre e Bashir Jumayel; os druzos juntam-se com a milícia de Kamal Jumbalat; os xiitas unem-se em torno do Movimento AmAl de Nabi Berri. Esta fase vai precipitar a Invasão de Israel ao Líbano em 1982;

3. Dos anos 1990 até hoje, é a vez do Integrismo Islâmico, que também clama por um estilo de "Pan-Islamismo", e que novamente desequilibra o Líbano, fazendo dele sua base revolucionária, que obviamente passa pela "Luta pela destruição do Estado Sionista". Seu protagonista, desta vez, é o Hezbollah xiita.
O que é comum nos três episódios é: penetração política em um Estado com equilíbrio precário; abalo do sistema; exportação de um sonho de unidade dos "Oprimidos" contra a civilização dominante, que é a civilização ocidental, embora certos analistas da auto-intitulada esquerda insistam que se trate apenas do capitalismo. O capitalismo é apenas parte do problema. O que está em jogo são os valores da civilização ocidental, a moral, as liberdades (especialmente as referentes à sexualidade) e tudo o que represente uma ameaça aos preceitos do islamismo. Por este motivo, no Oriente Médio, Israel é o alvo propício. Tratando-se de um corpo estranho no habitat do Oriente Médio, Israel sem dúvida é um País com características ocidentais e uma democracia, algo raro na região, e ainda por cima é desenvolvido economicamente nos moldes capitalistas. Daí à fantasia ideológica, a distância é pequena.

A questão libanesa, considerando que o Líbano é o País mais ocidental do mundo Árabe, passa por restituir o equilíbrio confessional desta Sociedade, restabelecer o papel do poder central, democraticamente eleito, desarmar todas as milícias, dar poderes ao Exército libanês, que deve receber ordens do poder legitimo e assegurar internacionalmente as fronteiras reconhecidas do Líbano. É obvio que isto implica na retirada total do Exército Israelense e de toda presença militar estrangeira no Líbano.

Resolvida a questão libanesa, Israel deve procurar por todos os meios participar do esforço para resolver a questão Nacional Palestina, que passa inevitavelmente pela sua saída dos territórios Palestinos ainda ocupados. Isto não pode acontecer sem a compreensão dos Palestinos de que a aventura "Hamassita" é o caminho mais inapropriado para qualquer solução. É preciso reconhecer o direito aos palestinos a um Estado Palestino autônomo, livre e democrático.

No entanto, não é desta forma que certo grupo de intelectuais de uma auto denominada esquerda aborda este tema. Dando vazão ao recorrente vício de analisar o que não entendem e apresentar soluções para o que desconhecem, tendo por base empírica o movimento nos corredores dos seus locais de trabalho, tais intelectuais vociferam suas posições. Felizes, por certo, com o pacto antiimperialista proposto por um populista nacionalista latino americano com um governo não democrático do Oriente, tais intelectuais decidem importar o conflito entre Israel e os grupos Hamas e Hezbollah para o interior da maior universidade pública brasileira, através de uma associação sindical de seus trabalhadores . Para tanto, promoveram um ato contra o massacre no Líbano e na Palestina. Não há barbárie maior ou menor, justificada ou injustificada, boa ou má: barbárie não tem adjetivação. Por este motivo um ato contra a barbárie é importante. Entretanto, a auto intitulada esquerda fez um grande alarde para arrombar portas abertas. Era preciso, em nome da coerência, arrombar portas fechadas. Onde estava esta auto intitulada esquerda para fazer um ato contra a barbárie durante os anos da revolução cultural chinesa? Onde estava esta mesma falsa esquerda para fazer um ato público contra as barbáries do stalinismo? E onde estava a falsa esquerda para fazer um ato público contra a maior mortandade ocorrida no Líbano, causada pela própria Guerra Civil, um conflito interno que se iniciou em abril de 1975 e com a OLP, xiitas, sunitas, drusos e a Síria de um lado, contra cristãos maronitas e setores da direita do outro, matando 150 mil pessoas?

Em relação a Sabra e Chatila, as estimativas de mortos variam de 300 a
500, segundo a polícia libanesa. De todas as aldeias libanesas que sofreram massacres, as únicas que ficaram conhecidas são as de Sabra e Chatila, em 1982.

Entretanto, em maio de 1985, houve novo massacre em Chatila e em Burj-el Baranjê quando muçulmanos atacaram os acampamentos. Segundo a ONU, houve 635 mortos e 2.500 feridos. E durante uma batalha de dois anos entre a milícia xiita Amal – respaldada pelo Governo Sírio – e a OLP, foram registrados mais de dois mil mortos, incluindo muitos civis. Onde estava a auto intitulada esquerda para organizar um ato público contra estas barbáries? Será que, neste sentido, para a falsa esquerda a moral deles é diferente da nossa, como anuncia o título de um manifesto de Trotski? Será que as “mortes deles”, dos inimigos da revolução, são melhores, mais justas e justificadas, em relação às “nossas”?

Em “A cruzada ética contra o marxismo”, Osvaldo Coggiola afirma que “o próprio objetivo de unir a classe operária internacional, para dar fim à exploração, elimina logicamente, apesar das vantagens a curto prazo que isso possa ter num ou noutro país, qualquer apelo a interesses particularistas, como o racismo ou o chauvinismo, qualquer incitamento à ação não baseado na igualdade fundamental de todos os homens, em toda parte”. Para Coggiola, a esquerda perdeu a ética de classe e, com isto, perdeu “a sua própria natureza de esquerda e, não raro, a própria vergonha”. O que não deixa alternativa que não seja “construir uma outra esquerda, baseada nos princípios classistas e na tradição histórica do marxismo revolucionário”. O diagnóstico é interessante, mas o remédio nem tanto. Não há dúvida que a esquerda deve ter um projeto político no qual não cabe o imperialismo, não cabe a exploração da força de trabalho, não cabe a exclusão social, não cabe o autoritarismo, não cabe a violência. Entretanto, é preciso acautelar-se. Primeiro, porque não há necessidade de criar nenhum novo marxismo, bastando apenas fazer o devido enfrentamento aos sub-marxismos; segundo, porque marxismo revolucionário é uma tautologia; terceiro, porque à conta de criar algo novo é que se destruiu o original e se fortaleceu a cópia mal feita.

É necessário que seja dito de forma clara e sem subterfúgios que, para a esquerda, não há e nem pode haver qualquer justificativa para uma guerra. Quando ela existe a humanidade falha. Mas, qualquer pessoa com uma capacidade mínima de reflexão sabe quantos interesses habitam os bastidores e que não se revelam. Daí que a história precisa ser escrita sobre os fatos concretos e suas relações sempre contraditórias. A prática do preconceito, este terrorismo de gabinete, em nada colabora para desvendar as contradições que se expõem neste conflito. Para a esquerda autêntica, assim como para qualquer humanista, uma única vítima já é motivo mais do que suficiente para tirar qualquer razão de quem quer que seja. Nada justifica tantas mortes. Mas, nada justifica a ignorância de que as mesmas tenham ocorrido ou, o que é pior, nada justifica que muitas delas sejam justificadas, esquecidas, omitidas, desprezadas e que não estejam estampadas em camisetas dos que realmente se interessam pela essência do mundo e não se iludem com suas aparências, como aliás ensinava Marx.

Pode-se pensar, contudo, que se trata de mera ignorância. Mas, é manifesto que se trata preconceito, deste sentimento de ódio que nasce e se desenvolve nos escritórios de “intelectuais”, espalha-se nas salas de aula, registra-se nos jornais e boletins de forma explícita ou insidiosa e, para justificar-se, precisa de um bordão legitimador comum, tal como “fim do imperialismo” ou “luta contra o capitalismo”, mas que, de fato, deseja "o fim do Estado de Israel" e “denuncia” quem lhes ousa contestar com o epíteto de “subserviência às 'poderosas' forças dos imperialistas e dos genocidas judeus". Judeus e não israelenses, o que já deixa claro que se trata de racismo. Isto em uma instituição universitária, onde alguns destes partidários da auto intitulada esquerda certamente se esmeram em apresentar o que julgam ser belas e úteis contribuições ao desenvolvimento das forças produtivas, capazes de acentuar as contradições do sistema de capital e de promover sua crise de acumulação. Eis que estes revolucionários das instituições, com seu idealismo feuerbachiano, fazem questão de ressuscitar e de convidar a entrar pela janela o morto que a realidade já havia expulsado pela porta. Marx, ao tratar da ideologia, ofereceu vários exemplos de como as “idéias fixas” podem servir para “orientar as classes” sem levar em conta seus reais interesses e seu lugar no processo de produção.

O fim do Estado de Israel pretende propor, enfim, uma solução mágica da auto intitulada esquerda criativa, que deve ter brotado dos gabinetes, dos grandes debates em salas de aula com presença maciça de dez a doze pessoas com larga experiência em política internacional, em geoestratégia, em conflitos, em unidade econômica, que é a: “criação do Estado Palestino laico, onde caibam todos, palestinos, israelenses, árabes...". Quem sabe estes intelectuais tão criativos também já não tenham pronta, tirada da manga, uma proposta de criação de uma simples associação de trabalhadores universitários onde caibam todos, esquerda, direita, centro, árabes, judeus, em que todos possam se expressar livremente, isonomicamente, com os mesmos direitos. Depois, talvez mereçam levar esta experiência a vôos mais altos, como, por exemplo, à própria universidade. Mas, para que cumprir esta trajetória se estes brilhantes intelectuais já possuem a grande solução para o Oriente Médio, uma solução que ninguém havia pensado, que é simples tal qual a simploriedade de seus proponentes?

Para abrilhantar o ato a favor da democracia uma lojinha vende camisetas e produtos do Hezbollah, para “financiar a gente aqui no Brasil”. A luta, dizem do alto de sua sabedoria de manuais, não é dos palestinos e libaneses, mas dos trabalhadores do mundo inteiro, e não se pode deixar de ocupar a trincheira de combate ao imperialismo. Aí está a capa protetora do discurso que pretende dar legitimidade ao racismo: o fim do Estado de Israel equivale ao combate ao imperialismo e ao sistema de capital no mundo. A auto intitulada esquerda, raivosa, professa, à moda dos que leram e não entenderam ou dos que entenderam e reinterpretaram à sua maneira, um outro marxismo, o da conveniência. O mundo do capitalismo repentinamente se encontra reduzido a um único Estado, com uma área territorial de cerca de vinte e dois mil quilômetros quadrados, cuja destruição representaria a destruição do imperialismo. Obviamente, é de se supor que em Israel não existam trabalhadores, apenas imperialistas; não existam partidos de esquerda, apenas de ultra direita. Em “O Dezoito Brumário”, Marx já havia denunciado esta prática ao mostrar como os jacobinos deram sentido à sua ação através da ênfase no verbo, promovendo a “ressurreição dos mortos” e ocultando aos olhos dos sujeitos seus objetivos reais, iludindo-os de modo eficaz.

Então, brotando da mais profunda cripta, um auto referenciado marxista revolucionário defende a destruição de todos os Estados, pois “enquanto houver burguesia e capitalismo, não haverá paz”. A utopia rousseauniana ilumina o palco em que estão sendo gerados os bons selvagens. O “Mal Estar na Civilização” é negado tal como Freud, seu autor, pois com o fim do Estado, os homens e mulheres deixarão de ser perversos, invejosos, cruéis, belicosos e defensores de interesses pessoais e passarão a ser cooperativos, bondosos, democráticos, pacifistas e defensores exclusivos dos interesses coletivos, tal qual se pôde observar nas experiências da União Soviética, da China, da Albânia e que ainda se observa em Cuba, na Venezuela, na Coréia do Norte, na Palestina, na Síria, no Irã, e no interior da organização Hezbollah. Mas, é preciso reconhecer que a superação do Estado é um projeto marxista em sua fase pós-socialista. É um estágio no qual a humanidade se elevaria a tal ponto em termos de vida associativa que retornaria ao modo comunista, mas não à sua forma primitiva. Se fosse esta a questão, acabar com o Estado, inclusive o de Israel, poderia ser um projeto de uma esquerda revolucionária. Mas, em seu lugar, a auto intitulada esquerda deseja colocar o que? Um outro Estado. Um Estado Palestino.

Então, a questão não é a destruição do Estado, mas de um Estado específico, que é, como se sabe, o Estado de Israel. De fato, para o auto referenciado marxista revolucionário, o que lhe interessa é travar “a luta nacional e internacional pela destruição do Estado de Israel e o imperialismo norte-americano”. A falsa esquerda, novamente, apropria-se de referências marxistas para usá-las de forma irresponsável, inadequada, descontextualizada.

O “profeta recém saído do forno”, para usar uma expressão de Engels a respeito do Senhor Düring, se coloca a pensar o fim do Estado assumindo um pensamento de Estado, utilizando categorias de análise produzidas e garantidas pelo Estado, o que mostra a fragilidade da sua reflexão. Sua concepção auto-referenciada de revolucionária o faz acreditar que isto o torna um sujeito independente do Estado, mas a mesma não poderia ter sido desenvolvida sem o apoio do Estado. Mais do que isto, sem ser financiada pelos recursos públicos que o Estado administra através da apropriação, via tributação, da massa de valor excedente produzida na sociedade . Ao destruir o Estado (caso isto fosse uma realidade e não uma projeção metafísica), o revolucionário deveria estar preparado para negar sua independência ou para usar contra esta nova forma de organização social a liberdade que o Estado democrático representativo lhe garantiu, ou seja, ser oposição de sua posição. Isto se ele não pretender ficar prisioneiro do pensamento de Estado, pois se for este o caso, o auto denominado revolucionário jamais teria a liberdade que postula naquele tipo de Estado que ele julga exemplar na luta contra o imperialismo. Sendo explícito, o auto denominado revolucionário poderia se organizar livremente no Estado de Israel, mas perderia sua independência nos tipos de Estado que ele toma como modelo.

As contradições seguem seu curso, inexoravelmente. A luta desta auto intitulada esquerda clerical prossegue em direção à destruição do capitalismo. Pode-se encontrá-la nos sites e blogs, estas poderosas máquinas da propaganda e da mídia informacional imperialista. Os participantes da luta são informados (e convocados) não apenas através de sites e blogs, mas diretamente via E.Mail, esta expressão do sistema capitalista de informação em tempo real, usando a rede de computadores fabricados por empresas capitalistas, disponíveis na universidade. Camisetas são produzidas usando a cadeia produtiva capitalista do setor têxtil. À mesa, garrafas de água produzidas por uma empresa capitalista e vendidas no mercado capitalista. Os organizadores deslocaram-se para a universidade em veículos produzidos pelo capitalismo, trabalham com instrumentos e equipamentos produzidos pelo capitalismo, vão ao supermercado e consomem mercadorias, submetidos à lógica do capitalismo e não conseguem enxergar um palmo na frente do nariz: o lugar da luta não é o que dizem ser. Mas não podem enxergar, pois sofrem de miopia teórica, política e prática impregnadas do inevitável racismo.

De fato, em seus discursos, eivados de equívocos teóricos, históricos, políticos e práticos, ficam evidentes não apenas a ignorância, a simplicidade da análise, a estupidez e a má fé, que já seriam suficientes para desqualificar as manifestações, mas o preconceito. Esta auto intitulada esquerda está “ombro a ombro, lado a lado” pela vitória do Hezbollah, “porque isso vai alavancar a luta contra o imperialismo. Uma derrota do imperialismo, uma derrota sobre o sionismo vai alavancar a luta do proletariado latino-americano, dos companheiros da Volks que estão sendo atacados agora, (...) vai levantar a luta contra a reforma trabalhista e sindical que Lula quer implementar em nosso País.(...) Até a vitória, até a destruição dessa máquina assassina!” O discurso inflamado tem como substrato a falta de substância e um grande excedente de estéril imaginação! Apelar para o Hezbollah para fazer frente à reestruturação produtiva do sistema de capital é o mesmo que cair no que Marx chamava, em “As lutas de Classes na França”, de “generosa embriaguez”, este ideologia fraternária que oculta a verdadeira luta de classes e promove uma “abstração negligente”.

A grandiloqüência arrogante das proclamações autovalorizantes não visa apenas desacreditar os oponentes, que, aliás, sequer podem se manifestar de forma isonômica no mesmo “espaço democrático”, mas valorizar os novos profetas, com seus exibicionismos retóricos destinados a um público ávido em ser convencido do que previamente já havia sido. Esta esquerda que Ruy Fausto (Jogo de Espelhos. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 10.09.2006) chama de totalitária, populista, “heavy”, que acredita nas virtudes dos chefes autoritários, é uma esquerda “indulgente com os totalitarismos”. Trata-se de um grupo que ao mesmo tempo é admirado e admira a direita . Ruy Fausto argumenta que boa parte da direita “tem uma grande admiração pelos ícones da esquerda antidemocrática”. Por “realismo ou por falta de amor pela democracia, parte da direita tem uma fascinação secreta pela esquerda antidemocrática”. Ao mesmo tempo, continua Fausto, “a extrema esquerda antidemocrática, sob muitos aspectos, prefere a direita à esquerda democrática”. Aqueles, alerta Ruy Fausto com conhecimento de causa, que se permitem criticar esta esquerda são tratados com violência muito maior do que a que eventualmente usam contra a direita.

De acordo com Eric Hobsbawm (A Epidemia da Guerra. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 14 de abril de 2002), cerca de 187 milhões de pessoas morreram em função de guerras no século passado. Na I Guerra Mundial, 5% eram civis; na II Guerra Mundial, 66% eram civis; nas “guerras modernas de alta tecnologia”, entre 80 e 90% dos afetados foram civis. Quanto mais avanços tecnológicos são incorporados pela indústria bélica, relativamente maior é o número de civis atingidos pela destruição. Mas, a barbárie faz parte do que Hanna Arendt chama de “banalidade do mal”. O que interessa é fazer com que esta indústria renove seu consumo e isto somente pode acontecer se forem utilizados seus produtos, não apenas para “repor os estoques”, como para incorporar “novas tecnologias”. A crise de acumulação de capital encontra, na “indústria da guerra”, uma forma de mobilizar o conjunto dos complexos industriais, colocando em movimento diversos elos das cadeias produtivas. Contudo, é um equívoco acreditar, dada a integração produtiva do mundo globalizado, que as beneficiárias serão apenas as indústrias sediadas na Alemanha, Inglaterra, Rússia ou Estados Unidos. Existe uma complexa rede de relações, da qual Manuel Castells, em “A Era da Informação”, analisando a “Sociedade em Rede”, esboça uma pista, muito articulada e com interesses mais profundos do que estes que aparecem na superfície.
Os avanços tecnológicos, o desenvolvimento dos aparatos normativos internacionais, a integração econômica, a evolução do processo civilizatório, contudo, não são capazes, como ainda crêem alguns, de frear a barbárie. Em “Mal Estar na Civilização”, Freud afirmava que a civilização está sempre ameaçada pela tendência humana de precisar dar vazão à sua agressividade de alguma forma . Para Freud, a cruel agressividade do homem espera alguma provocação, uma razão qualquer para exteriorizar-se. No âmbito internacional, as guerras têm sido a forma mais comum de exteriorização da violência. Assim, se uma sociedade organizada como Estado de Direito e, portanto, com controle da violência interna, pode, num determinado momento, mostrar-se sangrenta e cruel contra outro povo, é muito mais provável que uma sociedade organizada sob o signo da violência e do autoritarismo interno, baseada em um fanatismo ideológico, invista contra outro povo, que naquele momento representa a origem e a fonte de todo o mal, de todo o drama. Em ambos os casos, a consideração do homem com sua própria espécie é facilmente perdida ou ignorada. Basta transformar o outro na encarnação do mal, seja ele um estrangeiro, um integrante de alguma minoria, um estrangeiro dos estrangeiros. Seja ele um sujeito ou uma coletividade, especialmente se esta coletividade puder ser denominada, na conhecida fórmula hitlerista, atualmente tão bem assimilada por setores da auto-intitulada esquerda revolucionária. Nestes momentos, há o impedimento do uso da razão, da justiça, da liberdade, da democracia, grandes conquistas da civilização.
Em “Psicologia de Grupo e Análise do Ego”, Freud afirma que a psicologia das massas faz com que o indivíduo sinta-se pertencente a uma unidade invencível. Como estar em uma associação de irmãos é pertencer a uma horda, o sujeito necessita e deseja ser guiado por um chefe, por um líder, por um temido “pai primitivo”, um verdadeiro ente que encarna a potência dos impotentes, um “revolucionário autêntico”, detentor da palavra do grupo, do verbo, de suas representações discursivas e simbólicas. O grupo deseja ser governado por este ser extraordinário, uma vez que lhe atribui uma força irrestrita e nutre por ele extrema paixão. É nestas situações que a personalidade individual definha e o sujeito permite-se a liberação de pulsões que individualmente reprimiria. O líder bate no peito, grita palavras de ordem, pronuncia frases de efeito mesmo que não tenham conteúdo, convoca para uma luta mesmo sabendo que a mesma não se dará naqueles termos. No fenômeno de massas, o líder carismático é colocado como o ideal do grupo, ocorrendo uma sujeição total a ele. Obedientes seguidores, os membros do grupo perdem a capacidade de análise, substituem a crítica pelo dogma, a razão pela irracionalidade.

De fato, nas análises pseudomarxistas feitas por estes grupos auto-intitulados de esquerda não há relação, mas opção. Há um julgamento e não uma análise que dê conta da dinâmica do confronto entre forças políticas e o que efetivamente estas representam. Estas “análises” não estão interessadas nas contradições, na história, enfim, no materialismo histórico e dialético. Tampouco se preocupam com a precisão conceitual. Falam de genocídio e acusam os judeus de cometê-lo no recente conflito. Genocídio é a destruição intencional de um povo para eliminá-lo, como foi o caso dos armênios, como foi o caso do Holocausto, como foi o caso de Ruanda e ainda é o caso de diversas tribos indígenas. Mas, pregam a tese da destruição intencional de Israel. Seria um paradoxo? Seria uma estupidez teórica e política? Seria um descuido? Ou seria uma proposta de genocídio contra o sionismo? Esta auto intitulada esquerda esmera-se no discurso do disfarce, mas não consegue sequer esconder o rabo.

Que lamentável decadência! Com tantas contradições presentes no capitalismo contemporâneo, com a acentuada crise de acumulação capitalista que se desenrola no interior do neoliberalismo, estes “analistas” vão buscar inspiração no seu próprio preconceito! E têm certeza que o Hezbollah vai alavancar a luta a favor dos “companheiros da Volks”. Seria muito cômico se não fosse excessivamente trágico.
Mais de 60% da população israelense é a favor de um Estado Palestino independente. Porém, existem obstáculos tanto em Israel, como entre os Palestinos para que um acordo de paz se viabilize. Há forças políticas que se negam a um acordo por motivos religiosos e ainda que tais forças sejam majoritárias entre os palestinos, por mais que se considerem outras causas, incluindo erros de governos israelenses, as forças que se negam a um acordo em Israel são minoria. Na dinâmica dos conflitos existem muitas vítimas palestinas e israelenses, situação que deve terminar imediatamente, mas transformar este conflito em uma “política de destruição de um povo” ou em uma “política de destruição do Estado de Israel” só pode ser delírio ou preconceito. Ou, para ser mais preciso, somente pode ser uma solução proposta por um híbrido de uma auto intitulada esquerda revolucionária com o fundamentalismo islâmico que reclama pelo desaparecimento de Israel. As questões envolvendo Israel e a Palestina, tanto quanto os conflitos com o Hezbollah (financiado pela Síria e pelo Iran), são muito mais antigas, complexas e profundas do que o que imagina e prega em seu catecismo a vã filosofia do fim do Estado e da luta contra o imperialismo da auto intitulada esquerda.

Contudo, é esta pregação que pretende manter vivo o dito marxismo. Uma vez enterrado o marxismo como práxis política, como teoria ou mesmo como filosofia ou epistemologia, estes arautos do niilismo intelectual que trataram de desconstruí-lo, tratam de reconstruí-lo, segundo uma lógica pós-moderna, agora em seu aspecto religioso. A religião marxista, como qualquer religião, é uma ilusão, já dizia Freud. É alguma coisa que não necessita confirmação, é um dogma, uma crença, e basta que os neo-militantes acreditem no marxismo religioso e em suas promessas para que elas se tornem fatos, independentemente de que estes fatos sejam verificados. Como se sabe, religiões necessitam de sacerdotes (ou pastores) e é aí que surgem os sempre oportunistas pregadores (ditos líderes) para falar de seu marxismo irreal, ilusório, que não defende os sujeitos individuais ou coletivos (inclusive as classes sociais), mas que precisam manter viva a chama da promessa de que sua religião marxista pode e irá proteger a todos e salvar a todos, mesmo que para tanto deva associar-se aos seus piores inimigos, ao mundo atrasado do ultra-conservadorismo de direita. Este marxismo religioso é uma ilusão exatamente porque, fundamentado na crença generalizada de sua superioridade, propõe-se a responder a todas as perguntas, a encontrar todas as soluções para as angústias humanas, baseado nas interpretações que fazem dos escritos do seu mito criador e seus fiéis discípulos. O real, contrariando a tese marxista, perdeu a sua primazia para a metafísica.

André Glucksmann, filósofo francês, disse recentemente , a propósito dos protestativos profissionais, que lhe indigna a indignação de tantos indignados. Alguns mortos muçulmanos pesam menos que uma pluma, enquanto outros pesam toneladas. Os crimes terroristas de cinqüenta civis, diariamente, em Bagdá, aparecem na seção de sucessos, enquanto um bombardeio contra um grupo terrorista que mata 28 pessoas, incluindo civis, é colocado na conta de crime contra a humanidade. São dois pesos e duas medidas, afirma Glucksmann. Por que, pergunta ele, os 200.000 mortos de Darfur não despertam nem 20% das reações de horror que despertam as vítimas 200 vezes menos numerosas do Líbano? Quando os muçulmanos matam outros muçulmanos parece que isto não conta nem para as autoridades corânicas e nem para a má consciência ocidental. A explicação é necessária, posto que quando o exército russo, cristão e ungido pelo Papa, arrasa a capital dos muçulmanos chechênios (Grozny, que possui 400.000 habitantes), em uma “operação anti-terrorista”, de acordo com o Primeiro Ministro (e depois Presidente) Vladimir Putin, e mata dezenas de milhares de crianças, nada conta. O Conselho de Segurança da ONU não realiza reuniões freqüentes para discutir a situação e a Organização dos Estados Islâmicos desvia seu olhar desta realidade. Parece, diz Glucksmann, que se é obrigado a concluir que só muçulmanos mortos por israelenses provocam indignação universal.

Deve-se crer, pergunta Glucksmann, que Ahmadineyad (Presidente do Iran) disse em voz alta o que a opinião pública mundial murmura para si mesma? Nota-se que um grande número de consciências ocidentais ultrajadas pelos bombardeios no Líbano se sente indignada quando se suspeita que seja anti-semita. Pode-se acreditar nelas, não estivesse o mundo a imaginar que todos vivem a paranóia anti-semita. Porém, o mistério aumenta ainda mais. Por que semelhante paralisia? Por que uma indignação mundial sobreexagerada quando se trata de bombas israelenses? Se as imagens das destruições no Líbano causam impacto incomparavelmente muito maior do que os famintos de Darfur e as ruínas da Chechênia, é porque levam implícitos os subtítulos de uma geopolítica surrealista. Quem contempla a atualidade de Cana ou de Gaza não conta somente os féretros dos piores dias: os desafortunados a quem enterram parece que levam a auréola de um presságio fatal, desconhecido em centenas de milhares de cadáveres africanos ou caucasianos, conclui Glucksmann.

Os criativos proponentes de um Estado Palestino laico construído sobre a destruição do Estado de Israel acreditam ter achado a solução para a definitiva paz. Com isso, seriam resolvidos todos os conflitos no Oriente Médio: o fanatismo religioso desapareceria sob o laicismo estatal; as divergências belicosas, tais como as que hoje ocorrem entre xiitas, druzos e sunitas, por exemplo, acabariam em um grande congraçamento; as revoluções sangrentas, as ditaduras sanguinárias, o terrorismo e a obsessão anti-ocidental apagar-se-iam com o sopro mágico deste outro Estado. Em resumo, o futuro de uma ilusão seria outra ilusão, baseada no fim das relações de poder. Diante deste sacrilégio teórico e prático, desfilam os faltos, com suas melopéias.

A existência do Estado de Israel nunca foi obstáculo ao anti-ocidentalismo assim como não é motivo ao anti-semitismo. É necessário muita ingenuidade ou má fé para não perceber que a destruição de Israel encerra, ao mesmo tempo, uma motivação relacionada à judeofobia e um pretexto para uma “guerra santa” em todas as frentes, que nada tem de conteúdo socialista ou antiimperialista, pois a pretensão é exatamente a imposição de um outro imperialismo, baseado no fanatismo religioso, o qual certamente não andará de mãos dadas com o fanatismo religioso dos neomarxistas. Uma vez destruído o Estado de Israel, somente os ignorantes ou os de má índole acreditarão que os fanáticos religiosos festejarão a vitória com o abandono das armas. É preciso dizer mais: somente o purismo relativo à parvoíce pode alimentar a crença de que a esta mesma esquerda será permitido organizar-se politicamente e atuar democrática e livremente, de maneira crítica, independente e autônoma, naqueles países. A geopolítica de má fé se converteu em ideologia religiosa. O neonazismo se reorganiza muito rapidamente no mundo, sob a complacência de uns e com a conivência e o apoio de outros, inclusive da falsa esquerda.

Como observa Roberto Romano (Correio de Campinas, 29/08/2006), “Jean-Pierre Faye fala na ‘ferradura ideológica’ pela qual circulam os discursos totalitários. Enunciações geradas no nazismo terminam em bocas da esquerda. É o que ocorre com o anti-semitismo que explode entre nós. Iniciada nas ‘fontes’ venenosas que saciaram o ódio de Hitler pelos judeus, a fala racista passa pela esquerda”. Ao “ato público” realizado em uma universidade pública, “só foram convidados os defensores de uma doutrina. E assim as mentiras fascistas se espalham: a propaganda nega o contraditório, porque lhe interessa impor sua vontade de potência. O asco é resposta aos que promovem o racismo sob a capa mentirosa das ‘lutas sociais’”. Para acompanhar este evento, diante das sempre raivosas demonstrações de irascibilidade destes auto denominados marxistas revolucionários, algumas autoridades universitárias e demais associações representativas adotam aquela clássica posição ambígua dos que se acomodam no berço da neutralidade dos coniventes.

A pretexto de propagar e defender o marxismo ou, segundo estes grupos se consideram, o único, o verdadeiro e o legítimo marxismo, os mesmos estão corroendo toda a base do marxismo, simplificando-o, reduzindo-o a mero discurso vazio e inconsistente, atacando-o com a pior das armas que é o seu uso irresponsável e oportunista, jogando pelo ralo como água suja um século e meio de construção. A judeofobia destes grupos auto intitulados de esquerda é grotesca: Marx, Trotski e Rosa Luxemburgo, por exemplo, são judeus. É vergonhoso, para um marxista ou para quem está simplesmente no campo da esquerda, ser confundido com estes grupos, como se toda a esquerda fosse uma só e, em sendo uma, fosse esta. Portanto, é imperioso indicar o que caracteriza esta auto-intitulada esquerda.

Não é uma tarefa simples ser marxista e ter, como referência epistemológica e teórica, o materialismo histórico e dialético. Principalmente nos dias atuais. Primeiro, porque a forma de se conduzir diante do real tendo por base o materialismo histórico e dialético requer muito investimento intelectual, muita dedicação e uma necessária quebra de preconceito contra outras formas de pensamento, pois não é preciso depreciar as outras teorias para valorizar a escolha, a não ser que não se acredite na força e pertinência da escolha feita. Em segundo lugar, porque o marxismo tem sido tratado com muito desdém pelos liberais e neoliberais, geralmente ignorantes do poder que o mesmo possui devido ao seu rigor teórico, metodológico e epistemológico. Há uma tentativa permanente de escarnecer o marxismo por seus supostos fracassos teóricos, pelo fato de que sua teoria não explica todos os fenômenos e pelo insucesso que representou o chamado socialismo real. Porém, nada disto tem relação com o marxismo de Marx. Marx não era profeta e não poderia explicar o que ainda não era real; Marx não era um hipercientísta, capaz de apresentar uma explicação definitiva sobre todos os ramos da ciência; Marx jamais advogou a tese de que seu socialismo científico tivesse a forma que teve o que se chamou de socialismo real. Marx era um sujeito. Brilhante, mas um sujeito. Seus textos são provas de uma das mais extraordinárias produções científicas e filosóficas da história da humanidade, mas, como todas as demais, possuem contradições, contêm equívocos, são limitadas pela realidade e pelo estágio científico e tecnológico em que foram criadas. Além disto, uma parte do que escreveu foi publicado sem sua revisão final, após sua morte, o que deixa dúvidas sobre a precisão de algumas passagens. Porém, de um autor só se pode esperar o que ele pretendeu fazer, caso contrário segue-se o caminho da mitificação.

Se, com todos estes fatores, já é uma tarefa difícil ser marxista, mais ainda se torna quando ao marxismo se agregam grupos de oportunistas, que o destroem feito vírus, com seus vícios, sua decadência, seu descompromisso. Estes formam o marxismo pérfido ou a esquerda pérfida. À diferença do marxismo e de uma esquerda genuína, grupos que formam o marxismo pérfido padecem de: (i) falta de autenticidade, pois desenterram suas “análises” de ultrapassadas realidades; (ii) atraso, pois desejam fazer regredir a história; (iii) preconceito, pois já têm o fato julgado antes de analisá-lo e mesmo diante da realidade mantém o pré-julgamento; (iv) incompetência científica, pois mesmo quando o real concreto aponta para complexas relações, satisfazem-se com análises simples e superficiais; (v) incapacidade de elaboração teórica original, pois ainda que tenham à sua disposição a mais sólida ferramenta teórico-epistemológica, insistem em fazer dela um dogma; (vi) ideologização da práxis política, pois procuram legitimar seus discursos e idéias com bordões e palavras de ordem retiradas do referencial marxista e deslocadas do lugar de sua produção original, encobrindo o real; (vii) criminalização de um Estado livre e democrático, pois ignoram convenientemente que em Israel existe oposição ao governo, liberdade de expressão e de organização; (viii) preferência pelos valores obtusos da Idade Média, pois se decidem pela defesa de um modo de vida feudal pelo simples fato do mesmo resistir ao capitalismo, como se esta resistência tivesse a mesma qualidade que uma luta contra o capitalismo no interior do mesmo; (ix) opção pela tirania, pois consideram a opressão e a crueldade como símbolos do heroísmo; (x) pacto com políticas nazistas, pois aplaudem o nacional socialismo latino americano e mundial e seus acordos com a pior tradição da direita, desprezando um fato histórico tão recente cujas conseqüências foram incomensuráveis; (xi) covardia, pois fogem dos verdadeiros debates no campo da esquerda já que seus argumentos são inconsistentes e se baseiam apenas em surrados discursos; (xii) autoritarismo, pois são incapazes de aceitar as diferenças e se comportam como raivosos componentes de uma ditadura típica do submundo do crime, a qual protege os aderentes e elimina os divergentes; (xiii) incoerência, pois afirmam que a religião é o ópio do povo, mas apóiam com raro entusiasmo o fanatismo religioso.

Por tudo isto, com a devida licença de Émile Zola que, com sua carta pública, de 13 de Janeiro de 1898, fez reabrir o caso do Capitão Alfred Dreyfus, judeu, sentenciado à Ilha do Diabo, da mesma forma Eu Acuso estes grupos da esquerda pérfida de anti-semitas. De igual modo, Eu os Acuso de anti-marxistas.

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