quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Cobertura deve mostrar face humana do comércio internacional

A cobertura do comércio internacional deve “mostrar a face humana”, seus efeitos sobre as pessoas comuns, afirmou ontem a jornalista Maria Helena Tachinardi, diretora do Instituto de Estudos de Comércio e Negociações Internacionais (Ícone). Ela participou nesta terça-feira do 3º Curso de Comércio e Negociações Internacionais para Jornalistas, realizado no Rio de Janeiro pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e pelo Ícone.

Na era da globalização, a cobertura das negociações e do comércio internacional é cada vez mais importante mas “as matérias não estão sendo entendidas”, adverte Tachinardi. “A nova tendência é mostrar a face humana”, para aproximar o leitor do impacto que questões técnicas complexas têm sobre a vida cotidiana.

Antes confinada aos jornais especializados ou a uma posição secundária nas páginas de economia da grande imprensa, a cobertura das negociações de comércio internacional saltou para as primeiras páginas, o rádio e a TV com a Batalha de Seattle, nos Estados Unidos. O violento confronto de organizações não-governamentais do movimento antiglobalização contra a polícia durante a Conferência Interministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, mostrou que havia coisas importantes para o cidadão comum em jogo nas negociações sigilosos até então dominadas pelas grandes potências comerciais.

“A Batalha de Seattle foi um divisor de águas para a cobertura”, observou Tachinardi. Abriu o debate sobre política comercial. “As ONGs denunciavam a falta de transparência e de compromisso com o desenvolvimento, e conseguiram uma grande mobilização via Internet. O Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, é um produto de Seattle”.

Em Seattle, o então presidente americano Bill Clinton, não podendo mais concorrer à reeleição mas interessado em fortalecer o Partido Democrata para sua sucessão, adotou a agenda dos sindicatos americanos. Defendeu a inclusão de cláusulas sociais e ambientais nas negociações de comércio, o que sempre foi visto pelos países em desenvolvimento como um risco de protecionismo disfarçado.

Na opinião de Maria Helena, a partir daí, “a mídia foi obrigada a mostrar a face humana do comércio internacional: trabalho infantil, doentes de aids sem remédios...”

O debate recoloca a questão se o livre comércio promove o desenvolvimento ou é uma política que só interessa às grandes potências. “Obriga a ouvir também os críticos da globalização”, alerta a jornalista.

“É preciso conhecer melhor a OMC e seus temas: propriedade intelectual, agricultura, serviços, investimentos, trabalho e emprego, desenvolvimento econômico e meio ambiente”, diz Tachinardi.

Na Conferência de Cancún, em 2003, sob intensa pressão de países em desenvolvimento apoiados por ONGs, foram excluídos da Rodada Doha, lançada no Catar em 2001, alguns dos chamados “temas de Cingapura”, como propriedade intelectual, investimentos e compras governamentais.

Em 2001, Doha aprovara um documento sobre propriedade intelectual dando um prazo de transição até 2016 para que os países em desenvolvimento reconheçam as patentes farmacêuticas e admitindo sua quebra em casos de calamidade na saúde pública, como acontece com a aids em vários países africanos.

Na negociação de serviços, acrescenta a diretora do Ícone, “há uma resistência a ampliar o GATS (Acordo Geral de Tarifas e Serviços) para setores de mão-de-obra intensiva como a construção civil”.

Em agricultura, as questões centrais são tarifas, subsídios e barreiras não-tarifárias.

EXPORTAÇÃO DE EMPREGOS
O trabalho entra cada vez mais nas discussões por causa da relocalização industrial. As fábricas procuram países e regiões de custo menor. Acabam exportando empregos para locais de mão-de-obra mais barata.

Se a grande injustiça do capitalismo, como diz o economista americano Paul Krugman, é tratar o trabalho e, por conseqüência, o ser humano como mercadoria, isto é cada vez mais evidente no mundo globalizado. Daí a necessidade, destacada por Tachinardi, de mostrar a face humana do comércio internacional e discutir questões como desenvolvimento econômico, trabalho e meio ambiente.

“Trabalho e meio ambiente não são temas da OMC mas entraram na pauta das negociações de comércio internacional”, nota a jornalista. “As ONGs descobriram, no preâmbulo dos acordos da OMC, os compromissos com ‘desenvolvimento sustentável’, ‘proteção e preservação do meio ambiente’ e ‘distribuir os benefícios do desenvolvimento econômico para todos os países em desenvolvimento’.”

Cada vez mais ativas, as ONGs acompanham atentamente todas as negociações e apresentam suas posições via Internet, sem os limites de tempo e espaço dos jornais impressos. “O enfoque é sempre o conflito entre países desenvolvidos e em desenvolvimento”, observa a diretora do Ícone.

A política comercial é feita basicamente com três tipos de instrumentos:
- tarifas e cotas;
- barreiras não-tarifárias (técnicas, sanitárias e ambientais);
- defesa comercial (subsídios, dumping, salvaguardas).

O Brasil sofreu o choque da abertura comercial no início dos anos 90 e hoje teme uma invasão de produtos chineses. Tem vários contenciosos na OMC. Mas até a Rodada Uruguai (1986-94) do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), antecessor da OMC, “havia pouco interesse. A abertura econômica ajudou e a criação do Mercosul provocou algum interesse”. Com a maior participação do setor privado e da sociedade civil, o Itamaraty deixou de ser a única fonte de informação.

Como os conflitos sempre motivaram a imprensa brasileira, a disputa com o Canadá em torno do caso envolvendo os aviões da Bombardier e da Embraer, e os conflitos de Seattle, assim como a questão de saúde pública e propriedade intelectual em Doha, tiveram ampla cobertura. No tribunal de solução de conflitos da OMC, o Brasil ganhou em algodão, açúcar e frango salgado.

Neste espírito, as negociações da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) foram outro divisor de águas. Conseguiram mobilizar sindicatos e outros setores da sociedade brasileira que estavam fora das discussões sobre comércio internacional.

Maria Helena Tachinardi avalia que a cobertura brasileira é de alto nível. Há dois correspondentes brasileiros fixos em Genebra, um ativismo cada vez maior do governo e do setor privado, e o surgimento de centros de pesquisas especializados como o próprio Ícone. Mas ainda falta, para a jornalista, traduzir melhor a linguagem técnica e chegar às conseqüências práticas para a vida dos cidadãos comuns. Talvez seja necessário, complementa, que os jornais tenham um editor de comércio internacional, como é o caso de Elizabeth Becker, que assina as principais matérias sobre o assunto no New York Times.

A melhor cobertura é feita pelo jornal Financial Times e a revista The Economist, ambos de Londres, opina Tachinardi. The Wall St. Journal não cobre o dia-a-dia mas às vezes dá grandes matérias. A Reuters faz a melhor cobertura entre as agências de notícias internacionais, seguida da France Presse. A espanhola Efe cobre bem a América Latina e faz uma cobertura ampla, colhendo muitas declarações úteis para ilustrar as matérias.

Para o jornalista Brook Unger, a boa reportagem sobre comércio internacional deve relacionar os detalhes técnicos a seu impacto na vida real: “A boa matéria informa os especialistas e é compreensível pelos leigos.”

Maria Helena recomendou o livro Covering Globalization, de Schiffrin & Bisat (Columbia University, 2004) como um bom guia para entender os diferentes aspectos do jornalismo econômico internacional e fez algumas constatações finais:
- há necessidade de editores especializados;
- há espaço para uma mídia especializada;
- há um interesse crescente da TV, especialmente das especializadas em notícias como a GloboNews, a BandNews e a Bloomberg;
- os centros de pesquisa tendem a pautar cada vez mais a mídia.

Nas conclusões, ela cobrou maior reflexão estratégica da mídia, um aumento da variedade das fontes, em busca da pluralidade, e a necessidade de estudar para conhecer melhor os novos temas do comércio internacional.

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