A política externa dos Estados Unidos vive uma espécie de esquizofrenia. O discurso do governo George W. Bush é tão divorciado da realidade que lembra a União Soviética, compara o professor Anatol Lieven, pesquisador convidado da New America Foundation, que ainda este mês lança Ethical Realism: A Vision for America’s Role in the World (Realismo Ético: uma visão sobre o papel dos EUA no mundo), em co-autoria com John Hulsman.
No discurso, Bush colocou a democracia no centro da sua estratégia de política externa para romper com o passado de apoio a líderes autoritários e ditatoriais porque seus regimes fechados, ao proibir o debate público, só deixariam como alternativa o terrorismo.
Na prática, observa Lieven, em artigo no jornal inglês Financial Times, “especialmente desde o último conflito no Líbano – a estratégia dos EUA se baseia inteiramente na capacidade de regimes autoritários pró-americanos na Arábia Saudita, no Egito e na Jordânia de controlar a raiva de suas populações diante das políticas dos EUA e de Israel. Para manter estes regimes sunitas na linha, Washington usa seu medo da expansão do Irã e da influência xiita. Esta foi exatamente a estratégia dominante dos EUA no passado, exceto nos períodos em que Saddam Hussein substituiu o Irã como principal demônio na região. A linguagem de democracia do presidente George W. Bush é acompanhada de total desprezo pela visão dos eleitores em potencial da região”.
Anatol Lieven se espanta que este divórcio entre discurso e prática não seja explorado politicamente na mídia e no Congresso.
O pesquisador atribui uma das razões à “natureza do nacionalismo americano”: “A crença de que é direito, dever e destino dos Estados Unidos difundir a democracia e a liberdade no mundo é incutida na mente da maioria dos americanos desde a primeira infância. Esta crença nasce na fé na constituição, na lei e na democracia. É o chamado ‘credo americano’, a fundação da identidade nacional coletiva dos Estados Unidos. Nas palavras do grande historiador americano Richard Hofstadter: É nosso destino como nação não ter uma ideologia mas ser uma.”
Como o comunismo soviético, a ideologia americana acredita que pode ser aplicada a toda a humanidade, muito além do país de origem. Lieven cita Alexis de Tocqueville, que escreveu o clássico Democracia na América, lançado em 1835 e 1840 para dizer que “os americanos são unânimes nos princípios gerais sobre como governar a sociedade humana.” Para o professor, isto é tão válido hoje como era no século 19.
Se os EUA são excepcionais em sua lealdade à democracia e à liberdade, continua o raciocínio de Anatol Lieven, “são excepcionalmente bons. Porque são extremamente extremamente bons, merecem ter um poder excepcional e por natureza não podem usar este poder para fins malignos”. É o mito da eterna inocência americana.
Isto que Lieven chama de credo americano criou uma bolha ideológica onde Bush se refugia, lançando seus raios de vez em quando.
Para o professor, a auto-confiança dos EUA em reconstruir países vem da experiência com o Japão e a Alemanha, hoje a segunda e a terceira economia mundiais, depois da Segunda Guerra Mundial.
O grande problema é que a percepção americana é orientada por esta crença interior no sonho americano, numa ideologia e não num estudo empírico que permita distinguir diferentes casos e povos, a Polônia da Ucrânia, o Japão e a Alemanha do pós-guerra do Oriente Médio hoje.
Com este missionarismo, conclui Lieven, os EUA herdam o papel dos impérios europeus que acreditavam estar levando a “civilização” e o “progresso” para o resto do mundo. Isto sempre inclui mentiras e hipocrisia. Como o que interessa mesmo é o nacionalismo, a política interna americana, o resto do mundo não importa muito. Ele adverte que “as fés nacionalistas das nações européias foram derrotadas por sucessivas catástrofes no século 20. Podemos apenas esperar que os americanos aprendam com o exemplo antes que seja tarde demais”.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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