No seu estilo autoritário e fanfarrão, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, comparou a instalação de radares e interceptadores na Polônia e na República Tcheca, dentro do escudo de defesa antimísseis dos Estados Unidos, com a crise dos mísseis em Cuba. Fez uma frase de efeito para a platéia, mas é um desafio inconseqüente. A realidade é completamente diferente.
A crise dos mísseis soviéticos em Cuba foi o pior momento da Guerra Fria. Nunca o mundo esteve tão perto de uma guerra nuclear entre as superpotências.
Em 14 de outubro de 1962, um avião-espião americano U-2, igual ao de Francis Gary Powers quando caiu na União Soviética em 1960, fotografou mísseis e silos de mísseis soviéticos que seriam instalados em Cuba.
Esses mísseis dariam uma vantagem estratégica, ou melhor, equilibrariam o jogo. Quando a URSS lançou o Sputnik, em 4 de outubro de 1957, deixou claro que seriam capaz de lançar um foguete capaz de atingir diretamente o território americano. Mas, talvez por uma questão burocrática, a URSS não tenha tirado vantagem dessa supremacia no início da era espacial.
As Forças de Foguetes Estratégicos estavam subordinadas ao Exército Vermelho, a arma dominante nas Forças Armadas soviéticas. O Exército estava preocupado com uma guerra na Europa, que lhe parecia o principal cenário da Guerra Fria.
Então, em 1962, os EUA tinham supremacia em mísseis balísticos intercontinentais. Podiam lançar um primeiro ataque. Os arsenais nucleares das superpotências ainda não eram redundantes.
Em estratégia nuclear, as duas questões centrais são:
• As forças nucleares são simplesmente dissuasórias ou lançariam o primeiro ataque, tomarariam a iniciativa de empregar armas atômicas?
• Em caso de sofrer um primeiro ataque, há condições de responder ao inimigo para causar um dano semelhante ou maior?
Uma plataforma nuclear em Cuba daria à URSS um salto no confronto estratégico com os EUA. Tinha condições de lançar um primeiro ataque de um país que fica a 145 quilômetros dos EUA. Não era uma postura defensiva.
O presidente John F. Kennedy criou um Conselho de Guerra. Lá, nasceram as expressões 'pombas' e 'falcões' em política internacional. As pombas queriam negociar; os falcões queriam invadir Cuba e derrubar Fidel Castro de quebra.
Kennedy impôs um bloqueio naval a Cuba. Aquele, sim, foi um bloqueio. O embargo econômico não é um bloqueio. Durante a crise dos mísseis, os EUA ameaçavam abordar qualquer navio que fosse para Cuba para inspecionar e ver se não possuía equipamento ou material nuclear.
A tensão aumentou e os EUA preparavam-se para invadir Cuba quando um repórter e agente soviético advertiu o Kremlin. Finalmente o líder comunista Nikita Kruschev concordou com a retirada total dos mísseis. Em troca, os EUA removeram simbolicamente mísseis de curto alcance na Turquia, para dar uma idéia de equivalência, mas eram mísseis obsoletos que seriam desativados de qualquer maneira. E o governo americano se comprometeu a não invadir Cuba.
Em 27 de outubro, dia em que a crise acabou um míssil antiaéreo instalado tardiamente em Cuba derrubou um avião-espião U-2. Naquela época, não havia satélite. A espionagem era feita de aviões. Se a burocracia soviética se coordenasse para primeiro instalar os mísseis antiaéreos e depois expor os mísseis nucleares, talvez os americanos não tivessem descoberto.
No mesmo dia, um navio soviético quase atacou o bloqueio a Cuba feito pela Marinha dos EUA. Mas Kennedy e Kurschev já tinham se acertado. Uma das conseqüências da crise dos mísseis foi a instalação de uma linha direta entre a Casa Branca e o Kremlin para negociar crises internacionais.
A partir daí, a política de "coexistência pacífica" torna-se uma realidade. Ela acelera a ruptura entre a URSS e a China comunista, alimentando o radicalismo que levou à Grande Revolução Cultural Proletária (1966-76), um período trágico da História da China. Os automóveis andavam no sinal vermelho e paravam no verde. As universidades foram fechadas e os professores enviados a zonas rurais para serem reeducados como "bons camponeses".
Dois anos depois do início da crise dos mísseis, em 16 de outubro de 1964, o camponês ucraniano Nikita Kruschev foi deposto da liderança do Partido Comunista soviética. Seu lugar foi ocupado por uma troika formada por Alexei Kossiguin, Nikolai Podgorny e Leonid Brejnev. Este último se firmaria como dirigente máximo da URSS até sua morte em 1982, um longo período de estagnação que condenou o comunismo à falência.
Não há nada que Putin possa fazer contra um escudo de defesa antimísseis dos EUA. Esse projeto é filho da Iniciativa de Defesa Estratégica, o programa Guerras nas Estrelas, lançado pelo hollywoodiano presidente Ronald Reagan em 1983.
Quando Reagan o lançou, num lance agressivo de marketing, a URSS já sabia que não teria condições de competir com os EUA numa corrida armamentista dominada pelas últimas tecnologias de computação. Mikhail Gorbachev (1985-91), o futuro líder dos últimos anos da URSS, visitava o Canadá como ministro da Agricultura em busca de idéias para reformar a economia soviética.
Putin sabe que também não tem como competir. Blefa na tentativa de ganhar no grito. Teme que um escudo antimísseis dê uma vantagem estratégica aos EUA de lançar um ataque sem poderem ser contra-atacados.
Até agora, não há tecnologia de defesa antimísseis totalmente segura. Os EUA estão preocupados diante da possibilidade de que em breve qualquer país de porte médio, como o Irã. seja capaz de desenvolver armas nucleares e mísseis de longo alcance para atacarem quem quiserem. Se um país atrasado como o Paquistão pode, qualquer um pode.
Se existe a possibilidade de deter alguns mísseis, uma chuva de mísseis nucleares com ogivas múltiplas como a Rússia seria capaz de lançar, seria impossível de controlar.
Em retaliação, Putin ameaça modernizar seu arsenal nuclear e voltar mísseis de médio alcance, abolidos no acordo Reagan-Gorbachev de 1987, apontados para a Europa Oriental. Mas não vai atacar a União Européia, parceira comercial importante que não ser mais uma vez palco de uma guerra entre russos e americanos.
Putin joga para a platéia e para o eleitorado, para as eleições legislativas deste fim de ano e as eleições presidenciais de março.
Quando perguntaram a Gorbachev o que ele achava do que George Bush, pai, estava dizendo na campanha eleitoral de 1988, o líder soviético respondeu: "Ele me ligou e disse para não me importar com o que ele diria na campanha".
Eleição é assim. Engana-se o povo com promessas inatingíveis ou bravatas inconseqüentes. Os estrategistas ficam atentos à ação de possíveis inimigos.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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