sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O Império contra-ataca?

Muito pobre o argumento do prof. José Luís Fiori em Eleições e escolhas estratégicas (Valor, 7/11/2007) afirmando que “a nova doutrina estratégica, de tipo imperial”, dos Estados Unidos teria sido formulada pelo presidente George Herbert Walker Bush, pai do atual presidente americano, nada tendo a ver com o Bush atual e os atentados de 11 de setembro de 2001.

Já em 1990, Bush, pai, teria adotado “uma política internacional preventiva de contenção universal para impedir o aparecimento de novas potências capazes de rivalizar com os americanos depois do desaparecimento da União Soviética”.

Há um equívoco fundamental nesta alegação. Ela ignora um princípio básico das relações internacionais que vem desde a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta, na Grécia Antiga: toda potência dominante tenta manter seu diferencial de poder em relação às outras. É da natureza humana que pessoas, empresas ou países que estejam numa posição superior usem seu poder para se manter no topo.

Foi por isso que os EUA ameaçaram invadir Cuba e provocar uma guerra nuclear quando descobriram mísseis soviéticos na ilha, em 14 de outubro de 1962. Os americanos haviam sido surpreendidos pelo vôo espacial do Sputnik, em 4 de outubro de 1957, que mostra que os soviéticos poderiam levar uma bomba atômica ao território americano sem usar aviões que pudessem ser abatidos no caminho.

Com os mísseis em Cuba, a URSS teria condições de lançar um primeiro ataque, neutralizando a superioridade que os EUA haviam conquistado, já em 1962, em mísseis nucleares estratégicos, aqueles capazes de atingir o território inimigo.

GUERRA NAS ESTRELAS
Da mesma forma, por que o presidente Ronald Reagan (1981-89) gastou US$ 2 trilhões em armas e lançou a Iniciativa de Defesa Estratégica, mais conhecida como Guerra nas Estrelas? Para pressionar a URSS, que não tinha mais recursos econômicos e tecnológicos para competir com os EUA.

Se o escudo antimísseis que Bush, filho, tenta implantar agora, sob protesto da Rússia, que acaba de denunciar o Tratado sobre Forças Convencionais na Europa, um dos marcos do fim da Guerra Fria, para reafirmar seu poder imperial, os EUA teriam uma clara superiodade estratégica.

Outro argumento duplamento falacioso é que o bombardeio “teleguiado” a Bagdá na primeira Guerra do Golfo, em 1991, teve papel semelhante ao bombardeio a Hiroxima e Nagasaque em 1945, ao apresentar ao mundo “o novo arsenal e a nova estratégia americana”, definindo “uma nova hierarquia de poder dentro do sistema internacional depois do fim da Guerra Fria”.

Em primeiro lugar, o Iraque foi atacado por ter invadido e anexado o Kuwait, na primeira vez em que um país-membro das Nações Unidas declarou que outro não tinha o direito a uma existência independente, numa guerra de conquista proibida pela Carta da ONU. Quem começou a guerra foi Saddam Hussein, não os EUA.

Os EUA, ainda traumatizados pela derrota no Vietnã, adotaram na época a Doutrina Colin Powell: para limitar a duração da guerra e evitar a morte de soldados americanos, usaram de força máxima, com a exceção de armas nucleares.

Bush, pai, estava mais preocupados com as conseqüências da guerra para sua reeleição do que em comprovar uma superioridade militar incontestável depois do colapso do comunismo.

Em segundo lugar, as bombas de Hiroxima e Nagasaque tiveram como objetivo central forçar a rendição incondicional do Japão, que atacaram a frota americana em Pearl Harbor, no Havaí, em 7 de dezembro de 1941.

Os EUA não estavam dispostos a aceitar nada além da rendição incondicional do Japão e quem viu os filmes recentes sobre a Batalha de Ivo Jima pode imaginar o custo em vidas americanas de uma invasão do Japão. Mas é mais fácil, num raciocínio simplista e antiamericano, sustentar que tudo não passou de uma demonstração de força.

GLOBALIZAÇÃO
É fácil falar em “utopia da globalização, com sua crença no fim das fronteiras, da guerra e da própria história”. Mas não passa de uma grosseira generalização. Alguém ouviu falar no fim das fronteiras dos EUA?

Bill Clinton (1993-2001) teria levado à frente a doutrina estratégia que Fiori atribui a Bush, pai, apesar da retórica liberal e multilateralista”, quando na verdade é o que toda grande potência tenta fazer desde Atenas e Esparta: manter-se no topo.

Para Clinton, o multilateralismo é a melhor maneira de servir os interesses americanos. Não há nenhum altruísmo nisso. Para Bush, filho, e os conservadores do Partido Republicano, o multilateralismo manietava a política externa americana.

Em seguida, Fiori afirma que, nos oito anos de governo Clinton, os EUA fizeram inúmeras intervenções militares ao redor do mundo”. Onde? Para a Somália, foi o pai de Bush que mandou tropas por razões humanitárias, sem armamento suficiente para se defender dos senhores da guerra somalianos. Os EUA não intervieram no genocídio em Ruanda e só entraram nas guerras que destruíram a antiga Iugoslávia pela absoluta incapacidade da União Européia de resolver a questão.

Na visão de Bush, pai, as guerras nos Bálcãs eram um problema europeu que poderia atrapalhar sua reeleição. Deveria ser resolvido pela UE, que fracassou no primeiro teste da política externa e de segurança comum aprovada no Tratado de Maastricht, em 1991.

Clinton também hesitou em se envolver. Só usou a Otan para romper o bloqueio sérvio a Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, depois de incontáveis massacres e acordos de cessar-fogo violados. A intervenção foi muito mais uma reação do que uma iniciativa dos Estados Unidos.

Fiori diz que foi “um movimento de ocupação que começou pelo Báltico, atravessou a Europa Central, Ucrânia e a Bielorrússia”, e teria chegado até o Paquistão, como se o Paquistão não tivesse sido um dos principais aliados dos EUA no fim da Guerra Fria, especialmente no apoio aos guerrilheiros muçulmanos que fizeram do Afeganistão o Vietnã da Rússia.

A Bielorrússia é a última ditadura stalinista na Europa. Não entrou para a órbita americana. Na Ucrânia, houve uma revolução democrática em 2004, com o apoio da Europa e dos EUA.

Os países bálticos e da Europa Central, historicamente espremidos entre a Alemanha e a Rússia ou União Soviética recorreram aos EUA para proteger sua independência reconquistada. É óbvio que isso era de interesse dos EUA, mas também dos pequenos países interessados na aliança com os EUA, como vimos no apoio que deram à guerra no Iraque.

O autor cita 750 bases e meio milhão de soldados americanos no exterior. Mas o contingente total das Forças Armadas dos EUA diminuiu na era pós-Guerra Fria. Atolados no Iraque, no momento, os EUA teriam dificuldades de travar uma nova guerra regional. Tem problemas mesmo para manter os atuais 160 mil soldados que têm no Iraque até o final do governo Bush, mesmo que os últimos dados sobre o número de mortos sugiram que o reforço ordenado no início do ano está dando resultado.

FIM DA HEGEMONIA
As dificuldades no Iraque e no Afeganistão não são um sinal do fim da hegemonia americana. Essa hegemonia acabou quando o presidente Richard Nixon (1969-74) acabou com o padrão-dólar para deixar o dólar flutuar. Desde então, em questões econômicas, os EUA são obrigados a negociar com a Europa e o Japão, e mais recentemente também com a China.

Houve até uma imagem simbólica, de Bush, pai, desmaiando no colo dos japoneses em 1991. A adesão dos EUA ao regionalismo econômico, ao assinarem um acordo de livre comércio com o Canadá, em 1988, foi outro sinal do fim da hegemonia americana. Uma potência hegemônica quer negociar com o mundo inteiro. Não precisa se proteger atrás de acordos regionais de comércio.

Há uma supremacia militar americana decorrente da vitória na Guerra Fria. Mas não serviu, pelo menos até agora, nem para impor a paz que os EUA queriam no Iraque.

Que hegemonia é essa, se os EUA não podem “mais seguir à frente com sua estratégia global sem contar, pelo menos, com uma parceria chinesa”? Não é hegemonia.

Sob a presidência de Vladimir Putin, a Rússia, enriquecida pela alta nos preços do petróleo, reafirma agressivamente seu poder imperial, tentando recriar o “império interior soviético” através dos laços econômicos que mantinham a dependência das demais repúblicas soviéticas em relação a Moscou.

O projeto alemão, por sua vez, está firmemente ancorado na UE, e inclui o fortalecimento das relações com a Rússia. Desde o fim da Guerra Fria, a Alemanha tornou-se a principal investidora no Leste Europeu. Mas, do ponto de vista geoestratégico, Polônia, República Tcheca e Hungria privilegiam suas relações com os EUA para se proteger dos vizinhos poderosos.

Qual a conclusão do professor de economia da UFRJ ao analisar as políticas externas dos candidatos à Presidência dos EUA em 2008? “A velha estratégia imperial continua de pé.

O que Fiori queria? Que os americanos dissessem: já mandamos no mundo durante muito tempo, agora estamos voltando para casa. A volta de uma diplomacia multilaterialista é reflexo do fracasso do unilateralismo de Bush. Mas o objetivo, como não poderia deixar de ser, é defender os interesses e tentar manter a supremacia dos EUA.

Depois dos atentados de 11 de setembro, não é uma preocupação legítima dos candidatos à Casa Branca se preparar para “guerras assimétricas”. Já a criação de agências e brigadas civis para “reconstruir e administrar os territórios e os governos incorporados ou atingidos pelo poder americano” é uma conseqüência da guerra no Iraque.

Ao derrubar Saddam Hussein, os EUA destruíram o Estado iraquiano, causando caos e anarquia que levaram ao nível de violência a que assistimos nos últimos anos. A conclusão é simples: não basta ganhar a guerra militarmente; é preciso conquistar a paz.

Se a guerra, como disse o estrategista alemão Carl von Clausewitz, “a continuação da política por outros meios”, quando cessam os combates, volta a política tradicional. O país precisa ser pacificado, o que a ONU tem feito por todo o mundo desde 1945.

A realidade é simples: os EUA são o país mais poderoso do mundo mas sua hegemonia está em processo de erosão. Os atentados de 11 de setembro provocaram um renascimento do poder imperial enterrado nos pântanos do Vietnã. Mas o mundo não é regido por uma conspiração americana, a não ser para intelectuais em cujas cabeças o Muro de Berlim ainda não caiu. Eles insistem em ver o mundo sob o prisma do marxismo-leninismo. Só que esse prisma rachou e multiplica as falsas quimeras como numa sala cheia de espelhos.

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