domingo, 30 de dezembro de 2018

Competição EUA-China cria mundo mais conflituoso em 2019


Com a crescente competição estratégica entre os Estados Unidos e a China, mesmo que a guerra comercial entre as duas superpotências seja resolvida, o mundo entra em 2019 numa era mais conflituosa.

“Estamos entrando num período mais turbulento e conflituoso. O que caracteriza as relações internacionais do início do século 21 é a ascensão da China. Marcou profundamente a ordem internacional”, observou o professor Paulo Wrobel, do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI-PUC).

O sonho do fim da Guerra Fria de uma era de paz e cooperação internacional começou a ser destruído com os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA. A história não acabou, como previra o pensador americano Francis Fukuyama ao acreditar que a democracia liberal e a economia de mercado seriam dominantes.

“Ficou para trás aquela noção do fim da história, de uma ordem internacional mais cooperativa, uma ONU mais ativa, uma era de cooperação pacífica. Alguns analistas falam em volta ao mundo pré-1914, mas a natureza da guerra mudou. O mundo está mais perto de 1914 do que de 1989”, comentou Wrobel, fazendo um paralelo entre a Era dos Impérios, anterior à Primeira Guerra Mundial, e o ano da queda do Muro e das revoluções democráticas nos países do Bloco Soviético na Euro pa Oriental.

Do ponto de vista das relações internacionais, há uma volta do multipolarismo e do nacionalismo: “São quase 200 países defendendo seus interesses. É o realismo clássico.”

Diante da ascensão da China, “o governo americano não aceita mais o déficit comercial”, que em 2017 ficou em US$ 375 bilhões. “Há uma competição tecnológica e militar. Enquanto a industrialização da China era mais voltada para produtos de baixo ou médio conteúdo tecnológico, não era problema para os EUA.”

Nos últimos dez anos, o desenvolvimento da China atingiu um nível de sofisticação tecnológica, com exploração do espaço, carro elétrico, microchips, inteligência artificial, computação quântica... A China passou a competir no lado mais sofisticado. O conflito é muito mais do simplesmente comercial, é econômico tecnológico e militar.

“A China tem um projeto claro, consistente, assumiu o papel de grande potência para se tornar a grande potência do mundo até 2050. Com ou sem Donald Trump, o desafio chinês está aí. Qualquer que fosse a liderança americana teria de dar uma resposta”, analisou o professor.

“No 19º Congresso do PC, Xi Jinping se firma como ditador. Se isso vai gerar um conflito bélico, a história dirá. Não existe mais a possibilidade de um jogo cooperativo. Temos uma ordem internacional mais conflituosa. Na nova doutrina de segurança nacional dos EUA do governo Donald Trump, o inimigo não é mais terrorismo, mas a China e a Rússia”, destacou Wrobel.

A competição estratégica está lançada: “O gasto militar americano ainda é três vezes maior, mas o aumento do orçamento militar chinês é maior do que o crescimento do produto interno bruto”, ponderou o professor da PUC-RJ.

O antigo inimigo da Guerra Fria também desafia os EUA e o Ocidente em todas as frentes: “A Rússia é cada vez mais agressiva, especialmente contra a Ucrânia”: anexou a Crimeia, erguei uma cerca, gerou um conflito no Mar de Azov, anunciou um novo míssil nuclear hipersônico.

Moscou fustiga cada vez mais o Ocidente, notou Wrobel: “A Suécia cogita entrar para a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). A Polônia morre de medo da Rússia. [O ditador Vladimir] Putin mandou bombardeiros para a Venezuela, um país vizinho. A Ucrânia voltou a manifestar interesse em entrar para a União Europeia e a OTAN.”

Com a retirada dos 2 mil soldados americanos que estavam combatendo a organização terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante, “a Rússia é o principal ator na Síria. Consolida-se como grande potência no Oriente Médio, o que complica a vida de Israel. A Rússia é uma potência militar que provoca o tempo inteiro a OTAN e os vizinhos. Há uma certa aproximação militar entre Rússia e China. Dois a três mil soldados chineses participaram de manobra militar russa na Ásia.” É pouco, mas é significativo, entende o professor.

Na Europa, o ano será marcado pela saída do Reino Unido da UE. “Em 19 de janeiro, a Câmara dos Comuns vota o acordo. O problema foi o primeiro-ministro David Cameron ter convocado o plebiscito de 23 de junho de 2016. O eleitorado se manifestou livremente. Um novo plebiscito seria um tremendo desprestígio.”

Desde o Tratado de Roma, de 1957 a Comunidade Econômica Europeia passou de 6 para 28 países e virou UE. “Pela primeira vez, um país sai. O modelo entrou em crise. Hungria, Polônia, República Tcheca e Itália contestam a integração europeia. Há um renascimento do nacionalismo europeu, uma reação contra a federalização da Europa.”

O eixo central, franco-alemão, está enfraquecido pela saída da primeira-ministra Angela Merkel e a crise do governo Emmanuel Macron, acrescentou: “A saída do Reino Unido é a saída de um peso-pesado, mais de 10% da população. A tradição francesa é fazer revolução. A mobilização, inicialmente da população branca do interior, da zona rural, levou a um desprestígio muito grande do presidente Macron”, reduzindo a chance de reforma da Europa.

“A imigração é uma questão fundamental. A Europa não pode aceitar um número muito grande de migrantes da África e do Oriente Médio. Todo ano 7 a 8 milhões entram no mercado de trabalho e a África gera 1 milhão de empregos por ano. Onde este pessoal vai trabalhar?”, perguntou Wrobel.

“A África é o último continente onde o crescimento demográfico ainda é grande. Os países só crescem muito com uma população jovem. É grande celeiro de recursos naturais. Mas, em curto prazo, a tendência é de saída de jovens da África”, assinalou o professor.

Da mesma forma, a imigração da América Central e do México virou um tema central da política nos EUA: “A população de latinos chega a 50 milhões. Trump quer um fechamento, mas não é novidade. A primeira restrição à imigração nos EUA foi com a China ainda no século 19, com a corrida do ouro na Califórnia e a construção de estradas de ferro no Oeste, Depois, houve restrições à imigração de judeus do Império Russo.”

Com a maioria da oposição democrata na Câmara dos Representes, “o clima vai esquentar em Washington. Há uma tradição de vitória da oposição nas eleições intermediárias. Aumenta a turbulência no processo legislativo americano. Agora, há um fechamento do governo. A polarização vem desde o governo Bill Clinton (1993-2001). O fim da Guerra Fria acabou com o consenso político americano”, sublinhou Wrobel.

“O Partido Democrata foi para a esquerda com o governo Barack Obama (2009-17) e o Partido Republicano foi para a direita com Trump”, aprofundando a divisão.

No Brasil, não é muito diferente, diagnosticou o professor do IRI-PUC: “Também temos um sistema político muito polarizado. Houve uma alteração profunda na correlação de forças, com uma derrota fragorosa da esquerda.”

A direita já havia chegado ao poder pelo voto com Fernando Collor de Mello, na primeira eleição presidencial depois da ditadura militar, em 1989: “Collor, um conservador, promoveu uma abertura comercial, mas teve erros crassos de política econômica como o confisco da poupança e a política anti-inflação”, avaliou.

“Agora, há um projeto liberal clássico de política econômica, uma tentativa de tirar o peso do Estado da vida econômica e uma inserção competitiva da economia brasileira. Reduzir o papel do Estado. De outro lado, tentar reinserir o Brasil. Do Grupo dos 20, das maiores economias do mundo, é o país mais fechado. Nossa economia é altamente protegida.

Wrobel espera “uma grande reação dos grandes cartéis representados nas federações das indústrias. Precisamos de um choque de capitalismo, de um capitalismo popular, menos corporativo”, defendeu. “O número de funcionários públicos dobrou sob o PT, de 6 para 12 milhões. Uma revolução macroeconômica e uma revolução microeconômica podem alavancar o crescimento nacional.”

O professor minimiza o peso do discurso marcado pelo cristianismo do futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo: “A retórica de política externa é uma coisa. Eu meço pelo resultado. O resultado da política externa do PT foi pífio. Apostamos na Rodada de Doha, não fizemos nenhum acordo comercial relevante.”

A hostilidade ao regime comunista chinês pode ver vencida pelo pragmatismo; “Ernesto Araújo criou uma divisão do agronegócio. Não vejo racionalidade em combater a China, mas a exportação concentrada em commodities não basta. Podemos ficar 5 mil anos exportando soja, minério de ferro e petróleo para a China que não vamos enriquecer.”

“Aliança cristã é exercício de retórica. O que vimos no encontro do presidente eleito, Jair Bolsonaro, com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tem a ver com uma aliança com os EUA e também como uma forma de se diferenciar dos governos petistas”, de marcar posição.

“A China critica Israel, mas tem uma forte aliança”, na opinião de Wrobel. Quanto às relações Brasil-Israel, “vejo a cooperação agrícola e dessalinização para combater a seca no Nordeste. A retórica é livre. Tem de ver os resultados práticos. Há ainda a crítica ao Mercosul, a proposta de aliança com o Chile e um endurecimento com Cuba, Venezuela e Nicarágua.”

No próximo ano, haverá eleições em países importantes com grandes populações, a Índia, a maior democracia do mundo, a Indonésia, que tem a quarta maior população mundial e a Nigéria, que tem a maior população da África, devendo chegar a 200 milhões de habitantes.

Existe, de acordo com o professor, “uma Inevitável frustração com a democracia em países como a Índia diante das expectativas. A democracia funciona na Índia desde a independência do Império Britânico, em 1947. O crescimento de 7% a 8% ao ano ainda é insuficiente para superar o atraso. A grande crise da democracia está na incapacidade de prover serviços de qualidade para levar os pobres à classe média. Nunca, na história da humanidade, tantos viveram tão bem.”

Em parte, isso se deve ao desenvolvimento da ciência e da medicina: “A expectativa de vida em 1900 era de 40, 50 anos. Hoje, está chegando em 75 anos. A expectativa de vida continua crescendo todo ano. Mesmo na África, já passou de 70 anos.”

Na América Latina, houve eleições em 2018 nos dois maiores países em economia e população, Brasil e México, além da Colômbia.

“O México é um país fundamental na América Latina. Tem um tremendo desafio que é a questão da violência. Os cartéis do tráfico de drogas muito mais ricos e poderoso do que no Brasil. Há o risco de virar um narcoestado como na Colômbia. O novo presidente, Andrés Manuel López Obrador prometeu grande mudança”, continuou o professor. Terá de equilibrar esquerdismo e pragmatismo.

A Colômbia elegeu um presidente jovem, Iván Duque, ligado ao ex-presidente Álvaro Uribe. Apesar do acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o tráfico de drogas não diminuiu: “A Colômbia supre 90% do mercado de cocaína dos EUA, maior consumidor mundial. O Brasil é o segundo maior consumidor.”

Em 2019, haverá eleições na Argentina, no Uruguai e na Bolívia.

“A Argentina é um caso talvez único de um país que tenta, mas não consegue deslanchar. Precisa de uma moeda. Qualquer bico que façam, imediatamente, os argentinos compram dólares. Talvez a saída seja dolarizar, como fizeram Panamá, Equador e El Salvador. Bem ou mal, o Brasil encontrou um certo rumo”, observou o entrevistado.

Eleito em 2013 com uma plataforma reformista, o presidente Mauricio Macri enfrenta uma crise cambial, com desvalorização de 50% do peso, inflação e recessão. Terá dificuldade para se reeleger: “Enquanto não resolver a questão monetária, é difícil. Enquanto não superar o fantasma do peronismo, não avança.”

A Bolívia cresceu muito sob Evo Morales, que atropelou a Constituição com o aval do Poder Judiciário e busca um quarto mandato. “É um indígena. Representa a maior parte da população e tem uma certa legitimidade vinda do crescimento econômico.”

Outra marca de 2018 foi a perda de prestígio e até um certo repúdio às grandes empresas da Internet, que se tornaram superpoderosas: “Qualquer setor que cresce muito e se transforma nas maiores empresas do mundo acaba sendo objeto de regulamentação. Foi assim com o petróleo. John Davidson Rockefeller fez fortuna com o monopólio. Com a Lei Sherman, da Standard Oil, foram criadas 32 empresas.”

O choque do futuro hoje é o impacto da revolução tecnológica sobre o mercado de trabalho, conclui Paulo Wrobel. “O grande dilema da humanidade é o emprego. A inteligência artificial vai reduzir o emprego. Todos querem uma vida de classe média. Para isso, precisam de emprego. Os países ricos podem se dar ao luxo de ter políticas de renda mínima”, o chamado imposto de renda negativo.

É característica do futuro ser incerto e perigoso.

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