Com a crescente competição estratégica entre os Estados Unidos e a China, mesmo que a guerra comercial entre as duas superpotências seja resolvida, o mundo entra em 2019 numa era mais conflituosa.
“Estamos
entrando num período mais turbulento e conflituoso. O que caracteriza as relações
internacionais do início do século 21 é a ascensão da China. Marcou
profundamente a ordem internacional”, observou o professor Paulo Wrobel, do Instituto
de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (IRI-PUC).
O sonho do
fim da Guerra Fria de uma era de paz e cooperação internacional começou a ser
destruído com os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA. A história não
acabou, como previra o pensador americano Francis Fukuyama ao acreditar que a
democracia liberal e a economia de mercado seriam dominantes.
“Ficou para
trás aquela noção do fim da história, de uma ordem internacional mais
cooperativa, uma ONU mais ativa, uma era de cooperação pacífica. Alguns
analistas falam em volta ao mundo pré-1914, mas a natureza da guerra mudou. O
mundo está mais perto de 1914 do que de 1989”, comentou Wrobel, fazendo um
paralelo entre a Era dos Impérios, anterior à Primeira Guerra Mundial, e o ano
da queda do Muro e das revoluções democráticas nos países do Bloco Soviético na
Euro pa Oriental.
Do ponto de
vista das relações internacionais, há uma volta do multipolarismo e do
nacionalismo: “São quase 200 países defendendo seus interesses. É o realismo
clássico.”
Diante da
ascensão da China, “o governo americano não aceita mais o déficit comercial”,
que em 2017 ficou em US$ 375 bilhões. “Há uma competição tecnológica e militar.
Enquanto a industrialização da China era mais voltada para produtos de baixo ou
médio conteúdo tecnológico, não era problema para os EUA.”
Nos últimos
dez anos, o desenvolvimento da China atingiu um nível de sofisticação tecnológica,
com exploração do espaço, carro elétrico, microchips, inteligência artificial,
computação quântica... A China passou a competir no lado mais sofisticado. O
conflito é muito mais do simplesmente comercial, é econômico tecnológico e
militar.
“A China
tem um projeto claro, consistente, assumiu o papel de grande potência para se
tornar a grande potência do mundo até 2050. Com ou sem Donald Trump, o desafio
chinês está aí. Qualquer que fosse a liderança americana teria de dar uma
resposta”, analisou o professor.
“No 19º
Congresso do PC, Xi Jinping se firma como ditador. Se isso vai gerar um
conflito bélico, a história dirá. Não existe mais a possibilidade de um jogo
cooperativo. Temos uma ordem internacional mais conflituosa. Na nova doutrina
de segurança nacional dos EUA do governo Donald Trump, o inimigo não é mais
terrorismo, mas a China e a Rússia”, destacou Wrobel.
A competição
estratégica está lançada: “O gasto militar americano ainda é três vezes maior,
mas o aumento do orçamento militar chinês é maior do que o crescimento do produto
interno bruto”, ponderou o professor da PUC-RJ.
O antigo
inimigo da Guerra Fria também desafia os EUA e o Ocidente em todas as frentes: “A
Rússia é cada vez mais agressiva, especialmente contra a Ucrânia”: anexou a Crimeia,
erguei uma cerca, gerou um conflito no Mar de Azov, anunciou um novo míssil nuclear
hipersônico.
Moscou fustiga
cada vez mais o Ocidente, notou Wrobel: “A Suécia cogita entrar para a OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte). A Polônia morre de medo da Rússia.
[O ditador Vladimir] Putin mandou bombardeiros para a Venezuela, um país
vizinho. A Ucrânia voltou a manifestar interesse em entrar para a União
Europeia e a OTAN.”
Com a
retirada dos 2 mil soldados americanos que estavam combatendo a organização
terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante, “a Rússia é o principal ator
na Síria. Consolida-se como grande potência no Oriente Médio, o que complica a
vida de Israel. A Rússia é uma potência militar que provoca o tempo inteiro a
OTAN e os vizinhos. Há uma certa aproximação militar entre Rússia e China. Dois
a três mil soldados chineses participaram de manobra militar russa na Ásia.” É
pouco, mas é significativo, entende o professor.
Na Europa,
o ano será marcado pela saída do Reino Unido da UE. “Em 19 de janeiro, a Câmara
dos Comuns vota o acordo. O problema foi o primeiro-ministro David Cameron ter
convocado o plebiscito de 23 de junho de 2016. O eleitorado se manifestou
livremente. Um novo plebiscito seria um tremendo desprestígio.”
Desde o
Tratado de Roma, de 1957 a Comunidade Econômica Europeia passou de 6 para 28 países
e virou UE. “Pela primeira vez, um país sai. O modelo entrou em crise. Hungria,
Polônia, República Tcheca e Itália contestam a integração europeia. Há um
renascimento do nacionalismo europeu, uma reação contra a federalização da
Europa.”
O eixo
central, franco-alemão, está enfraquecido pela saída da primeira-ministra
Angela Merkel e a crise do governo Emmanuel Macron, acrescentou: “A saída do
Reino Unido é a saída de um peso-pesado, mais de 10% da população. A tradição
francesa é fazer revolução. A mobilização, inicialmente da população branca do
interior, da zona rural, levou a um desprestígio muito grande do presidente
Macron”, reduzindo a chance de reforma da Europa.
“A imigração
é uma questão fundamental. A Europa não pode aceitar um número muito grande de
migrantes da África e do Oriente Médio. Todo ano 7 a 8 milhões entram no
mercado de trabalho e a África gera 1 milhão de empregos por ano. Onde este
pessoal vai trabalhar?”, perguntou Wrobel.
“A África é
o último continente onde o crescimento demográfico ainda é grande. Os países só
crescem muito com uma população jovem. É grande celeiro de recursos naturais. Mas,
em curto prazo, a tendência é de saída de jovens da África”, assinalou o
professor.
Da mesma
forma, a imigração da América Central e do México virou um tema central da política
nos EUA: “A população de latinos chega a 50 milhões. Trump quer um fechamento,
mas não é novidade. A primeira restrição à imigração nos EUA foi com a China
ainda no século 19, com a corrida do ouro na Califórnia e a construção de
estradas de ferro no Oeste, Depois, houve restrições à imigração de judeus do
Império Russo.”
Com a maioria
da oposição democrata na Câmara dos Representes, “o clima vai esquentar em Washington.
Há uma tradição de vitória da oposição nas eleições intermediárias. Aumenta a
turbulência no processo legislativo americano. Agora, há um fechamento do
governo. A polarização vem desde o governo Bill Clinton (1993-2001). O fim da
Guerra Fria acabou com o consenso político americano”, sublinhou Wrobel.
“O Partido
Democrata foi para a esquerda com o governo Barack Obama (2009-17) e o Partido
Republicano foi para a direita com Trump”, aprofundando a divisão.
No Brasil,
não é muito diferente, diagnosticou o professor do IRI-PUC: “Também temos um
sistema político muito polarizado. Houve uma alteração profunda na correlação
de forças, com uma derrota fragorosa da esquerda.”
A direita já
havia chegado ao poder pelo voto com Fernando Collor de Mello, na primeira eleição
presidencial depois da ditadura militar, em 1989: “Collor, um conservador, promoveu
uma abertura comercial, mas teve erros crassos de política econômica como o
confisco da poupança e a política anti-inflação”, avaliou.
“Agora, há
um projeto liberal clássico de política econômica, uma tentativa de tirar o
peso do Estado da vida econômica e uma inserção competitiva da economia
brasileira. Reduzir o papel do Estado. De outro lado, tentar reinserir o
Brasil. Do Grupo dos 20, das maiores economias do mundo, é o país mais fechado.
Nossa economia é altamente protegida.
Wrobel
espera “uma grande reação dos grandes cartéis representados nas federações das
indústrias. Precisamos de um choque de capitalismo, de um capitalismo popular,
menos corporativo”, defendeu. “O número de funcionários públicos dobrou sob o
PT, de 6 para 12 milhões. Uma revolução macroeconômica e uma revolução microeconômica
podem alavancar o crescimento nacional.”
O professor
minimiza o peso do discurso marcado pelo cristianismo do futuro ministro das
Relações Exteriores, Ernesto Araújo: “A retórica de política externa é uma
coisa. Eu meço pelo resultado. O resultado da política externa do PT foi pífio.
Apostamos na Rodada de Doha, não fizemos nenhum acordo comercial relevante.”
A
hostilidade ao regime comunista chinês pode ver vencida pelo pragmatismo; “Ernesto
Araújo criou uma divisão do agronegócio. Não vejo racionalidade em combater a
China, mas a exportação concentrada em commodities não basta. Podemos ficar 5
mil anos exportando soja, minério de ferro e petróleo para a China que não
vamos enriquecer.”
“Aliança
cristã é exercício de retórica. O que vimos no encontro do presidente eleito,
Jair Bolsonaro, com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tem a
ver com uma aliança com os EUA e também como uma forma de se diferenciar dos
governos petistas”, de marcar posição.
“A China
critica Israel, mas tem uma forte aliança”, na opinião de Wrobel. Quanto às
relações Brasil-Israel, “vejo a cooperação agrícola e dessalinização para
combater a seca no Nordeste. A retórica é livre. Tem de ver os resultados
práticos. Há ainda a crítica ao Mercosul, a proposta de aliança com o Chile e
um endurecimento com Cuba, Venezuela e Nicarágua.”
No próximo
ano, haverá eleições em países importantes com grandes populações, a Índia, a
maior democracia do mundo, a Indonésia, que tem a quarta maior população
mundial e a Nigéria, que tem a maior população da África, devendo chegar a 200
milhões de habitantes.
Existe, de acordo
com o professor, “uma Inevitável frustração com a democracia em países como a
Índia diante das expectativas. A democracia funciona na Índia desde a independência
do Império Britânico, em 1947. O crescimento de 7% a 8% ao ano ainda é
insuficiente para superar o atraso. A grande crise da democracia está na
incapacidade de prover serviços de qualidade para levar os pobres à classe
média. Nunca, na história da humanidade, tantos viveram tão bem.”
Em parte,
isso se deve ao desenvolvimento da ciência e da medicina: “A expectativa de
vida em 1900 era de 40, 50 anos. Hoje, está chegando em 75 anos. A expectativa
de vida continua crescendo todo ano. Mesmo na África, já passou de 70 anos.”
Na América
Latina, houve eleições em 2018 nos dois maiores países em economia e população,
Brasil e México, além da Colômbia.
“O México é
um país fundamental na América Latina. Tem um tremendo desafio que é a questão
da violência. Os cartéis do tráfico de drogas muito mais ricos e poderoso do
que no Brasil. Há o risco de virar um narcoestado como na Colômbia. O novo
presidente, Andrés Manuel López Obrador prometeu grande mudança”, continuou o
professor. Terá de equilibrar esquerdismo e pragmatismo.
A Colômbia
elegeu um presidente jovem, Iván Duque, ligado ao ex-presidente Álvaro Uribe.
Apesar do acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
(FARC), o tráfico de drogas não diminuiu: “A Colômbia supre 90% do mercado de
cocaína dos EUA, maior consumidor mundial. O Brasil é o segundo maior
consumidor.”
Em 2019,
haverá eleições na Argentina, no Uruguai e na Bolívia.
“A
Argentina é um caso talvez único de um país que tenta, mas não consegue
deslanchar. Precisa de uma moeda. Qualquer bico que façam, imediatamente, os
argentinos compram dólares. Talvez a saída seja dolarizar, como fizeram Panamá,
Equador e El Salvador. Bem ou mal, o Brasil encontrou um certo rumo”, observou
o entrevistado.
Eleito em
2013 com uma plataforma reformista, o presidente Mauricio Macri enfrenta uma
crise cambial, com desvalorização de 50% do peso, inflação e recessão. Terá
dificuldade para se reeleger: “Enquanto não resolver a questão monetária, é
difícil. Enquanto não superar o fantasma do peronismo, não avança.”
A Bolívia
cresceu muito sob Evo Morales, que atropelou a Constituição com o aval do Poder
Judiciário e busca um quarto mandato. “É um indígena. Representa a maior parte
da população e tem uma certa legitimidade vinda do crescimento econômico.”
Outra marca
de 2018 foi a perda de prestígio e até um certo repúdio às grandes empresas da
Internet, que se tornaram superpoderosas: “Qualquer setor que cresce muito e se
transforma nas maiores empresas do mundo acaba sendo objeto de regulamentação. Foi
assim com o petróleo. John Davidson Rockefeller fez fortuna com o monopólio. Com
a Lei Sherman, da Standard Oil, foram criadas 32 empresas.”
O choque do
futuro hoje é o impacto da revolução tecnológica sobre o mercado de trabalho,
conclui Paulo Wrobel. “O grande dilema da humanidade é o emprego. A
inteligência artificial vai reduzir o emprego. Todos querem uma vida de classe
média. Para isso, precisam de emprego. Os países ricos podem se dar ao luxo de
ter políticas de renda mínima”, o chamado imposto de renda negativo.
É característica
do futuro ser incerto e perigoso.
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