Numa tentativa de relançar seu governo, o presidente Donald Trump dedicou nesta noite o Discurso sobre o Estado da União, de uma hora e vinte minutos, a um apelo à conciliação e à união nacional dos Estados Unidos, mas exigiu em troca o fim de "inquéritos partidários ridículos".
"Sra. Presidente, nos reunimos nesta noite num momento de potencial ilimitado. Com um novo Congresso, estou disposto a trabalhar com vocês para obter avanços históricos para todos os americanos. Milhões de pessoas nos assistem esperando que nós, reunidos nesta grande Câmara, governemos não como dois partidos, mas como uma nação", afirmou o presidente, citado pelo jornal The Washington Post.
"O programa que vou apresentar aqui hoje não é republicano nem democrata. É um programa para o povo americano. Muitos nós fizeram campanha com as mesmas propostas básicas: defender empregos americanos e um comércio justo para os trabalhadores americanos; reconstruir a revitalizar a infraestrutura da nação; reduzir o preço da saúde e dos medicamentos; criar um sistema de imigração seguro, legal e moderno; e seguir uma política externa que ponha em primeiro lugar os interesses dos EUA."
Trump começou elogiando a participação americana na Primeira Guerra Mundial e na Segunda Guerra Mundial. Em 6 de junho, os aliados celebram 75 anos da invasão da Normandia, em 1944. Cerca de 15 mil paraquedistas americanos desceram do céu e 60 mil participaram do assalto anfíbio às praias da França.
Três veteranos da última grande guerra estavam na Câmara dos Representantes. Trump lembrou ainda os 50 anos da chegada do homem à Lua, celebrados neste ano, e homenageou o astronauta Edward Aldrin, que estava no plenário.
"No século 20, os americanos salvaram a liberdade, desenvolveram a ciência e redefiniram o padrão de vida da classe média. Não há ninguém no mundo que possa competir com os EUA. Agora, precisamos levar adiante esta grande aventura americana, criando o padrão de vida para o século 21, uma qualidade de vida surpreendente para nossos cidadãos está ao alcance", acrescentou o presidente.
"Mas precisamos rejeitar a política de vingança, resistência e retaliação, e abraçar o potencial sem limites da cooperação e do acordo pelo bem comum", disse Trump, sob aplausos.
"Juntos, podemos romper décadas de impasse, superar antigas divisões, curar antigas feridas, criar novas coalizões, forjar novas soluções e destravar a promessa do futuro dos EUA. Temos de escolher entre grandeza ou impasse, resultados ou resistência, visão ou vingança, um progresso incrível ou uma destruição sem sentido. Hoje à noite, peço a vocês, escolham a grandeza."
Nos últimos dois anos, afirmou, "meu governo atacou problemas negligenciados há décadas pelos dois partidos. Em dois anos desde a eleição, lançamos uma prosperidade econômica sem precedentes, uma prosperidade raramente vista antes. Criamos 5,3 milhões de novos empregos e 600 mil novos empregos na indústria, o que quase todo o mundo considerava impossível."
A recuperação da indústria foi uma promessa de campanha importante: "Os salários estão crescendo. Pelo menos 5 milhões de americanos pararam de receber auxílio-alimentação. Somos, de longe, a economia mais aquecida do mundo."
Em seguida, reivindicou este sucesso como obra sua, ignorando que a economia e o mercado de trabalho crescem sem parar desde o governo Barack Obama: "O desemprego é o menor em meio século. As taxas de desemprego entre negros e latinos são as menores da história. A quantidade de pessoas empregadas é a maior da história do país: 157 milhões."
O presidente atacou o programa de cobertura universal de saúde de Obama, uma atitude que prejudicou o Partido Republicano nas eleições de novembro. Invocou a glória pelo fato dos EUA serem hoje o maior produtor mundial de petróleo. Tem mais a ver com a extração de óleo de xisto betuminoso, que começou muito antes de seu governo, do que com suas políticas a favor das velhas indústrias poluentes de carvão e petróleo, ignorando os riscos do aquecimento global.
"Os EUA agora estão ganhando todos os dias. Congressistas, o Estado da União é forte. A economia está como nunca antes. Só no mês passado, criamos mais de 300 mil empregos, quase o dobro do esperado", festejou Trump.
Mas seu objetivo maior pode ser se livrar dos inquéritos que cercam seu governo e seus negócios: "Um milagre econômico está acontecendo nos EUA e só pode ser interrompido por guerras tolas, política e inquéritos partidários ridículos. Se vai haver paz e cooperação, não pode haver guerra e investigação. Não é assim que funciona. Temos de nos unir em casa para derrotar nossos inimigos no exterior", declarou o presidente, sugerindo que a reconciliação na verdade é uma maneira de escapar das investigações em preparação pela maioria do Partido Democrata na Câmara.
Trump defendeu união de partidos para reformar o legislação penal. Apresentou dois ex-apenados e passou à defesa do muro que prometeu erguer na fronteira do México, sob o olhar cético e crítico da presidente da Câmara, deputada Nancy Pelosi, sentada atrás dele.
"Enquanto falamos, caravanas grandes e organizadas marcham para os EUA. Ouvimos dizer que cidades mexicanas, para remover os imigrantes ilegais de suas comunidades, estão usando ônibus e caminhões para trazê-los para áreas da fronteira com pouca proteção. Ordenei que mais 3.750 soldados vão para a fronteira sul para conter o assalto."
"Esta é uma questão moral. O estado sem lei de nossa fronteira sul é uma ameaça à segurança e ao bem-estar financeiro de todos os americanos. Temos a obrigação moral de criar um sistema de imigração que proteja as vidas e os empregos dos americanos. Isto inclui nossas obrigações com os milhões de imigrantes que vivem aqui hoje, seguem as regras e respeitam as nossas leis. A imigração legal enriquece a nação e fortalece a sociedade de muitas maneiras. Quero que venham muitos imigrantes. Mas eles têm de vir legalmente."
Nancy Pelosi aperta a boca no fundo da cena. Só a metade republicana do plenário aplaude. "Nada divide mais a classe política hoje da classe trabalhadora do que a imigração ilegal. A imigração ilegal reduz empregos e salários, sobrecarrega escolas e hospitais, aumenta a criminalidade e abala a rede de proteção social."
Uma em cada três mulheres é violentada na marcha para o Norte. Traficantes usam crianças para se aproveitar de nossas leis. Traficantes humanos e sexuais trazem milhares de mulher para escravizar e prostituir. Dezenas de milhares de americanos morreu por causa de drogas que entram pela fronteira. A gangue selvagem [salvadorenha] MS-13 age agora em 20 estados. Ontem, um cara da MS-13 foi preso por uma morte na plataforma do metrô em Nova York."
Nunca diz que esses números das gangues de El Salvador são das ruas onde as gangues surgiram, em Los Angeles, onde os refugiados da Guerra Civil Salvadorenha (1980-92) tiveram de enfrentar a violência. Com o acordo de paz, muitos foram deportados.
Para reforçar sua versão, Trump convidou parentes de pessoas assassinadas por imigrantes ilegais. "Eu nunca vou me esquecer. Vou lutar para que nunca mais aconteça. Vidas se perdem porque não cuidamos da nossa fronteira perigosa." Levou ainda um agente da polícia de imigração e aduanas, que pretende reforçar.
Estupefata, a presidente da Câmara parece estar conferindo o texto distribuído pela Casa Branca para ver até onde vai a propaganda a favor do muro. A reconciliação de Trump se limitou aos minutos iniciais e ao desejo de acabar com as investigações.
"Meu governo enviou ao Congresso uma proposta ampla e de senso comum para resolver a crise na fronteira sul, Inclui ajuda humanitária, mais policiamento, tecnologia de detecção de drogas e a vigilância eletrônica e planos para uma barreira física, um muro, para proteger grandes áreas entre nossos postos de fronteira. No passado, muita gente aqui votou a favor do muro, mas ele nunca foi erguido. Eu vou construí-lo."
Ao conjeturar sobre a natureza do muro, observou que "vai ser uma barreira de aço estratégica e inteligente - e não apenas um muro de concreto. Será erguido nas regiões onde os agentes considerarem maior a necessidade e, como dizem esses agentes, onde ergue-se um muro as entradas ilegais caem."
"São Diego tinha a fronteira com maior número de entradas ilegais. A pedido dos moradores e líderes políticos, foi construído um muro. A barreira praticamente acabou com a imigração ilegal. El Paso era uma das cidades mais violentas do país. Hoje, com uma barreira poderosa, é uma de nossas cidades mais seguras. Muros funcionam e muros salvam vidas", arrematou.
Falso. A queda da criminalidade em El Paso foi anterior à construção do muro. A violência aumentou levemente depois do muro.
Atrás, Nancy Pelosi está visivelmente contrariada. Olha para o infinito, em diagonal, e aperta a boca.
"Ninguém se beneficiou mais da nossa economia vibrante do que as mulheres, que ocuparam 58% dos postos de trabalho criados no ano passado. Todos os americanos podem se orgulhar de termos mais mulheres do que nunca na força de trabalho", celebrou.
"Exatamente cem anos depois que o Congresso aprovou a emenda constitucional dando à mulher o direito de votar, temos a maior bancada feminina da história do Congresso." Nancy Pelosi se levanta e pede com gesto a todas as mulheres que se regozijem. Muitas novas deputadas entraram na política justamente para combater Trump.
Com o argumento de proteger empregos nos EUA, o presidente defendeu sua guerra comercial com a China, sobretaxando US$ 250 bilhões em importações anuais. Ele culpou os governos anteriores pelas supostas práticas comerciais desleais dos parceiros e concorrentes, e atacou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), embora tenha negociado um acordo com poucas mudanças.
Trump pediu ao Congresso que aprove o novo Nafta e a Lei de Reciprocidade no Comércio: "Se algum país aumentar tarifas no comércio com os EUA, automaticamente vamos aplicar a mesma tarifa."
Construir a infraestrutura do século 21 é uma obrigação, disse Trump, assim como reduzir o preço dos medicamentos, dois temas de interesse do Partido Democrata que o presidente usa para forjar a cooperação bipartidária.
"A próxima grande prioridade para mim é reduzir o custo da assistência médica e dos medicamentos. Precisamos exigir de companhias farmacêuticas, empresas de seguro-saúde e hospitais que mostrem seus custos reais para incentivar a concorrência e reduzir os preços", prometeu Trump. "Temos de erradicar o HIV e a aids nos EUA em dez anos."
Outro tema de interesse geral foi o apelo a todos os americanos para que lutem contra o câncer infantil. A personagem foi Grace Eline, uma menina sentada ao lado da primeira-dama Melania Trump que teve câncer no cérebro e ajudou a arrecadar US$ 40 mil para o tratamento de outras crianças.
"Tenho o orgulho de ser o presidente que botou no orçamento a licença-maternidade e licença paternidade para que todo novo pai ou mãe tenha um tempo para se relacionar a seu bebê" e "proponho ao Congresso que aprove lei proibindo abortos em estágio avançado da gravidez, quando o feto possa sentir dor. Vamos legislar para proteger vidas inocentes. Todas as crianças, nascidas ou não, foram criadas sob Deus."
É um ataque ao direito ao aborto. Cai bem com a direita religiosa. Será repudiado pelas feministas.
Da defesa da vida, Trump foi para a segurança nacional, orgulhando-se de seu orçamento militar superior a US$ 700 bilhões e do aumento de gastos militares dos aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Trump defendeu o abandono do Tratado sobre Forças Nucleares Intermediárias. Mais uma vez, acusou a Rússia de violar os termos do acordo. "Talvez a gente possa negociar um novo acordo incluindo a China. Talvez, não. Então, vamos inovar e superar todos os outros."
"Se eu não tivesse sido eleito presidente dos EUA, na minha opinião, estaríamos agora num grande guerra com a Coreia do Norte", delirou o presidente em sua megalomania, anunciando que vai se encontrar com o ditador Kim Jong Un no Vietnã em 27 e 28 de fevereiro.
Também citou o reconhecimento do presidente interino Juan Guaidó na Venezuela e aproveitou a deixa para atacar a ala mais radical do Partido Democrata, onde a deputada nova-iorquina Alexandria Ocasio Cortez se declara socialista.
"Os EUA nunca serão um país socialista", proclamou Trump, sob aplauso da bancada republicana.
No Oriente Médio, citou a transferência da embaixada americana em Israel de Telavive para Jerusalém. "Os EUA estão em guerras no Oriente Médio há 19 anos. Grandes nações não lutam guerras sem fim. Quando tomei o governo, o Estado Islâmico dominava mais de 20 mil milhas quadradas (70 mil km2) no Iraque e na Síria. Hoje, liberamos quase todo o território destes sedentos de sangue. Está na hora de trazer nossas tropas de volta para casa."
Ele defendeu as negociações com a milícia dos Talebã "para reduzir nossa presença e nos concentrarmos em antiterrorismo. Depois de duas décadas de guerra, é hora de pelo menos tentar a paz. Mas nossos inimigos não devem duvidar da nossa determinação." No mês passado, lembrou, um comando americano matou um dos terroristas que atacaram o navio de guerra americano USS Cole em 2000.
O próximo alvo foi o Irã: "Para garantir que esta ditadura corrupta jamais tenha armas nucleares, impusemos o regime de sanções mais duro. Não podemos ignorar um regime que canta morte aos EUA e ameaça o povo judeu de genocídio. Precisamos confrontar este ódio onde quer que esteja."
Ao lembrar o ataque a tiros contra uma sinagoga em Pittsburgh, na Pensilvânia, Trump chamou um dos policiais que enfrentaram o atirador. Havia na sinagoga um sobrevivente do Holocausto. Judah estava lá hoje no Congresso dos EUA, festejando 81 anos.
Outro sobrevivente do Holocausto estava estava em Dachau quando o campo de concentração foi tomado por soldados dos EUA. Na Câmara, ele sentou ao lado de um de seus libertadores, um veterano da tomada de Dachau.
"Tudo o que veio depois disso, nosso triunfo sobre o comunismo, os gigantescos saltos da ciência e um progresso sem igual rumo à igualdade e à justiça, só foi possível graças ao suor, à coragem, à bravura e ao sangue dos americanos que vieram antes", exaltou Trump.
"Fazemos o incrível, definimos o impossível, conquistamos o desconhecido. Este é o momento de ir mais alto, como vizinhos e patriotas. Este é o nosso futuro, Peço a vocês que escolham a grandeza. Temos de ir em frente juntos. Colocar os EUA em primeiro lugar em nossos corações. Temos de manter sempre a liberdade viva em nossas almas. Temos sempre de ter fé no futuro dos EUA. A nação unida sob Deus é uma promessa de glória."
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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