terça-feira, 21 de agosto de 2018

Sonho de democratização do comunismo morreu há 50 anos em Praga

Na madrugada de 20 para 21 de agosto de 1968, uma força com 200 mil homens e 2 mil tanques do Pacto de Varsóvia, com soldados da União Soviética, Alemanha Oriental, Bulgária, Hungria e Polônia) invadiu a Tcheco-Eslováquia e acabou com a Primavera de Praga, uma tentativa frustrada de democratizar e humanizar o regime comunista.

A partir de 1966, surgiu um movimento por reformas democráticas fortalecido pela crise econômica de 1967 e pela nomeação, em 5 de janeiro de 1968, do eslovaco Alexander Dubcek para líder do Partido Comunista tcheco-eslovaco, em substituição ao stalinista Antonin Novotny.

Assim era o jogo pesado sob o comunismo soviético. Para mudar qualquer coisa, eram necessárias uma crise econômica, a mobilização das forças sociais e uma fissura na cúpula do regime.

No congresso da União dos Escritores, de 27 a 29 de julho de 1967, Pavel Kohout, leu uma carta aberta do escritor soviético Alexander Soljanitsin denunciando a censura em seu país. O jovem autor Ludvik Vaculik falou numa "doença do poder" na Tcheco-Eslováquia, sua tendência a se perpetuar, de moldar tudo ao redor e se colocar acima da sociedade: "Nenhum problema humano foi resolvido em nosso país."

Novotny reagiu em 1º de setembro: "Não é mais possível tolerar a difusão de opiniões e ideologia hostis ao socialismo e estranhas ao Partido Comunista." Os escritores Vaculik e Ivan Klima foram expulsos do partido.

Em 31 de outubro de 1967, quando a cúpula do PC estava reunida em reunião plenária, estudantes enfrentaram a polícia quando tentavam marchar até o Castelo de Praga. Pela primeira vez na Tcheco-Eslováquia, jovens nascidos, criados e educados sob o regime comunista desafiavam seu poder absoluto, gritavam lemas contra o socialismo e eram espancados pela polícia.

Sem se intimidar, os estudantes convocaram assembleias para discutir os problemas sociais, o papel dos estudantes, a proteção dos cidadãos diante da polícia e o papel social da polícia. Em resolução encaminhada ao Ministério da Educação, eles pedem abertura de inquérito sobre a violência policial com a participação de estudantes, número de matrícula visível de policiais e proibição do uso de gás lacrimogênio.

Novotny foi a Moscou e convidou o secretário-geral do PC soviético, Leonid Brejnev, a ir a Praga. Ele chegou em 8 de dezembro e partiu no dia 11 sem partido no que lhe pareceu uma disputa menor e interna do PC tcheco-eslovaco.

Seus partidários o defenderam até o último momento, alegando que sua saída poderia deflagrar movimentos como os de 1956 na Hungria e na Polônia. Dois candidatos disputavam a sucessão de Novotny em 5 de janeiro de 1968: Oldrich Cernik, apoiado pelos reformistas, e Josef Lenart, candidato da velha guarda.

Diante do impasse, Lenart sugeriu Dubcek (pronuncia-se Dubchék) como um nome de conciliação, um aparatchik até então apagado, educado na URSS. O próprio Novotny, que meses antes o chamada de "nacionalista burguês eslovaco", quase uma sentença de morte política, propôs seu nome, aprovado por unanimidade.

Mais de 60 mil aparatchik, sentido-se ameaçados por um expurgo, estão prontos a acusar o novo Comitê Central de liberar forças capazes de sair fora de controle, como estudantes e intelectuais.

O novo governo começou com prudência. Dubcek foi a Moscou. Não houve declarações nem discursos nem medidas especiais. Oito comissões foram formadas para preparar o novo programa de ação do partido, com foco em reformas econômicas e na federalização para resolver o problema da Eslováquia.

Técnicos, intelectuais e especialistas de fora do partido foram chamados a opinar. Os escritores expulsos do partido receberam seus passaportes de volta.

Coube a Josef Smrkovsky, que havia sido preso em 1951 e reabilitado em 1963, romper o silêncio, em 21 de janeiro de 1968: "A última sessão do Comitê Central não parecia em nada com as precedentes, em particular porque os membros do Comitê Central exerceram plenamente - e pode-se mesmo dizer espontaneamente - suas responsabilidades e prerrogativas, exprimindo a vontade da massa de seus membros, a vontade do partido. Definiu-se de maneira firme como e por que era necessário democratizar a vida do partido, e como teremos de trabalhar para restaurar a confiança do povo no partido e no Estado."

Entre as tarefas urgentes que citou, estavam "desembaraçar o partido e o aparelho de Estado dos maus hábitos burocráticos e das sequelas do passado", "regularizar as relações entre a classe operária e os intelectuais, nossas relações com os estudantes e com a juventude em geral, com os artistas e escritores" e "descobrir as causas do desinteresse do povo pelos negócios públicos.

Dias depois, o jurista Zdenek Mlynar, no passado um repressor de intelectuais, entrou na discussão; "A questão essencial hoje para nossa sociedade, o Estado e o partido não é melhorar o sistema político existente, mas assegurar uma transformação qualitativa" e "dar a solução correta às relações entre o partido, o Estado e as outras organizações sociais".

"Devem ser dadas garantias de que a obrigação de executar a decisão da maioria não signifique a opressão, a eliminação da minoria, até sua liquidação enquanto sujeito de ação política", acrescentou Mlynar, pedindo o fim do "sistema que concentra todos os órgãos de segurança num único aparelho", "tribunais independentes subordinados à lei", igualdade de direitos, liberdade de expressão e liberdade de imprensa.

A linha-dura denunciava os reformistas como "burgueses socialistas" e "grupo reacionário". Ligada ao aparato repressiva, temia que seus crimes viessem à luz. A liberalização da imprensa facilita os ataques.

Com um discurso otimista, Dubcek vai à televisão e à praça pública para defender a política de modernização. Novotny, agora presidente, atacou em discurso para operários em 17 de fevereiro, criticando a reforma econômica de Ota Sik pelo risco de "comprometer os benefícios sociais dos trabalhadores, a segurança do emprego, querer instituir um sistema onde o diretor, os altos quadros e os intelectuais seriam privilegiados em detrimento da massa de trabalhadores."

Um "grupo de operários" envia carta aos jornais apoiando o presidente. A Rádio Praga vai conferir e revela que os "operários" são funcionários e burocratas do partido, enquanto os verdadeiros trabalhadores apoiam as reformas. Um segredo de Estado do regime é desmascarado publicamente: a Rádio Praga conta como é feita a censura aos meios de comunicação.

O vice-ministro da Justiça declarou que a censura contraria o Art. 28 da Constituição. A imprensa aproveitou para explorar livremente todos os assuntos, inclusive os aspectos formais da democracia: denunciou as eleições fictícias por unanimidade do período stalinista, exigiu a reabilitação das vítimas da repressão e a punição dos responsáveis, e publicou textos censurados, inclusive de Karl Marx contra a censura.

Em 25 de fevereiro, o general Jan Sejna, aliado de Novotny que articulara um golpe militar em dezembro de 1967, um fanfarrão, prevaricador, conspirador e amigo íntimo do filho do presidente fugiu do país com a amante e pediu asilo nos Estados Unidos.

A notícia da tentativa de golpe deflagrou novos protestos e pedidos de investigação, aumentando pressão para "o afastamento de certos funcionários [inclusive o presidente] como garantia de que o desenvolvimento da democracia socialista será durável e não terá de ceder ao retrocesso."

Os estudantes da Faculdade de Filosofia reclamam em carta aberta aos operários de quem os acusa de "querer restaurar o capitalismo na Tcheco-Eslováquia, quer dizer, o desemprego, a fome e a pobreza", dizendo que são "aqueles que procuram separar os estudantes dos operários". Os verdadeiros inimigos eram "os parasitas, os burocratas do partido".

Uma declaração oficial de 14 de março defendeu a opção pela democracia: "Trata-se da liquidação definitiva das deformações que ameaçaram o desenvolvimento sadio da democracia socialista. Queremos criar uma sociedade socialista democrática, evoluída, que permita expandir a força criativa do povo."

Dubcek definiu em 16 de março a via decidida pelo partido, antecipando o conteúdo do programa de ação: funcionamento autônomo do partido, do Estado e do governo, proibir a acumulação, reforma econômica, manter a aliança com a URSS e a coexistência pacífica com o Ocidente na Guerra Fria.

Ao chegar a Praga em 19 de março, o escritor Pierre Daix observa: "Há centenas e centenas de assembleias em todos o país, nos ministérios, nas fábricas, nas cooperativas e nos sindicatos, assembleias que não só discutem a situação, mas pedem soluções, satisfações e interpelam os responsáveis, ministros, funcionários do partidos e o presidente."

A Primavera de Praga ganha uma dimensão internacional. Na Polônia, desde março, o líder comunista Wladislaw Gomulka enfrenta greves e manifestações. Os ataques contra Novotny atingiam o líder stalinista da Alemanha Oriental, Walter Ulbricht.

Dubcek foi a uma reunião de partidos comunistas do Bloco Soviético em Dresden, na Alemanha Oriental, em 22 de março, e declarou na volta: "Nossos amigos desejam o sucesso da nossa obra. Informamos do processo de renascimento, dos preparativos da próxima plenária do Comitê Central e do nosso programa. (...) É natural que nossos amigos tenham se inquietado com o perigo de ver elementos antissocialistas tirar partido do processo de democratização."

Em 23 de março, Novotny apresenta sua carta de demissão.

Através da União dos Jovens Trabalhadores, fundada em 24 de março, a agitação passou das universidades para as fábricas. A base exige a volta dos sindicatos à sua missão principal: defender os interesses dos trabalhadores. Os sindicatos deixariam de ser correios de transmissão do partido e do Estado.

A massa de filiados ao partido, até então reticente, aproveitou o momento democrático para varrer as direções partidárias anteriores. Para a velha guarda stalinista, o acordo de janeiro estava sendo violado.

Enquanto Smrkovsky defendia um expurgo, Dubcek continuava reticente. Em encontro com estudantes, declarou: "Não importa quem ocupa tal posto, mas qual a política que vamos fazer."

 As eleições municipais previstas para 19 de maio foram adiadas em 25 de março com a seguinte justificativa expressa no jornal oficial Rude Pravo: "O procedimento atual é incompatível com o processo de democratização socialista."

No dia seguinte, trazia novas indicações sobre o espírito do programa de ação: "A liberdade é o elemento básico que toda democracia deve permitir a seus cidadãos. O socialismo pode criar uma sociedade mais perfeita." Serviria de modelo até para o Ocidente.

Quando o Comitê Central volta a se reunir, em 28 de março, o jornal Pravda, órgão oficial do PC da URSS, ainda apoiava Dubcek: "O Partido Comunista da tcheco-eslovaco realiza um grande trabalho baseado nas decisões de janeiro tendo por objetivo...a construção de uma sociedade socialista desenvolvida na Tcheco-Eslováquia."

Nesta reunião, Smrnovsky, comunista histórico, herói da resistência antinazista na Segunda Guerra Mundial, vítima reabilitada do terror stalinista, foi eleito novo presidente. Era um símbolo da mudança.

Em 5 de abril, nova plenária lança o programa de ação da Primavera de Praga. Nos seus discursos, Dubcek reafirma o compromisso claro com a democratização: "Mantemos a linha geral da edificação socialista, mas buscamos engrandecer seu desenvolvimento pela libertação e pleno desenvolvimento do ser humano."

O controle do partido não estava em questão: "Temos confiança na força do partido, na maturidade política dos trabalhadores, operários e agricultores, em nossa juventude. É sobre essa confiança que o partido pretende fundamentar sua ação. O partido e o Comitê Central continuarão à frente do processo de democratização e de renascimento, se bem que certas manifestações tenham aparentemente escapado de seu controle. Não é que as tenhamos ignorado, mas tínhamos tantos problemas a resolver que não demos a elas importância maior."

Em junho, Ludvi Vaculik publicou o manifesto Duas Mil Palavras, assinado por centenas de ativistas e intelectuais pedindo a Dubcek que acelerasse o processo de democratização. Mas o comunismo soviético não tolerou nenhuma tentativa de abertura democrática e desmoronou quando Mikhail Gorbachev tentou reformar a própria URSS.

Semanas antes da invasão, em 31 de julho, o líder operário Jiri Hochman, que se tornaria jornalista, escreveu no jornal Reporter: "Estamos nos aproximando da destruição do poder desta casta (a burocracia), agora quase hereditária, que está presa através de mil elos de corrupção e de interesses mútuos a seus equivalentes no exterior.

"Essa é a extensão do nosso pecado. Não colocamos o socialismo em perigo. Muito pelo contrário. O que pomos em perigo é a burocracia que, lenta, mas decididamente, está enterrando o socialismo em escala mundial."

Em 1970, perseguido, pobre, doente e ameaçado de prisão, Hochman não se entregou: "Estamos lidando com uma casta parasitária, compradora e burocrática, covarde e incapaz, brutal, mentirosa, antinacional, antissocialista e contrarrevolucionária."

Quando os tanques do Pacto de Varsóvia invadiram, Dubcek apelou à população para não resistir. Pelo 72 tcheco-eslocavos foram mortos, sendo 19 na Eslovênia. A liberdade só viria em 1989.

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