A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alertou o governo interino da Bolívia de que o Decreto Supremo 4.078, que exime de responsabilidade penal os militares que participam da repressão às manifestações de protesto, viola os padrões internacionais de proteção aos direitos humanos, noticiou o jornal boliviano Página Siete.
"O pessoal das Forças Armadas que participar de operações para o restabelecimento da ordem interna e a estabilidade pública está isento de responsabilidade penal quando, no cumprimento de suas funções constitucionais, atue em legitima defesa ou estado de necessidade e proporcionalmente", diz o decreto.
A CIDH também condenou "o uso desproporcional da força policial e militar" e recomendou que "as armas de fogo devem ser eliminadas das operações de controle dos protestos sociais."
O ministro da Defesa, Fernando López, reconheceu que o documento existe: "Tivemos indícios muito sérios de estrangeiros armados no país. E há grupos armados com armas de grosso calibre. Então, isso geraria ações que nos permitam cumprir nossa missão, nada mais." Não apresentou provas de suas alegações.
López acrescentou que o objetivo do governo é "caminhar em direção ao diálogo, à paz e à fé em Deus." O fundamentalismo cristão faz parte de ideologia dos grupos de extrema direita responsáveis por atos de violência antes da renúncia do presidente Evo Morales, no domingo passado.
Embora a Bolívia seja oficialmente um país laico, a vice-presidente do Senado, Jeanine Ánez, levou uma Bíblia e um crucifixo para a cerimônia em que tomou posse como presidente interina do país, depois da renúncia do presidente, do vice, e dos presidentes e vice-presidentes da Câmara e do Senado, todos membros do Movimento ao Socialismo (MaS), partido de Morales.
Esta manobra acabou entregando o poder não ao ex-presidente Carlos Mesa, que seria favorito no segundo turno, mas ao setor mais radical da oposição, branco, racista e fundamentalista cristão. Áñez
nega ter qualquer antepassado indígena. Ela afirma ter 100% de origem europeia. Suas feições sugerem o contrário.
A Bolívia enfrenta sua pior crise política em 14 anos desde que a oposição rejeitou, em 21 de outubro, a proclamação da vitória de Morales no primeiro turno da eleição presidencial do dia anterior. A apuração foi interrompida duas vezes quando tudo indicava que haveria um segundo turno entre Morales e Mesa.
No poder desde 2006, Morales, como fiel discípulo de Fidel Castro e Hugo Chávez, não tinha a menor intenção de entregar o poder. Por força da Constituição aprovada por sua iniciativa, não poderia concorrer a um terceiro mandato, mas alegou, em 2014, que sua primeira eleição, em 2005, fora sob a Constituição anterior.
Em 2016, Evo Morales perdeu um plebiscito para acabar com limites à reeleição. Mesmo assim, recorreu ao Tribunal Constitucional alegando, com base em decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos em outro caso, que ser candidato é um direito humano fundamental.
Como dificilmente venceria no segundo turno, quanto toda a oposição se uniria ao redor de Mesa, Morales fraudou a eleição e gritou golpe quando a população revoltada saiu às ruas. Depois de se negar a fazer qualquer concessão, em 30 de outubro, Morales aceitou uma auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A missão da OEA suspeitou desde a mudança abrupta no resultado depois das interrupções na apuração. A auditoria revelou que houve seções eleitorais sem nenhuma abstenção, urnas em que todas as cédulas foram preenchidas pela mesma pessoa e irregularidades na transmissão dos resultados para o Tribunal Supremo Eleitoral.
Morales aceitou, então, realizar nova eleição com novas autoridades eleitorais, como recomendou a OEA. A oposição exigiu que ele não se candidatasse à reeleição. Diante do impasse e do risco de aumento da violência, os comandantes das Forças Armadas e da Polícia e a poderosa Central Operária Boliviana (COB) sugeriram a renúncia do presidente.
Tecnicamente, foi um golpe de Estado. Na realidade, foi um contragolpe, depois dos golpes de Morales ao forçar mais uma reeleição e roubar a eleição.
A renúncia coletiva foi o terceiro golpe de Evo Morales contra as instituições e a democracia bolivianas. Deixou o Estado totalmente acéfalo, apostando no caos para tentar voltar ao poder como salvador da pátria, e fugiu para o exílio no México.
Com dois terços das cadeiras na Assembleia Legislativa Plurinacional, o Congresso boliviano, o MaS é fundamental para dar quórum a qualquer decisão legislativa. Enquanto deputados e senadores do partido querem voltar ao trabalho e preparar o MaS para a próxima eleição presidencial, do exterior, Morales fomenta os protestos.
Seus partidários indígenas, como os conhecidos ponchos vermelhos, estão nas ruas exigindo a volta do seu líder. Não reconhecem a presidente interina, enquanto Morales declara na Cidade do México que é o presidente da Bolívia enquanto a Assembleia Legislativa não aceitar oficialmente a carta de renúncia.
A repressão às marchas indígenas se tornou mais violenta. Antes da renúncia, parte da Polícia e o Exército se negaram a atacar os manifestantes que protestavam contra a fraude eleitoral. O total de mortos desde o início dos protestos chegou a 23, com mais de 700. Só ontem, houve nove mortes.
Do exílio, Morales culpa o governo provisório, formado pela oposição mais linha-dura. Mas é o principal responsável pelo que está acontecendo hoje na Bolívia.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
sábado, 16 de novembro de 2019
Comissão Interamericana de Direitos Humanos adverte militares da Bolívia
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