sábado, 16 de novembro de 2019

Chile convoca plebiscito sobre Constituinte para superar a crise

Num acordo histórico, o Congresso do Chile decidiu ontem convocar um plebiscito a ser realizado em abril de 2020 para o eleitorado decidir se quer uma Assembleia Constituinte para substituir a atual Constituição, outorgada em 1980, durante a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-90). 

É a tentativa de superar a pior crise política desde a redemocratização do país, com protestos violentos que já duram quase um mês e uma dura repressão, que levou o Exército às ruas pela primeira vez desde o fim da ditadura. Pelo menos 22 pessoas morreram e 2 mil foram feridas, das quais 197 perderam total ou parcialmente a visão.

"É uma resposta política maiúscula, que pena no Chile, se encarrega do problema e assume a responsabilidade", declarou o presidente do Senado, Jaime Quintana, do Partido pela Democracia, de centro-esquerda, ao lado de líderes dos principais partidos políticos chilenos, menos o Partido Comunista.

Foram necessárias horas de intensas negociações entre os principais partidos de oposição e coalizão de direita que apoia o presidente Sebastián Piñera para firmar o Acordo pela Paz e por uma nova Constituição. O plebiscito é necessário porque a Constituição pinochetista não prevê uma consulta popular para convocar uma Assembleia Constituinte.

Com voto facultativo (não obrigatório), o eleitor chileno terá de responder a duas perguntas: se quer ou não uma nova Constituição e como deveria ser feita a mudança, por uma comissão constitucional mista, com candidatos eleitos especialmente para isso e parlamentares, ou uma Assembleia Nacional Constituinte eleita exclusivamente para redigir uma nova carta magna.

Enquanto a direita prefere uma comissão mista, a esquerda quer uma Constituinte para realizar uma mudança mais profunda. O plebiscito será realizado junto com as eleições municipais e regionais, no fim de abril de 2020.

Se o projeto for aprovado no plebiscito, as eleições para a Constituinte ou a comissão mista ocorrerão em outubro de 2020, com sufrágio universal e voto facultativo.  No referendo para ratificar a nova Constituição, o voto será obrigatório.

As manifestações começaram em protesto contra um aumento de 30 pesos nas passagens do metrô de Santiago, o equivalente a R$ 0,17. Em 17 de outubro, a estação de metrô de San Joaquín foi o primeiro alvo de depredações.

No dia seguinte, dez estações foram incendiadas. As operações do metrô, o principal meio de transporte de Santiago, um local de democratização de uma cidade profundamente dividida, foram suspensas. Milhares de pessoas caminharam pela Alameda, a principal avenida da cidade para voltar para casa.

O presidente Piñera foi à televisão declarar que havia uma guerra contra o Chile, com gangues do crime organizado infiltradas no meio dos protestos para causar tamanha violência: "Estamos em guerra contra um inimigo poderoso e implacável que não respeita nada nem ninguém e está disposto a usar a violência e a delinquência sem nenhum limite."

Piñera decretou estado de emergência e toque de recolher em Santiago e outras cidades, e botou o Exército nas ruas para reprimir os manifestantes junto com a polícia. Nos primeiros nove dias, a resposta do governo foi uma repressão como não se via desde a era Pinochet. A maior manifestação reuniu 1,2 milhão de pessoas nas ruas de Santiago.

Ao todo, houve 5.629 detenções. Pelo menos 283 ações foram movidas contra os Carabineiros, a polícia militar do Chile, sendo cinco por homicídio, seis por tentativa de homicídio, 52 por violência sexual e cerca de 200 por tortura e maus tratos.

Uma frase da primeira-dama, Cecilia Morel, resumiu as causas da crise: "Vamos ter de diminuir nossos privilégios e compartilhar com os outros." Piñera é bilionário.

Outra frase descreve bem a situação: "Não são 30 pesos, são 30 anos." A ditadura de Pinochet terminou em março de 1990 e até hoje sua herança maldita não foi atacada.

Toda previdência no Chile é privada. O trabalhador faz sua própria poupança para a aposentadoria, no modelo de capitalização que o ministro da Economia, Paulo Guedes, queria implantar aqui na reforma da previdência, mas o Congresso não aceitou. Muitos aposentados não ganham o suficiente, provocando muitos suicídios de velhos.

A educação também é paga. Mesmo nas universidades públicas, é preciso pagar. Os estudantes tomam empréstimos bancários. Quando formados, usam até 10% do salário para pagar a dívida, sobre a qual incidem juros.

Há dois sistemas de saúde: só 20% podem pagar o privado; no sistema público, há longas filas de espera e hospitais mal equipados. O preço dos medicamentos pode ser até três vezes maior do que na vizinha Argentina.

O Chile tem a segunda maior renda per capita da América Latina, de pouco mais de US$ 16 mil por ano, mas o custo de vida é altíssimo. As ruas gritam contra a desigualdade social. É um dos países mais desiguais do continente. O Brasil é mais desigual ainda.

"Deixam você na porta do paraíso, mas não te deixam entrar", reclamou Juan Elgueta, um estudante de 23 anos.

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