O mundo acordou hoje para uma nova realidade com ares de pesadelo. O presidente eleito Donald Trump foi o primeiro candidato de um grande partido à Presidência dos Estados Unidos a rejeitar o internacionalismo liberal, a ordem política e econômica construída pelos americanos desde a vitória na Segunda Guerra Mundial, reforçada pela derrota do comunismo da União Soviética durante a Guerra Fria, mas abalada pelas consequências negativas do processo de globalização da economia.
Durante a campanha, o magnata imobiliário criticou a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar da América do Norte e da Europa criada em 1949 para se opor ao expansionismo soviético. Trump cobrou maior participação financeira dos aliados na defesa comum e ameaçou não defendê-los, abrindo um flanco para o neoimperialismo da Rússia de Vladimir Putin.
A OTAN é uma das bases da política externa americana. Sua regra básica é que um ataque contra um é um ataque contra todos. Como lembrou a candidata derrotada, Hillary Clinton, essa cláusula só foi usada uma vez.
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, a OTAN foi a base da força internacional de intervenção no Afeganistão para perseguir a rede terrorista Al Caeda, responsável pelo ataque, e a milícia extremista muçulmana dos Talibã (Estudantes), que a acolhia.
Com a intervenção militar da Rússia nas ex-repúblicas soviéticas da Geórgia e da Ucrânia, países como a Polônia, que fazia parte do Bloco Soviético, e as ex-repúblicas soviéticas da região báltica, Estônia, Letônia e Lituânia, temem a agressividade da Rússia e dependem da OTAN, e em última análise dos EUA, para sua segurança. A vitória de Trump foi saudada pela Duma do Estado, a câmara dos deputados da Rússia.
Quando ameaçou retirar as tropas americanas da Ásia e sugeriu que cada país tenha suas próprias armas atômicas, deu carta branca à crescente agressividade da China na região e atingiu outro ponto crucial da política externa americana do pós-guerra: a não proliferação nuclear.
Se os EUA não estiverem prontos para defender aliados como o Japão e a Coreia do Sul das armas nucleares da Coreia do Norte, só lhes restará fabricar suas próprias bombas atômicas.
Trump ainda elogiou Putin durante a campanha como um homem-forte, revelando uma paixão nem tão discreta por líderes fortes e ditatoriais. Ele também representa um renascimento do autoritarismo americano.
Ao defender princípios como "primeiro, os EUA", Trump manifesta tendências nacionalistas, xenofóbicas e isolacionistas. Em campanhas anteriores, o pré-candidato republicano Pat Buchanan defendeu a mesma ideia, sem sucesso.
Hoje de manhã, o presidente do Conselho Europeu, o ex-primeiro-ministro polonês Donald Tusk, afirmou que "nenhum país isolado pode ser grande", numa referência ao slogan do republicano: "Tornar a América grande de novo", como se os EUA não fossem a maior potência econômica e militar do planeta.
Na economia, o bilionário ameaçou semear o caos ao propor a renegociação dos acordos comerciais dos EUA para combater um déficit comercial que disse rondar os US$ 800 bilhões por ano, quando em realidade foram US$ 531 bilhões em 2015. Trump atribui o déficit à incompetência dos negociadores dos EUA e não ao consumismo exacerbado dos americanos.
A ordem econômica pós-1945 se baseia num tripé construído pelos EUA: o Fundo Monetário Internacional (FMI), que socorre países com crise no balanço de pagamentos para que não abandonem o comércio internacional; o Banco Mundial, que financia o desenvolvimento; e a Organização Mundial do Comércio (OMC), que hoje reúne mais de 150 países.
O sistema multilateral de comércio é um dos alicerces da ordem econômica internacional liberal. Durante décadas, foi usado pelos EUA para abrir mercados para seus produtos industriais e serviços. Para as empresas transnacionais, é fundamental porque cria uma série de regras a serem seguidos por todos os países-membros.
Caso a OMC seja progressivamente esvaziada e substituída por acordos bilaterais ou multilaterais com poucos países, há o risco de criação de um inferno regulatório para as empresas, que teriam de se adaptar a regras diferentes em cada mercado. Trump teria de enfrentar os interesses de empresas americanas muito poderosas. É altamente improvável.
A retórica do candidato na campanha não vai definir sua ação como presidente, observou o ex-embaixador brasileiro em Washington Rubens Barbosa, hoje diretor de relações internacionais da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Há limitações constitucionais sobre o que um presidente pode fazer, além das restrições de ordem econômica. Mas o dano às relações internacionais é grande.
Um dos legados do governo Barack Obama seria a Parceria Transpacífica, um acordo comercial de 12 países para criar regras comuns que inclui o Japão, mas não a China. A intenção de Obama era criar um ordenamento liberal para evitar que a China imponha suas próprias normas.
Trump bombardeou a Parceria Transpacífica, quer renegociar o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) com o México e o Canadá, ameaça impor fortes sobretaxas a importações da China e abandonar o Acordo do Clima negociado em Paris para combater o aquecimento global.
Oito anos depois da vitória da esperança com a eleição de Obama, venceu o discurso do medo, da desconfiança, da discórdia e das teorias conspiratórias. A partir de janeiro, Trump terá de mostrar a que veio, esmiuçando as políticas que pretende adotar para "tornar a América grande de novo".
O primeiro presidente da era das celebridades e dos reality shows terá de abandonar a retórica fácil das soluções simplistas e enfrentar o declínio relativo da maior superpotência que o mundo já viu sobre os escombros de um sistema político arrasado por suas táticas de campanha baseadas na mentira, na desqualificação e no atropelo dos rivais.
Depois da vitória da Brexit (saída britânica) da União Europeia no plebiscito de 23 de junho, o triunfo de Trump é a segunda rejeição à globalização econômica no mundo anglo-saxão, que prega o liberalismo econômico e tenta vender a ideia para o resto do mundo há mais de 200 anos.
Bem-vindos ao admirável mundo novo de Donald Trump! Talvez não seja admirável.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
Trump repudia o internacionalismo liberal dos EUA no pós-guerra
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Um comentário:
É uma nova política do big stick com os principais personagens com armas nucleares.
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