Os Estados Unidos historicamente tinham uma posição isolacionista. No Discurso de Despedida, seu primeiro presidente, George Washington, fez um alerta claro sobre a importância de não se envolver em guerras na Europa. Em 1917, depois de vários navios americanos serem torpedos pela Alemanha, o presidente Woodrow Wilson convenceu o país a entrar na "guerra para acabar com a todas as guerras". O presidente eleito Donald Trump promete resgatar esse isolacionismo sem sentido no mundo globalizado.
Wilson acreditava que o problema da guerra estava nas monarquias e na falta de democracia. Apresentou seu plano de paz de 14 pontos na Conferência de Versalhes, hoje chamada de "a paz para acabar com todas as pazes". Mas o Senado dos EUA, isolacionista, vetou a Convenção da Liga das Nações, proposta de Wilson, a primeira organização de caráter universal dedicada à paz mundial.
Sem os EUA, a Liga nada fez contra as agressões do Japão, da Itália e da Alemanha. Mostrou-se impotente, enquanto a Grande Depressão (1929-39) minava o apoio ao liberalismo econômico.
Quando os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial, em 1941, depois do ataques japonês a Pearl Harbor, no Havaí, o presidente Franklin Roosevelt articulou a Declaração das Nações Unidas, lançando o primeiro alicerce do que seria a ordem mundial no pós-guerra.
A recessão havia voltado em 1937 e 1938, com aumentos nas taxas de juros. A Grande Depressão só acabou com a aceleração da economia pelo esforço de guerra. Uma das maiores preocupações de Roosevelt era a volta da depressão depois da guerra.
Também estava claro para Roosevelt que a volta ao isolacionismo seria a volta a um mundo instável e imprevisível. Até hoje, os EUA mantêm forças na Europa, no Japão e na Coreia do Sul.
Para evitar a volta da recessão, os EUA patrocinaram a Conferência de Bretton Woods, em 1944, para criar a ordem econômica internacional do pós-guerra, assentada sobre o FMI, que visava a evitar que crises do balanço de pagamento levasse outros países a abandonar o comércio internacional (e a deixar de comprar produtos americanos); o Banco Mundial, inicialmente um banco de reconstrução do pós-guerra e depois um financiador do desenvolvimento (a injustiça econômica gera conflitos e guerras); e a Organização Internacional do Comércio.
Mais uma vez, o Senado dos EUA vetou, desta vez a Carta de Havana, que criava a OIC. O sistema multilateral de comércio foi construído a partir do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Em 1947, o comércio internacional movimentava US$ 57 bi. Na crise de 2008, eram US$ 9 tri. Durante décadas, os EUA promoveram rodadas de negociações para abrir os mercados da Europa, do Japão e dos países em desenvolvimento aos produtos industriais americanos.
Em 1994, no fim da Rodada Uruguai, nasce a Organização Mundial do Comércio (OMC), que além de fórum de negociações comerciais é um tribunal para solução de controvérsias, uma arquitetura criada pelos EUA. A entrada da China na OMC, em 2001, bagunçou o coreto. A ascensão irresistível da China acaba com a supremacia econômica dos EUA.
Por isso mesmo, interessa aos EUA a existência de um sistema multilateral de comércio baseado em regras e não no poder dos mais fortes. A OMC tem hoje mais de 150 países-membros. Para uma empresa transnacional, seguir as mesmas regras em 150 países é uma mão na roda.
A proposta de Trump é renegociar os acordos comerciais dos EUA mano a mano para impor o poderio econômico americano. Só que renegociar com mais de 100 países isoladamente é um pesadelo, como está percebendo o Reino Unido. Para as empresas, seria um inferno regulatório.
A OMC está em baixa. Numa crise, todos adotam medidas protecionistas, mas muito menos do que fariam sem uma organização internacional fiscalizando. Não há clima para liberalização comercial, como mostraram os ataques ao livre comércio durante a campanha eleitoral nos EUA.
O problema fundamental de Trump é ignorar as lições da história. Como disse o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, ex-primeiro-ministro da Polônia (que depende da OTAN para segurar a Rússia), "nenhum país pode ser grande isoladamente".
Trump também ameaça não defender os aliados da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar liderada pelos EUA, e sugeriu que Japão e Coreia do Sul façam suas próprias armas nucleares diante da chantagem atômica da Coreia do Norte. Ataca a não proliferação nuclear, uma das bases da política externa americana desde que outros países começaram a fazer a bomba.
No mundo globalizado, o isolamento não é uma opção. As empresas americanas espalhadas pelo mundo não vão repatriar fábricas e empregos. Em mais esta questão, Trump está na contramão da história. Suas ideias só podem acentuar o declínio relativo dos EUA. Uma superpotência nuclear decadente com um presidente paranoico é uma ameaça à paz mundial.
Assim, Trump ameaça destruir a ordem internacional que os EUA criaram no pós-guerra, a visão de mundo de Roosevelt, que rompeu o ciclo citado pelo Jaime. Como a ascensão de novas potências costuma provocar guerras, o nacionalismo rastaquera de Trump é um problema que vem da América profunda, o interior dos EUA que ignora o resto do mundo.
A derrota da ex-secretária de Estado Hillary Clinton, vista pelo eleitorado com representante do sistema político tão criticado, foi a derrota do internacionalismo liberal e da visão de mundo de Roosevelt e também da globalização econômica defendida pelo presidente Bill Clinton depois do fim da Guerra Fria.
A decisão do eleitorado britânico de retirar o Reino Unido da União Europeia vai no mesmo sentido, é a revolta dos perdedores da globalização no mundo anglo-saxão, que desde 1776 prega o liberalismo econômico como forma de aumentar a riqueza das nações.
Na minha opinião, em vez da globalização neoliberal, precisamos de uma globalização social-democrata em que os países ricos financiem o desenvolvimento das regiões mais pobres, no modelo da integração europeia. O problema é que a UE vive sua mais profunda crise sem perspectiva de solução
Por sua vez, a China afirma ter aprendido as lições da Alemanha e da URSS, mas sua crescente agressividade com os vizinhos indica que grandes potências continuam a agir como grandes potências, ou seja, a abusar do poder.
O mundo de Trump é mais perigoso.
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