sábado, 29 de abril de 2017

Cem dias confirmam improvisação e despreparo de Trump

Nos primeiros cem dias de governo, o magnata imobiliário Donald Trump não cumpriu nenhuma grande promessa de campanha, a não ser eliminar regulamentações ambientais e financeiras do governo Barack Obama e nomear um novo ministro para a Suprema Corte. Trump revelou-se um presidente dos Estados Unidos inseguro e imprevisível, com um governo marcado pela improvisação e pelo despreparo.

Durante a campanha, o bilionário garantiu que com ele tudo seria fácil. O programa de Obama para dar cobertura universal de saúde aos americanos seria substituído por outro muito melhor, com custo menor. Um muro selaria a fronteira com o México. Os imigrantes ilegais seriam expulsos e os muçulmanos barrados. Os acordos comerciais seriam renegociados e os empregos industriais voltariam para os EUA. Os inimigos tremeriam diante do poderio militar americano.

Trump festejou os cem dias com uma entrevista à agência Reuters em que alertou para o risco de um "grande conflito" com a Coreia do Norte, brincando com fogo com um regime comunista paranoico que tem nas armas nucleares sua única garantia de sobrevivência. Até agora, quem falava em guerra era a ditadura stalinista de Pionguiangue, não os presidentes americanos.

"A paciência estratégica dos EUA acabou", advertiu o secretário de Estado, Rex Tillerson, em mais um sinal de que o governo Trump tenta intimidar a ditadura de Kim Jong Un com ameaças de ação militar. Os EUA enviaram porta-aviões e fazem manobras militares conjuntas com a Coreia do Sul. A Coreia do Norte fez um novo teste de míssil, aparentemente fracassado.

Com o aumento de tensão e a imprevisibilidade de Trump, o risco de uma guerra nuclear é o maior desde o fim da Guerra Fria. A China não tem interesse em desestabilizar o regime norte-coreano e usa a crise como carta na manga para negociar com os EUA e desviar a atenção de seu militarismo agressivo no Mar do Sul da China.

A Coreia do Sul também não quer o colapso do Norte. Os dois candidatos favoritos na eleição presidencial de abril querem reatar relações com Pionguiangue e não alimentar a retórica belicista

O presidente festeja amanhã na Pensilvânia, um dos estados do cinturão da ferrugem, uma região desindustrializada sob o impacto da globalização onde o discurso protecionista de Trump seduziu a classe trabalhadora branca que votava no Partido Democrata.

Em 26 de outubro de 2016, em discurso em Gettysburg, na Pensilvânia, local de um pronunciamento histórico de Abraham Lincoln durante a Guerra Civil (1861-65), Trump apresentou seu Contrato com o Eleitor Americano, com mais de 30 itens. Alguns ele prometia realizar no primeiro dia e os outros em cem dias.

Mais de 90% dos eleitores de Trump não estão arrependidos, mas cada vez mais surgem dúvidas, entre eles e nos meios empresariais e financeiros, sobre a capacidade do presidente de cumprir suas promessas. De acordo com levantamento do jornal Los Angeles Times, só quatro promessas foram realizadas.

Uma promessa central da campanha era "repelir e substituir" o programa de saúde de Obama. O presidente da Câmara, deputado Paul Ryan, chegou a apresentar uma proposta que não agradou a ninguém e acabou não sendo colocada em votação. Os democratas a consideraram insuficiente e a direita republicana Obamacare light.

No início do governo, o presidente baixou um decreto discriminando cidadãos de sete países muçulmanos e impedindo a entrada de refugiados por 120 dias. A Justiça declarou o decreto inconstitucional por discriminação religiosa.

Trump apresentou uma segunda versão com seis países, excluindo o Iraque por causa da Batalha de Mossul, onde os EUA apoiam os iraquianos. A Justiça anulou o decreto pelo mesmo motivo.

Nesta semana, outro decreto cortou a ajuda federal às chamadas cidades-refúgio ou santuário, que acolhem refugiados. Mais uma vez, a Justiça barrou a iniciativa, a pedido das cidades de Santa Clara e São Francisco, na Califórnia, que alegaram "prejuízos imediatos e irreparáveis". O governo promete recorrer até a Suprema Corte.

A deportação de imigrantes ilegais é outra prioridade, mas o governo Obama fazia isso ativamente. Há uma expectativa de aumento das deportações no segundo semestre. Até agora, o total está abaixo do mesmo período em 2016.

A construção de um muro na fronteira com o México quase gerou uma crise entre a Casa Branca e o Congresso. Trump queria incluir US$ 2,6 bilhões para iniciar a obra no orçamento suplementar que precisava ser aprovado até este fim de semana para evitar o fechamento das atividades não essenciais do governo federal dos EUA. Diante da oposição dentro do próprio Partido Republicano, recuou.

Como o Partido Republicano domina o Executivo e as duas casas do Legislativo, a crise orçamentária seria mais um absurdo. Em discurso ontem na Associação Nacional do Rifle (NRA), o lobby dos fabricantes de armas, Trump insistiu em tom de campanha que "vamos construir o muro" e "o México vai pagar pelo muro".

Para o eleitorado mais reacionário e canhestro de Trump, o muro é um compromisso inarredável. Mas os fazendeiros e deputados do Texas, um estado tradicionalmente republicano, e empresas instaladas na fronteira sul, são contra. Talvez o muro nunca saia do papel

Na desproteção ao meio ambiente, Trump cumpriu suas promessas. Suspendeu as restrições à produção de carvão, petróleo e óleo de xisto betuminoso. Autorizou projetos de infraestrutura como um oleoduto através de uma reserva dos índios sioux. Cancelou pagamentos a programas das Nações Unidas para mitigar a mudança do clima. E ameaçou retirar os EUA do Acordo de Paris para combater o aquecimento global. A companhia de petróleo Exxon o aconselhou a não abandonar o acordo.

Outra promessa cumprida foi a nomeação de um juiz conservador, Neil Gorsuch, para a Suprema Corte. O Partido Republicano precisou violar as regras não escritas de tramitação de matérias no Senado para acabar com a obstrução do Partido Democrata. Gorsuch foi confirmado, mas a regra do jogo mudou, reduzindo o poder da minoria.

Depois da rápida queda do general Michael Flynn como assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, por causa de negar contatos indevidos com agentes da Rússia, os três adultos, o secretário da Defesa, James Mattis; o secretário de Estado, Rex Tillerson; e o novo assessor de Segurança Nacional, general Herbert McMaster; trouxeram estabilidade ao setor, afastando os populistas mais exaltados, como Flynn e o assessor especial Steve Bannon.

O novo governo aumentou o orçamento de defesa em US$ 54 bilhões para US$ 639 bilhões em 2018. Mas não renegociou o acordo nuclear com o Irã, a conselho de seus assessores mais equilibrados. Em 18 de abril, o secretário Tillerson declarou ao Congresso que a República Islâmica está cumprindo o acordo para congelar seu programa nuclear.

Trump também não reverteu o processo de normalização das relações com Cuba iniciado por Obama nem transferiu a embaixada dos EUA em Israel de Telavive para Jerusalém.

O rei da Jordânia teria convencido o presidente a não mudar a embaixada para evitar uma nova explosão de violência no Oriente Médio. O próprio governo linha-dura de Israel não tem interesse em acirrar os ânimos.

Diante do ataque do governo sírio contra seu próprio povo com armas químicas, Trump cumpriu a ameaça de Obama e bombardeou o aeroporto de onde partiu o ataque com mísseis de cruzeiro Tomahawk. Puniu um ditador sanguinário. Mostrou a decisão que Obama não teve. Mandou um recado a Rússia, China e Irã de que há um novo presidente na Casa Branca disposto a usar a força. Recompôs sua base no Partido Republicano, sempre pronto a usar a força nas relações internacionais. E melhorou sua popularidade.

Ao atacar a Síria, Trump enterrou as chances de uma reaproximação com a Rússia, principal sustentáculo da ditadura de Bachar Assad. Serviu para abafar o escândalo de um suposto conluio com a Rússia durante a campanha eleitoral, mas a investigação continua e o ex-assessor Michael Flynn está cada vez mais implicado por contatos com os russos. Trump acabou adotando a política de Obama de que Assad precisa ser afastado num acordo de paz na Síria.

Na área econômica, o novo presidente retirou os EUA da Parceria Transpacífica, um acordo de 12 países negociado pelo governo Obama para criar uma aliança comercial e regras comuns na região mais dinâmica da economia mundial. Ao tirar os EUA do jogo, Trump faz exatamente o que Obama tentou evitar, que a China, superpotência emergente, ocupe o espaço e imponha suas regras.

Nos últimos dias, o governo Trump ameaçou sair do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), recuou e prometeu ficar se uma renegociação com o Canadá e o México acabar com o que considera condições desfavoráveis aos EUA.

Um memorando interno da Casa Branca revelado pelo jornal inglês Financial Times indica que o governo Trump pretende criar atrito com todos os países que têm saldo positivo no comércio com os EUA, tentando reequilibrar a balança comercial através de negociações com mão pesada, aproveitando o peso da maior economia do mundo.

Com a China, a única potência em condições de contrastar com o poderio americano, o caubói Trump afinou o discurso. Depois de tentar pôr na mesa o status de Taiwan e a política do regime comunista chinês de que só existe uma China, aceitou a exigência de Beijim.

Em busca do apoio chinês para conter o programa nuclear da Coreia do Norte, o governo Trump desistiu de acusar a China de manipular o câmbio para baixar o preço e aumentar a competitividade das exportações. Está sempre disposto a barganhar, mesmo abrindo mão de princípios e promessas.

Ainda não houve anúncios de grandes investimentos em infraestrutura. Trump prometeu US$ 1 trilhão em financiamento público e privado. E a economia não bombou. Cresceu em rimo de apenas 0,7% ao ano no primeiro trimestre de 2017, o menor índice desde o início de 2014.

Depois de se apresentar na campanha como a voz dos que não têm voz, Trump acaba de propor o maior corte de impostos para empresas e grandes fortunas, com benefício pessoal para o presidente e suas companhias. O imposto para pessoas físicas terá três alíquotas, em vez das sete atuais. A alíquota do imposto de renda das empresas vai cair de 35% para 15%.

Quando assumiu  o cargo, o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, prometeu que não haveria cortes de impostos líquidos para os ricos porque seriam eliminadas isenções e deduções. Nada disso está previsto na proposta veiculada nesta semana. A previsão é de um rombo colossal nas contas públicas.

O amadorismo de Trump é mais evidente no nepotismo sem precedentes na história recente dos EUA que marca seu governo. A filha, Ivanka Trump, e seu marido, Jared Kushner, sem qualquer experiência política ou administrativa, são assessores especiais da Casa Branca.

Kushner é responsável não só pela reorganização da Casa Branca como é o enviado especial para o processo de paz no Oriente Médio. Na semana passada, a chanceler (primeira-ministra) da Alemanha, Angela Merkel, convidou Ivanka para um evento.

Merkel sabe que no governo Trump políticos como a ex-governadora Nikki Haley, embaixadora dos EUA na ONU, são descartáveis. Os parentes são os assessores estáveis em quem Trump realmente confia. E os conflitos de interesses são inevitáveis. A China autorizou Ivanka a vender seus produtos no país quando seu pai recebia o presidente Xi Jinping na estação de veraneio de Mar-a-Lago, uma propriedade particular de Trump.

Aos 70 anos, Trump confessou a amigos que tem saudades de sua vida de empresário. Entrou na campanha como desafio. Ganhou, mas aparentemente não sabe o que fazer. Exalta o seu governo como o maior da história nos primeiros cem dias. No mesmo período, em 1933, Franklyn Roosevelt lançou o New Deal, o programa social-democrata para combater a Grande Depressão (1929-39).

Perante o festival de mentiras, meias-verdades e declarações da boca para a fora, o corpo diplomático em Washington deixou de tentar interpretar as falas do presidente. Passou a julgá-lo pelos seus atos. Afinal, palavras faladas voam com o vento.

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