Diante de derrotas das forças da Rússia no campo de batalha, o ditador Vladimir Putin dobrou a aposta. Depois de plebiscitos forjados realizados de 23 a 27 de setembro, anexou hoje quatro regiões parcialmente ocupadas (Lugansk, Donetsk, Zaporíjia e Kherson) que representam 15% do território da Ucrânia e voltou a ameaçar com o uso de armas nucleares para defender os territórios ocupados.
Enquanto elimina na prática as chances de negociações de paz, propôs um cessar-fogo que a Ucrânia e o resto do mundo não tem como aceitar. A guerra entra no momento mais perigoso. O presidente Volodymyr Zelensky declarou que não negocia com Putin, só com o próximo líder russo e pediu oficialmente a adesão da Ucrânia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Depois de sete meses, Putin quer acabar logo com a guerra que chama de operação militar especial e está perdendo. Pretendia vencer em uma semana. Está atolado até hoje, com estimativa de 80 mil soldados russos mortos ou feridos. Em setembro, a Ucrânia recuperou 10 mil quilômetros quadrados de território.
Sob pressão, criticado até mesmo por líderes autoritários como os ditadores da China, Xi Jinping, e da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, Putin acelerou a realização dos plebiscitos e ordenou uma mobilização parcial. O Ministério da Defesa russo convocou 300 mil reservistas.
Há uma fuga em massa de jovens russos de carro e de avião. Isso cria a ameaça de uma revolta interna na Rússia. Além da crescente oposição à guerra, quem é a favor, os ultranacionalistas, estão furiosos com a incompetência na condução da guerra.
Em discurso triunfalista no Salão São Jorge do Grande Palácio do Kremlim, depois de assinar os “tratados de adesão”, Putin afirmou que a anexação foi uma exigência das populações locais de origem russa com base no princípio de autodeterminação dos povos.
O ditador citou “laços históricos” e um “destino comum”, argumentos que usa para alegar que a Ucrânia é parte da Rússia e nunca foi um país independente.
Como o primeiro documento da história da Rússia é uma carta do príncipe Vladimir, em 988, adotando o cristianismo como religião oficial do Principado de Kiev num acordo com o Império Bizantino, a Rússia nasceu em Kiev, que Putin chama de “mãe de todas as cidades russas”.
Se a Rússia nasceu em Kiev e Kiev é a capital da Ucrânia, a Ucrânia é parte da Rússia. Hoje a Rússia Kievana é considerada o primeiro estado russo, fundado por vikings no século 9, durou até a invasão Mongol, em 1240, quando Kiev é arrasada. No seu momento de maior extensão, a Rússia Kievana ia do Mar Báltico ao Mar Negro.
Mas Kiev é uma das cidades mais antigas da Europa Oriental. Era um centro comercial no século 5. Teve mais de mil anos de independência da Rússia até o acordo dos cossacos da Ucrânia, que lutavam contra a Comunidade Polaco-Lituana, fizeram o Acordo da Pereslávia em 1654, pedindo proteção ao czar Aleixo I.
A Ucrânia se torna independente depois da Revolução Russa de 1917, mas os bolcheviques tomam o poder, transformam o país numa república soviética. Putin chegou a dizer que a Ucrânia é uma invenção de Vladimir Lenin e Josef Stalin, quando fundaram a União Soviética, em 1922.
Ele prometeu defender as regiões conquistadas numa guerra de agressão “com todos os meios disponíveis”, uma maneira indireta de falar em armas nucleares. Em seguida, foi à festa na Praça Vermelha.
É uma farsa. A Rússia anexou ilegalmente em março de 2014 a Península da Crimeia, um mês depois da queda do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, aliado de Moscou. Em 6 de abril, daquele começou uma guerra no Leste da Ucrânia insuflada pelo Kremlin. Não havia movimento separatista. É obra de Putin.
Em 2014, os rebeldes aliados de Moscou declaram a independência das províncias de Donetsk e Lugansk. Nos Acordos de Minsk, em 2015, a Rússia negociou com a Alemanha, a França e a Ucrânia a devolução dos territórios à soberania ucraniana em troca de garantias de ampla autonomia.
Três dias antes do início da guerra, Putin reconheceu a independência das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. E agora, ou só agora, foram anexadas à Rússia, antes que a contraofensiva da Ucrânia retome grandes áreas da região de Donbass, a bacia do Rio Dom.
Para justificar o fracasso, o ditador russo declara estar combatendo os Estados Unidos e seus aliados, que acusa de querer humilhar, dividir e destruir a Rússia. É um delírio paranoico de um líder armado com bombas atômicas.
Se em 2014, a resposta da sociedade internacional foi com sanções que não abalaram o Kremlin, desta vez, reforça a determinação dos Estados Unidos, do Reino Unido, da União Europeia (UE) e aliados de manter a frente unida de apoio à Ucrânia e rejeitar a anexação dos territórios conquistados em guerra, o que viola a Carta das Nações Unidas. Os EUA e a UE anunciaram novas sanções à Rússia.
A Rússia vetou uma resolução do Conselho de Segurança da ONU condenando a anexação. Dez países (EUA, Albânia, Emirados Árabes Unidos, França, Gana, Irlanda, México, Noruega, Quênia e Reino Unido) votaram a favor e quatro se abstiveram (Brasil, China, Índia e Gabão).
Os plebiscitos foram totalmente ilegais e ilegítimos, convocados em cima da hora, sem tempo para campanha, em zonas ocupadas militarmente. Os ucranianos votaram sob a mira de metralhadoras. Os soldados russos foram de casa em casa.
Nos plebiscitos de Putin, os votos não são secretos. As cédulas tinham o tamanho de uma folha de papel de ofício. Foram colocadas em urnas transparentes. Os resultados falsificados tiveram em média 87% de votos pela anexação e 99% em Donetsk, o que lembra as eleições forjadas da União Soviética.
Para o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a aliança militar liderada pelos EUA, Jens Stoltenberg, “é a maior escalada no conflito desde o início da guerra”
Na opinião do historiador e cientista político britânico Anatol Lieven, professor do King’s College de Londres e diretor do Quincy Institute for Responsible Statecraft, há “um fracasso total da estratégia russa na Ucrânia desde a invasão de 24 de fevereiro.”
Lieven acredita que a convocação dos reservistas demorou porque é uma confissão do fracasso e de que a operação militar especial é uma guerra em grande escala. Uma derrota pode derrubar Putin.
“Se a Ucrânia expulsar a Rússia de Kherson e de grandes áreas de Donbass, a sobrevivência de Putin no poder estará em questão”, prevê o professor britânico.
Ao anexar partes da Ucrânia, o cientista político entende que o ditador russo “abandonou qualquer esperança de paz e está pronto para lutar indefinidamente” porque “esta anexação nunca será aceita pela Ucrânia, pelo Ocidente ou ser parte de qualquer acordo”.
Neste caso, a perspectiva é de uma guerra longa, de anos, ou várias guerras entremeadas por períodos de cessar-fogo sem que se chegue a um acordo de paz definitivo. Anatol Lieven compara com o que acontece há 75 anos na região da Caxemira, disputada entre a Índia e o Paquistão.
Diante de recentes declarações do presidente Joe Biden de que os EUA defenderão Taiwan se a China atacar a ilha que considera uma província rebelde, a China não vai abandonar Putin. Deve aumentar a ajuda militar e financeira à Rússia.
Mas o risco de um golpe contra Putin é cada vez maior, observa Anatol Lieven. Não seria necessariamente violento. Uma comissão de figurões da elite russa iriam ao Kremlin e ofereceriam garantias de imunidade contra processos e confisco de propriedades. Putin iria para sua dacha e teria uma vida tranquila longe dos holofotes, a exemplo do que aconteceu com o líder soviético Nikita Kruschev.
Em troca, os golpistas russos precisariam negociar com o Ocidente a normalização das relações. Uma Rússia enfraquecida econômica e militarmente pode ser mais perigosa porque vai continuar tendo armas nucleares. Lieven compara com a República de Weimar, que governou a Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial até a ascensão do nazismo, em 1933, sob os fantasmas da rendição e da humilhação nacional.
O resultado, na Alemanha, foi Adolf Hitler e a Segunda Guerra Mundial. Agora, mesmo com a queda de Putin, poderia ser um endurecimento da guerra e sua ampliação além das fronteiras da Ucrânia.
A Guerra da Ucrânia ressuscitou os fantasmas da guerra nuclear e de uma Terceira Guerra Mundial. Meu comentário: