Depois de quase 14 anos no poder, o líder indígena e sindical Juan Evo Morales Ayma, do Movimento ao Socialismo (MAS), renunciou hoje à Presidência da Bolívia, sob pressão do comandante das Forças Armadas, general Williams Kaliman, em meio a uma onda de três semanas de manifestações de protesto contra uma possível fraude na eleição de 20 de outubro.
"Mandei minha carta de renúncia à Assembleia Legislativa Plurinacional", anunciou Morales em pronunciamento na televisão, alegando ter sido vítima de um "golpe cívico, político e policial": "Houve um golpe", denunciou.
O vice-presidente Álvaro García e os presidentes da Câmara, Victor Borda, e do Senado, Adriana Salvatierra, também renunciaram, deixando um vácuo no poder. A Assembleia Legislativa terá de aceitar a renúncia do presidente e indicar um presidente interino até a realização de eleições, que precisam ocorrer em três meses. O nome mais cotado é da segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez.
"Meu pecado foi ser indígena, sindicalista e produtor de coca", lamentou Morales. "Vamos cumprir a promessa de Túpac Katari. Voltaramos e seremos milhões", acrescentou García, referindo-se ao líder aimará que liderou uma revolta contra a dominação espanhola no século 18.
"Quero dizer a meus irmãos e irmãs que a luta não termina aqui. Vamos continuar a luta pela paz e pela igualdade", despediu-se o presidente.
Hoje de manhã, Morales havia anunciado a realização de nova eleição presidencial com novas autoridades eleitorais "para baixar a tensão e pacificar" a Bolívia, como exigiu a Organização dos Estados Americanos (OEA) ao antecipar o resultado de uma auditoria sobre o processo eleitoral "por causa da gravidade das denúncias". A oposição exigiu que Morales não fosse candidato.
Depois disso, as Forças Armadas, a Polícia e a poderosa Central Operária Boliviana (COB) pediram a saída de Morales. O Exército havia avisado que não enfrentaria os manifestantes. Em pronunciamento na televisão, o general Kaliman sugeriu a renúncia "para o bem da Bolívia".
"Diante da escalada no conflito por que passa o país, velando pela vida, a segurança da população e a garantia do império da Constituição Política do Estado, em conformidade com o artigo 20 da Lei Orgânica das Forças Armadas e depois de analisar a situação conflituosa interna, sugerimos ao chefe de Estado que renuncie a seu mandato", declarou o general.
A seu lado, estavam outros comandantes militares e o chefe da Polícia, general Yuri Calderón, que apoiou a recomendação "para pacificar o povo da Bolívia". O comunicado do comandante das Forças Armadas terminou com um pedido "ao povo boliviano e aos setores mobilizados para depor as atitudes de violência e a desordem entre irmãos para não manchar nossas famílias com sangue, dor e luto."
Pelo menos três pessoas foram mortas e 300 saíram feridas durante as três semanas de protestos. Uma greve geral iniciada no departamento de Santa Cruz, dominado pela oposição, já dura 20 dias.
Quando o avião presidencial decolou do aeroporto de El Alto, por volta das 17 horas em Brasília, gerou especulações de que Morales poderia fugir do país. O presidente do México, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, lhe ofereceu asilo político. Pelo menos 20 políticos pediram asilo à embaixada mexicana em La Paz, informou na Cidde do México o chanceler Marcelo Ebrard.
O ex-presidente foi para a região do Chapare, um reduto eleitoral no departamento de Cochabamba onde ele iniciou a carreira política como líder dos cocaleros, os agricultores que cultivam a coca.
Evo Morales era o presidente que estava há mais tempo no poder na América, desde 22 de janeiro de 2006. Fora eleito em dezembro de 2005 com quase 54% dos votos depois de um período turbulento da história da Bolívia em que dois presidentes renunciaram, Gonzalo Sánchez de Losada em 2003 e Carlos Mesa Gisbert em 2005, sob pressão das ruas e do movimento indígena liderado por ele.
Sob seu governo, a Bolívia, um dos países mais pobres do continente, cresceu em média quase 5% ao ano. A pobreza caiu de 60% para 34% e a pobreza absoluta de 38% para 15%. Morales convocou uma Assembleia Constituinte que transformou o país num Estado plurinacional, reconhecendo os direitos povos indígenas.
Em 6 de dezembro de 2009, Morales foi reeleito com 64% dos votos válidos. Como a lei só autoriza uma reeleição, para concorrer a um terceiro mandato, o presidente alegou que a primeira eleição havia sido sob a Constituição anterior. Em 12 de outubro de 2014, ganhou de novo, com 63% dos votos válidos.
Para obter um quarto mandato, Morales convocou um referendo constitucional para acabar com limites à reeleição e perdeu. Em 21 de fevereiro de 2016, 51,3% dos eleitores disseram não à reeleição ilimitada.
Mesmo assim, o presidente recorreu à Corte Suprema com base em decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Tribunal de São José da Costa Rica, que considerou em outro caso que votar e ser candidato são direitos fundamentais. E tentou um quarto mandato.
Na noite de 20 de outubro, com 83% das urnas escrutinadas, a contagem preliminar indicava que haveria segundo turno. Morales tinha 45% contra 38% do ex-presidente Carlos Mesa. Pela lei boliviana, ganha quem conquistar mais da metade dos votos válidos ou 40% e uma vantagem de dez pontos percentuais sobre o segundo colocado.
Naquele momento, o Tribunal Supremo Eleitoral suspendeu a apuração preliminar. No dia seguinte, quando a apuração manual voto a voto dava 42% a cada candidato, com ligeira vantagem para Mesa, a Justiça parou com a apuração manual, retomou a contagem rápida e anunciou a vitória de Morales, que no final teria recebido 47,01% dos votos contra 36,51% para Mesa.
O oposicionista rejeitou o resultado e convocou seu eleitorado a sair às ruas para impedir a fraude. A interrupção abrupta da contagem e o reinício com um resultado diferente, como aconteceu na eleição de Carlos Salinas de Gortari no México, em 1988, foi um dos pontos centrais do relatório da auditoria da OEA, que apontou "denúncias de irregularidades graves".
Assim que a OEA denunciou a fraude, o Ministério Público abriu inquérito. A presidente do Tribunal Supremo Eleitoral, María Eugenia Choque, e o vice-presidente, Antonio Costas, foram presos.
As acusações da OEA foram decisivas para minar de vez o poder de Morales. O presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, sua vice, Cristina Kirchner, o ex-presidente Lula e o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, chamam a queda de Morales de golpe de Estado.
A oposição boliviana argumenta que fez apenas uma resistência democrática contra a fraude eleitoral, mas o jornal La Razón noticia de ataques a casas de políticos ligados ao governo socialista, inclusive do ex-presidente.
O presidente da Câmara, Victor Borda, e o ministro das Minas, César Navarro, denunciaram ataques a suas casas e famílias com bombas incendiárias. Eles responsabilizam o ex-presidente Mesa e o presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, Luis Fernando Macho Camacho, pela violência.
Houve saques, violência e depredação de lojas em várias cidades, inclusive à casa de Morales. Em La Paz, pelo menos 64 ônibus foram incendiados por partidários do ex-presidente.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
domingo, 10 de novembro de 2019
Evo Morales renuncia à Presidência da Bolívia
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2 comentários:
Na verdade foi um contragolpe, voê acha que este episódio, aliado ao que ocorre no Chile , traria um clima de instabilidade ao Continente ?
A instabilidade está nas ruas do Chile, da Bolívia, há pouco no Equador, todo dia na Venezuela, na Nicarágua e no Haiti. Entendo que estes conflitos internos têm sua própria dinâmica, no Chile, a concentração da riqueza; na Bolívia, fortes suspeitas de fraude eleitoral de um presidente em busca do quarto mandato, quando a Constituição só autoriza dois.
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