(Reproduzo abaixo um artigo que escrevi em 24 de outubro de 2005, quando Cristina Kirchner foi eleita senadora pela província de Buenos Aires. A comparação com Perón e Evita é inevitável. É um dos capítulos do meu livro Bush 2: A Missão)
Só na província de Buenos Aires, 56 partidos e movimentos diferentes disputaram as eleições parlamentares de domingo, 23 de outubro de 2005, na Argentina. Foram eleitos 127 dos 257 deputados na Câmara Federal, 24 senadores, um terço do Senado, 400 parlamentares das assembléias provinciais e 1.957 vereadores. Mas o que estava em jogo mesmo é a legitimação do presidente Néstor Kirchner e sua luta para controlar a força política dominante na Argentina: o peronismo.
Kirchner sai fortalecido.
Nesta batalha decisiva para controlar o partido e o Congresso, preparando a reeleição em 2007, Kirchner convocou sua mulher, a já senadora Cristina Fernández de Kirchner. Ela foi a candidata da Frente para a Vitória ao Senado na província de Buenos Aires, onde se concentram 40% da população e 35% do produto nacional bruto argentinos. Sua principal adversária na campanha foi a ex-primeira-dama Hilda Chiche Duhalde, mulher do ex-presidente Eduardo Duhalde, que controla o Partido Justicialista na província.
Como a luta é pela herança do general Juan Domingo Perón e inclui uma guerra de primeiras-damas, a onipresença dos fantasmas del Viejo e de Evita revela uma característica peculiar da política da Argentina, um país ainda hoje fascinado pelo carisma do casal que é também símbolo de um passado de opulência. Entre 1946 e 1949, os salários reais para o operário da indústria argentina cresceram em média 53% e a participação da massa salarial no PIB passou de 40,1% para 49%.
Estavam aptos a votar no domingo 26.098.099 argentinos. O voto é obrigatório mas houve abstenção de 35%.
Primeira-dama vencedora
A grande vitoriosa foi Cristina Kirchner. Com 90% das urnas apuradas ela tinha 46% dos votos na disputa pelo Senado na província de Buenos Aires. Em segundo, Chiche Duhalde tinha 19,5%. Na briga pela terceira vaga, Marta Maffei, da Afirmação por uma República Igualitária (ARI), batia o ex-ministro da Economia Ricardo López Murphy, da Proposta Republicana, e Luis Brandoni, da União Cívica Radical.
Na capital federal, com 99% das urnas apuradas, a lista de Mauricio Macri, empresário e presidente do Boca Juniors, clube mais popular do país, aliado de López Murphy, tinha 34% dos votos. Era seguida pela ARI, da deputada esquerdista Elisa Carrió, com 22%. Os candidatos de Kirchner, com o ministro das Relações Exteriores, Rafael Bielsa, abrindo a lista, estavam em terceiro lugar com 20,3%.
Eleito em abril de 2003 com apenas 22% dos votos no primeiro turno, porque seu principal adversário, o ex-presidente Carlos Saúl Menem, um peronista de direita, desistiu de disputar o segundo turno, Kirchner ficou com o estigma de não ter sido consagrado nas urnas.
Nesta luta pela legitimidade, Kirchner transformou uma eleição parlamentar de meio de mandato num plebiscito sobre seu governo. Ele chegou à Casa Rosada depois da pior crise econômica da história argentina.
Em dezembro de 2001, houve o colapso da paridade cambial entre o dólar e o peso e o fim da conversibilidade introduzida na era Menem (1989-99). O país decretou moratória de uma dívida de US$ 100 bilhões e a poupança depositada nos bancos ficou presa no corralito, jogando 58% dos argentinos abaixo da linha pobreza, contra 24% em 1999 e 38% hoje.
Tudo isso levou à renúncia do presidente Fernando de la Rúa (1999-2001), da União Cívica Radical, partido do ex-presidente Raúl Alfonsín. Depois de alguns interinos, o peronista derrotado por De la Rúa em 1999, Eduardo Alberto Duhalde Maldonado assumiu para completar o mandato evitando a convocação de eleições presidenciais antecipadas em meio à pior crise econômica da história do país.
Duhalde fora vice-presidente de Menem. Eles romperam por causa das políticas econômicas liberais do menemismo. Apesar da rejeição nas urnas, Duhalde chegou ao poder como cacique da máquina partidária do peronismo na província de Buenos Aires. Para impedir a volta de Menem ao poder, lançou Kirchner para sucedê-lo em 2003.
Kirchner x Duhalde
Assim que assumiu a presidência, com o estigma de não ter sido consagrado nas ruas, Kirchner procurou consolidar a sua própria base de poder, usando a máquina do Estado para cooptar os chamados peronistas e radicais do K. Foi duro nas negociações com o FMI e obteve um desconto de até 75% na renegociação da dívida. A Argentina está crescendo a uma taxa de 8,9% ao ano, com inflação hoje em 11% anuais. Já atingiu o nível de 1998 mas tem problemas para negociar os empréstimos e investimentos necessários à recuperação em bases permanentes.
O conflito entre criador e criatura era inevitável. Desde setembro do ano passado, os dois estão oficialmente rompidos e as eleições de 23 de outubro foram uma batalha importante nesta guerra. Kirchner pretende eleger 60 a 65 deputados leais, o que lhe permitiria criar um bloco de 100 a 110 deputados. Os deputados peronistas leais a Duhalde seriam cerca de 30 e a UCR teria uns 40.
Com uma ampla vitória sobre o duhaldismo, Kirchner é o grande vencedor desta eleição. Deve tentar atrair os rivais duhaldistas para o oficialismo. Afinal, pertencem aos setores mais à esquerda do peronismo. Não há uma incompatibilidade ideológica, como no caso do menemismo.
O Pingüim, como é chamado pelo nariz adunco e sua origem na Patagônia, é um presidente caracterizado pelo estilo agressivo. Já comprou brigas com o Fundo Monetário Internacional, empresas estrangeiras, os credores da dívida argentina, a Igreja Católica, o presidente Lula, o embaixador da França, a Federação das Indústrias de S. Paulo (Fiesp), os supermercadistas argentinos e quem se atravesse no caminho de suas ambições.
De olho na reeleição em 2007, Kirchner quer facilidade para aprovar suas propostas no Congresso para poder se dedicar de corpo e alma a uma campanha presidencial que promete ser dura como reza a tradição argentina.
A maior disputa mais uma vez será pela alma do general Perón. Depois dos fracassos econômicos dos governos radicais de Alfonsín e De la Rúa, a grande batalha deve ser travada dentro das hostes peronistas. O duelo entre Chiche e Cristina é apenas um trêiler.
O General Perón
Juan Domingo Perón era um oficial do Grupo de Oficiais Unidos, simpatizantes do nazifascismo que derrubaram o presidente civil Ramón Castillo no golpe de 4 de junho de 1943. De secretário do Trabalho e Bem-Estar Social, ele passou a ministro da Guerra e vice-presidente. Preso em 9 de outubro de 1945, foi solto por força grandes manifestações de massa em 17 de outubro do mesmo ano, data comemorada com entusiasmo por Kirchner durante a campanha. Ele lançou, na data, um programa educacional “para que os argentinos do futuro possam ter a mesma educação de qualidade que tínhamos no passado”.
O peronismo é um fenômeno típico do que se chama de populismo latino-americano, na definição do cientista político argentino Torcuatto di Tella, “uma aliança de parte da elite, incluindo industriais e militares nacionalistas, e trabalhadores, para enfrentar outro segmento da elite”, o mais conservador.
Para os militares argentinos, que alimentavam um sonho de hegemonia na América do Sul, o inimigo era o Brasil. Eles sabiam que a potência realmente hegemônica no continente, os Estados Unidos, não armaria a Argentina para atacar o Brasil, que adotava uma política de aliança automática com Washington. A Argentina precisava então do seu desenvolvimento industrial autônomo.
Daí nasce uma aliança entre militares, industriais, trabalhadores e setores da Igreja Católica contra uma elite fundiária que teria de pagar pelo protecionismo necessário ao nascimento de uma indústria nacional. Inspirado pelo ditador italiano Benito Mussolini e por Getúlio Vargas, a partir do golpe de 1943, Perón promoveu reformas sociais e fortaleceu os sindicatos como sua base de poder.
De 1930-35 a 1945-49, a produção industrial dobrou. Em 1944, as importações, que em 1925 consumiam 30% do PIB argentina, representavam apenas 6%. O número de fábricas passou de 38 mil em 1935 para 86 mil em 1946. No mesmo período, o operariado industrial passou de 436 mil para mais de 1 milhão de trabalhadores. Até 1947, chegaram à Grande Buenos Aires 1,368 milhão de migrantes vindos do campo atraídos pela rápida expansão industrial. Eram os descamisados que se tornariam massa de manobra para o peronismo. Seu discurso prometia plena cidadania para todos.
Isso levou Perón à sua primeira vitória eleitoral nas eleições presidenciais de 24 de fevereiro de 1946, com 56% dos votos, contra a União Democrática, que reunia desde os radicais, representantes da classe média antiperonista, até socialistas e comunistas, que na época, não sem alguma razão, descreviam Perón como fascista. Mas as massas argentinas já estavam seduzidas por este oficial e por sua segunda mulher, Maria Eva Duarte de Perón, com quem ele se casara quatro dias depois da libertação e da consagradora reaparição nos balcões da Casa Rosa, de onde pronunciaria seus discursos para empolgar a Argentina.
Filha ilegítima de uma cozinheira, cantora e atriz de radioteatro, Evita já era amante do general Perón. Eles formaram um casal sem paralelo na História nem no imaginário político latino-americano. Sua morte prematura, aos 33 anos, de câncer, em 1952, a transformou numa semideusa amada e odiada, uma personagem perene e insuperável da política argentina, mesmo que as primeiras-damas de hoje busquem a legitimidade no voto.
A ‘terceira via’
Defensor de uma “terceira via” entre o capitalismo e o comunismo, uma idéia originalmente mussolinista, Perón adotou uma atitude antiimperialista, nacionalizando empresas americanas e européias. Promoveu o tango como autêntica cultura popular argentina e legalizou a prostituição. Incentivou os sindicatos mas os manteve atrelados à máquina do Estado e do partido, esmagando quaisquer competidores interessados na luta dos trabalhadores.
Uma década de governos peronistas (1946-55) traria profundas mudanças para a classe trabalhadora argentina. Houve uma grande expansão do movimento sindical. O índice de sindicalização cresceu de 30,5% em 1948 para 42,5% em 1954, chegando a 70% na maioria dos setores industriais. O total de sindicalizados passou entre 1946 e 1951 de 520 mil para 2,333 milhões.
Pela primeira vez, foi introduzido em mecanismo de negociação coletiva, com escala móvel de salários, auxílio-doença, licença-maternidade, férias e outros direitos sociais. A Lei das Associações Profissionais, de outubro de 1945, estabeleceu a unidade, a imunidade dos dirigentes e o imposto sindical, garantindo uma arrecadação compulsória. Ao mesmo tempo em que garantia o financiamento dos benefícios previdenciários o Estado tentava assegurar seu controle sobre o movimento.
Havia sindicalistas no Congresso. Eles eram consultados oficialmente em decisões de governo. Operavam o sistema de previdência e assistência social através do Ministério do Trabalho e Bem-Estar Social e da Fundação Eva Perón. Logo as noções de autonomia política e organizacional do movimento operário começaram a se chocar com as ambições de Perón e dos outros participantes da aliança corporativista e nacionalista que as sustentava.
Perón foi reeleito em 1951, com ajuda importante do voto feminino pelo qual Evita lutara. Mas o autoritarismo, a corrupção e o conflito interno das diferentes forças componentes do peronismo, alinhadas à direita e à esquerda, inclusive uma ruptura com a Igreja Católica, levaram à chamada Revolução Libertadora ou, dependendo do ponto de vista, ao golpe de 16 de setembro de 1955. Desde então, todos os golpes de Estado na Argentina foram marcados pelo confronto entre peronistas de direita e de esquerda.
Amargo regresso
Perón ficou 18 anos no exílio. Quando voltou, em 20 de junho de 1973, foi recebido com a Batalha de Ezeiza, uma briga entre a direita peronista, que incluía a Aliança Anticomunista Argentina, liderada por José López Rega, que seria ministro do Bem-Estar Social do último governo Perón, e a extrema esquerda, onde estavam os Montoneros.
Em 23 de setembro de 1973, o velho caudilho é eleito presidente da Argentina pela terceira vez, com 62% dos votos, agora com sua nova mulher, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, como vice. Só que Isabelita não era Evita. Com a morte do general em 1º de julho de 1974, a crise do peronismo vai se agravando até o golpe de 24 de março de 1976 e a violenta ditadura que o seguiu, responsável por cerca de 30 mil mortes.
A democracia só voltou à Argentina em 1983, um ano depois da derrota para a Grã-Bretanha na Guerra das Malvinas, que desmoralizou as juntas militares. Desde então, dois mandatos foram encurtados por crises agudas, a hiperinflação de 1989 sob Alfonsín e o colapso do peso com De la Rúa em 2001. Desde 1930, Menem foi o único civil a ser eleito democraticamente a concluir o mandato.
Como o peronismo é aparentemente a única força política capaz de governar a Argentina, a grande batalha é mais uma vez pela hegemonia interna no Partido Justicialista. Para alguns argentinos, o peronismo é o “fenômeno incorrigível”, definição do escritor Jorge Luis Borges. Nesta visão, o golpe de 1943 marca o início de uma guerra civil que arrasou a Argentina, comprometendo uma situação econômica que a colocava entre os países mais ricos do mundo no início do século passado.
Para o professor Di Tella, “a guerra civil argentina termina em 1989, quando Carlos Menem, um peronista, convida o maior grupo empresarial do país a indicar o ministro da Economia”. Menem já era da direita peronista. Deu naquela época sua guinada definitiva para um liberalismo e um pró-americanismo que nada tem a ver com as idéias nacionalistas e antiimperialistas do caudilho.
Um dos países mais férteis do mundo, com população relativamente pequena, de 36 milhões de habitantes, uma renda média por habitante bem acima da brasileira e, apesar da crise, 34º melhor país do mundo no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, não há razões para a Argentina ter dificuldades econômicas. Foi o país que mais se subdesenvolveu no século 20, deixando de ser um dos mais ricos do mundo, em grande parte por causa de seus conflitos políticos.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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